O sapo Gonzalo em: Um sonho de Natal
Por Luiz Bernardo Pericás.
Carregava as lembranças de infância, de quando era apenas um menino que tentava entender o mundo. Na memória, um trem elétrico completo, réplica exata de um modelo popular do começo do século passado. O conjunto vinha com uma locomotiva de prata, vagões laqueados, trilhos que davam mil voltas na sala de estar, como uma serpente cubista… e até mesmo uma estação de passageiros singela, coberta por telhas vermelhas!
Do fundo da cachola, surgiam as imagens de carrinhos de metal e soldados de chumbo a segurar baionetas em posição de combate, cada qual pintado com esmero por seus fabricantes. Não faltavam ali, tampouco, nas recordações da tenra idade, os piões, girando insanamente nas tardes quentes de outrora, quando brincava, animado, com seus colegas de escola, e também as pipas multicoloridas de pano e tiras de madeira, feitas com as próprias mãos.
Seus olhos brilhavam mais do que as luzes do pequeno pinheiro iluminado, colocado no canto da sala, repleto de presentes em volta, um cenário que nunca faltava em seu lar naquelas noites de dezembro, na época em que era apenas um petiz. No sonho de Gonzalo, ele planava por horas no ar, depois de um grande salto, levando nas costas cansadas o garoto que um dia havia sido, muitos e muitos anos antes. Olhava as cidades lá do alto, cintilando na escuridão: o moleque (ele próprio), montado no velho sapo no qual se transformara, apontava, maravilhado, para as casas minúsculas à distância. O menino só via a beleza noturna, as lojas enfeitadas, as ruas cheias de animação. Já Gonzalucho, o caquético e calejado batráquio, testemunhava a sujeira.
O Natal seria bom para algumas pessoas. Deputados e senadores da República, senis e corruptos, com os bolsos abarrotados de dólares, teriam festas gordas, animadas por rameiras e ratazanas. Mansões, jatinhos, lanchas, hotéis suntuosos, limusines e muito dinheiro em paraísos fiscais.
O sapo e o menino eram a mesma entidade, cada qual vendo o mundo à sua maneira. Gonzalo certamente preferia a realidade vista através de seus olhos de guri. Mas enquanto o rapazinho continuava feliz, equilibrando-se no corpo do pegajoso bufonídeo, sentindo o vento nos cabelos e apreciando as famílias conversando em volta da mesa, durante a ceia, o anuro argentino, idoso, enrugado e barrigudo, mirava a Madame “K”, a milionária, egocêntrica e personalista dirigente de seu país, que, com seus quinze milhões de dólares na conta bancária e um litro de botox nos lábios, era uma das mulheres mais ricas de sua terra. Tão diferente do exemplar e quixotesco José “Pepe” Mujica, militante tupamaro de antanho, presidente do Uruguai nos dias de hoje, vivendo em sua pequena chácara perto de Montevidéu, sem nenhum luxo ou ostentação, dirigindo seu fusca usado e doando noventa por cento do salário mensal para instituições sociais. Para um antigo militante revolucionário como Gonzalo, ver a situação deplorável em que seu país se encontrava, dava tristeza. Todos os anos de combate à ditadura, de torturas e sofrimentos, em aparelhos clandestinos ou nas masmorras dos generais, haviam desembocado numa experiência “democrática” truncada, desviada, anômala, muito distante dos sonhos e ideais de sua geração… Ele sabia que a esquerda argentina, aquela herdeira da gesta armada no campo e nas cidades, décadas antes, era pequena e com pouca força para imprimir seu projeto emancipador… mas mesmo assim, estava consciente de que ela continuava atuando incansavelmente, mesmo que a pugna fosse desigual… Talvez o maior símbolo de resistência da juventude progressista e inconformista de seu país fosse Mariano Ferreyra, assassinado pela burocracia sindical e pelo patronato, com a conivência da polícia e em conluio com o governo nacional, que tem feito o possível para criminalizar os protestos e lutas sociais, reprimindo qualquer um que não queira se alinhar com a máfia obreira ou que luta por reivindicações trabalhistas mais justas. Como Ferreyra, outros militantes perderam a vida ou continuam se arriscando por um mundo melhor…
