Lanterna mágica

13.01.11_Lanterna Mágica_Roniwalter JatobáPor Roniwalter Jatobá.

Olho a minha rua sossegando no fim da tarde. Chegam as primeiras sombras da noite.

De repente, uma pane afeta o sistema elétrico no prédio e o bloco residencial na Rua São Carlos do Pinhal fica às escuras. Usando o jargão dos técnicos, também o meu apartamento sofreu uma “interrupção temporária de energia”.

Diferente da noite que caía devagarinho, a falta de luz me pegou de surpresa. O apartamento em instantes perdeu a total luminosidade e o meu mundo particular foi tomado pela escuridão. No início, ainda atônito, fiquei sem reação. O que fazer? Nem o telefone – modelo moderno, sem fio e com secretária em língua inglesa –, dava sinal de vida.

Deito no sofá. De longe vem o barulho de automóveis na Avenida Paulista. Atento aos movimentos, escuto os gritos da vizinha no piso de cima. Sua filha chora lamurienta. Ouço ainda a voz do marido e, logo depois, seus passos na escada. O portão da entrada bate. Ele senta no jardim detrás do prédio. Pela janela, acompanho seus gestos pelo clarão do isqueiro ao acender um cigarro atrás do outro.

Esqueço a rua. Igualzinho a um cego, levanto. Tateio pelo apartamento até a cozinha em busca de uma caixa de fósforos. Volto. Na prateleira da sala, as mãos encontram um toco de vela acoplado num rústico castiçal.

Uma hora depois, chega a energia elétrica e tudo volta ao normal. Mas, remando contra a maré, insisto na escuridão. Desligo as lâmpadas e, à luz de vela, penso na infância.

Era diferente a luz daqueles tempos. Fraca, vaga-lume, de tonalidade amarela, parecia cair dos postes de madeira. Gerada em motor a diesel, clareava Campo Formoso das seis às dez da noite. A partir daí, voltava a escuridão, a mesma do início do mundo.

Muitas vezes, o velho motor pifava. Eram horas em que todos ficavam sem os acordes da Ave-Maria, ao cair da tarde, e em seguida os boleros, tangos e sambas-canções tocados pelo serviço de alto-falantes da Rádio do Benigno. Nessas noites, voltava para casa com cuidado e tateando o chão com o bico do sapato, nas ruas esburacadas.

Foi aí que lembrei também de uma lanterna. Além de velas e candeeiros, mas que apagavam com qualquer brisa, uma das fontes mais seguras de luz para sair às ruas de Campo Formoso eram lanternas que funcionavam à bateria. Para ser mais preciso, eram duas pilhas daquelas compridas também usadas em rádio.

Quase todo mundo tinha seu farolete, que na escuridão alumiava vias cobertas de terra ou paralelepípedos. Presente de pai, a minha lanterna era especial. Ao contrário da maioria, sempre branca ou cor de alumínio, o primeiro farol de minha vida era coberto de brilhante tinta vermelha, que resplandecia no escuro. Quando o pai me entregou o aparelho comprado em São Paulo, disse, repetindo duas vezes:

– Nunca jogue o foco na cara dos passantes, nem alumie cantos onde se alojam casais de namorados. É feio.

Faz bastante tempo. Mas recordo que nunca obedeci fielmente a máxima recomendação paterna. Nas noites de Campo Formoso, quando imperavam as trevas, quem poderia controlar as mãos de um menino curioso que se guiava por uma lanterna mágica?

***

Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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