Crônicas de Berlim (21): Ainda os falsos amigos

CVoyage-MapPor Flávio Aguiar.

Além de viajar entre as línguas, os continentes e os sete mares, as palavras deslizam no interior da própria. Vejam o caso da palavra “revolução”, palavra que migrou da culinária ou da construção (“revolver”, o verbo, não a arma) para astronomia e daí para o campo social, econômico, cultural e político. E sendo originalmente de esquerda, já foi reivindicada pela nossa direita golpista de 1964.

No campo histórico, em nosso meio, a palavra deslizou da sua caracterização marxista como substituição de uma classe por outra no poder para designar simplesmente um levante armado de grande porte: Revolução Farroupilha, Revolução Federalista, Revolução de 30. Até o reacionário e restaurador Movimento de 1932, em São Paulo, ficou entronizado no panteão nacional com o nome paradoxal de Revolução Constitucionalista!

Meu saudoso amigo Werneck, grande militante comunista, me contou certa vez saborosa anedota a respeito. Estava ele em Santos, ministrando um curso de conceitos e princípios marxistas a estivadores arregimentados pelo partido. Pontificou sobre o conceito de revolução, desfiando a tradicional “substituição de uma classe por outra no poder”. Deu como exemplo a Revolução Francesa. E perguntou: “a Proclamação da República, no Brasil, foi uma revolução”? Um dos alunos respondeu prontamente: “não”! “Muito bem”, disse o mestre, “por quê não”? “Porque não correu sangue”, retrucou o mesmo aluno…

Um outro caso interessante é o da palavra “reforma”, em nosso espectro político de base. Era de esquerda, quem não se lembra das “reformas de base”? Nos anos mais recentes foi reivindicada pela direita neo-liberal para designar as regressões anti-New Deal que queria e quer ainda forçar na nossa cultura econômica.

Há muito o que aprender neste terreno. O pior que pode acontecer é imaginarmos que somos os donos das palavras, que somente as definições do nosso “meio”, do nosso “grupo”, do nosso “setor”, do nosso “pensamento”, seja lá o que for, são as vigentes e válidas. De acordo com esse narcisismo (que pode também privilegiar o ponto de vista de um “outro”, como se verá) para uma palavra existirá sempre uma acepção “verdadeira”, e as outras serão falsas. O reconhecimento dessa plural diversidade de conceitos que coabitam numa palavra não se opõe a uma noção de rigor. Se estamos em meio universitário, por exemplo, usemos as palavras dentro de rigorosos conceitos acadêmicos, tanto quanto possível, pois mesmo aí há dissensões. Mas não tenhamos a ilusão de que isso anula a diversidade das apreensões de uma palavra, e a necessidade de seu conhecimento para podermos avaliar o comportamento lingüístico das pessoas.

Vejamos um caso bem complexo. A palavra “nacionalismo”, por exemplo. Aqui na Europa ela designa invariavelmente um comportamento de direita, xenófobo, autoritário, excludente. As lutas libertárias dos nacionalismos do século XIX foram soterradas debaixo dos nacionalismos exacerbados da Primeira Guerra Mundial e da eclosão do fascismo, do nazismo e também do falangismo espanhol. Já na América Latina a situação é muito outra: as lutas anti-imperialistas do século XX deslocaram a palavra para a esquerda. Existiu e existe ainda uma direita nacionalista, como no caso dos integralistas, ou dos liderados pelo general Albuquerque Lima durante a Ditadura de 64; mas tudo isso foi sepultado pelo alinhamento quase sempre automático das nossas direitas com os norte-americanos durante a Guerra Fria e o neo-liberalismo depois. O termo, hoje, navega ainda na reavaliação que as esquerdas brasileiras (por exemplo) vem fazendo do significado histórico de figuras como Vargas, Brizola, mesmo Perón (o antigo), Lázaro Cárdenas, entre outros, além fronteiras.

Mas ainda permanece, por vezes, mesmo entre nós, a noção de que a definição européia “é a verdadeira”. Veja-se outro exemplo: “populismo”. Aqui na Europa é uma palavra usada pela consciência liberal – sobretudo na mídia – contra tanto a direita mais extremada (o governo húngaro, de extrema direita, antirroma – ciganos, mas eles não gostam dessa palavra –, é seguidamente chamado de “populista”) quanto a esquerda, às vezes nem a mais extrema. Líderes social-democratas mais radicais são freqüentemente chamados de “populistas”, como é o caso, em muitos meios, de François Hollande. Já no nosso meio latino-americano a palavra “populista” tem sido constantemente manipulada pela direita contra a esquerda. Houve um tempo em que a nossa esquerda se deixou levar pela terminologia da direita liberal, e também chamava os líderes populares de que não gostava de “populistas”. Em 24 de agosto de 1954 muito militante comunista (obtive depoimentos…) preparava-se para sair à rua comemorando a queda do “populista” Vargas, quando houve a surpresa geral do suicídio, da leitura da Carta Testamento e das avassaladoras manifestações populares que arrasaram as sedes dos partidos de direita e os jornais direitistas…

Enfim, ao se considerar as palavras, preparemo-nos para todo o tipo de viagem. Às vezes há um oceano que separa as suas semelhanças. Outras vezes, elas mesmas têm oceanos dentro de si…

***

Faltam 15 dias para o lançamento de Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet, o primeiro livro de Julian Assange! O livro já está em pré-venda, com desconto, nas livrarias SaraivaCultura e Travessa.

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em Crônicas de Berlim (21): Ainda os falsos amigos

  1. Essa frase está complicada: “Aqui na Europa é uma palavra usada pela consciência liberal – sobretudo na mídia – contra tanto a direita mais extremada (o governo húngaro, de extrema direita, antirroma (ciganos, mas eles não gostam dessa palavra), é seguidamente chamado de “populista”) quanto a esquerda, às vezes nem a mais extrema.”

    Curtir

  2. Suely Farah // 18/01/2013 às 6:27 pm // Responder

    Bom mergulhar neste mar, com seu texto, Flávio.
    Uma busca, certamente, do fazer e do entender, mas também um conforto por constatar que ainda há uma comunidade possível de linguagem e viagem e verdadeiras amizades.
    Lembrou-me a música do Chico – “Tantas palavras que eu conhecia/ E já não falo mais…”

    Curtir

Deixe um comentário