Já na República do Repolho, as eleições municipais mostraram que o povo só votou em “gerentes”, em “administradores”. Grande parte da população da maior metrópole do país sequer se dignou a ir às urnas: não havia entusiasmo com candidatos de plástico… Por sinal, nenhum deles se lembrou de falar em “ideologia” e a palavra “socialismo” (ah, palavra tão antiga e desgastada, aparentemente) sequer apareceu na campanha… Um candidato de “esquerda” abraçava efusivamente um político notoriamente corrupto, colaborador do regime militar, só para conseguir alguns minutos de propaganda eleitoral na televisão… Até o paletó e a gravata do “jovem” e “intelectualizado” (e há quem acredite nesses qualificativos) prefeito eleito eram iguais aos do candidato rival… Depois de vitorioso, iria, com um sorriso no rosto, apertar a mão dos adversários, seus clones do partido opositor. Seu primeiro ato depois de eleito foi algo importantíssimo: resolveu mudar… o visual! Ganhou um corte de cabelo “modernete” de um personal “hairstylist” das celebridades! Logo em seguida, já de novo penteado, começaria o processo de distribuição de cargos, e mais cargos, e mais cargos…
O menino nas costas de Gonzalucho não via nada disso. Só via a beleza e a poesia do Natal, pelo menos aquela que lhe era “vendida” nos livros, nas histórias de família e nos filmes. Mas o jia rioplatense tinha até dor de cabeça ao se lembrar dos ministros do Supremo, riquíssimos, verborrágicos e protagonistas de um espetáculo midiático diário que parecia não terminar, em busca de holofotes e notoriedade… Se suas vidas fossem investigadas, sabe-se lá o que seria encontrado… Um deles, autoritário e tonitruante, se tornara o “herói” da revista Veja e da “classe média” conservadora (o que por si só é motivo de desconfiança); outro, havia sido colocado no cargo por seu primo, um ex-presidente conhecido por muitos escândalos de corrupção (o qual, por sinal, apesar de todas a evidências, nunca fora mandado para o xadrez); ainda havia o antigo surfista bronzeado, um garotão de praia com topete de brilhantina que se arrastara de joelhos durante anos, atrás de uma centena de personalidades em busca de sua nomeação para a mais alta Corte do país; ou então aquele rapazote iletrado, ignorante e inepto, de barbicha grisalha e uma coroa de calvície despontando no topo da cabeça vazia, um parasita togado que mal conseguia falar qualquer frase mais complexa com coerência. Se por acaso julgassem o maior chefe de quadrilha da nação, um “coronel” bigodudo do Maranhão, o tal senador pegaria uns quinhentos anos de prisão. Mas gente como ele nunca vai para a cadeia… Era Natal, e aqueles magistrados também teriam um peru gordo para digerir no final do ano…
Enquanto isso, um peão de obra, desempregado, bebia para esquecer seus problemas, num boteco de esquina. O operário em questão era um antigo candango que ajudara a construir o Palácio do Planalto, nos anos cinquenta. Mas aquele pobre coitado, ao contrário de alguns, nunca teria um funeral nem homenagens no prédio que ajudou a levantar com suas próprias mãos calejadas. Mesmo em vida, era proibido de entrar naquele edifício majestoso, reservado apenas para as autoridades. O trabalhador braçal, aquele que deu seu sangue e suor para erigir a grande obra de mármore e concreto na capital federal, seria jogado numa vala comum, na periferia da cidade, sem celebração, honras de Estado ou cobertura da mídia.
No resto do país, as chacinas continuavam, bueiros explodiam, cidadãos sofriam em lotações por horas todos os dias, crianças fumavam crack, o ensino permanecia um lixo, professores recebiam salários indecentes, multidões faziam fila em volta de hospitais em busca de atendimento, sertanejos nordestinos comiam lagartos e ratos em meio à seca desoladora, favelas eram incendiadas constantemente, a especulação imobiliária crescia, o problema das enchentes nunca era resolvido, as estradas ganhavam cada vez mais buracos, os transportes públicos não melhoravam, os alimentos ficavam mais caros, a corrupção campeava e no telejornal os apresentadores anunciavam que a nova “classe média” estava cada vez maior, mais rica e mais feliz com a economia! Aquilo tudo incomodava Gonzalo. Até que uma canção do genial Sixto Rodriguez surgiu na memória:
“Cause I lost my job two weeks before Christmas
And I talked to Jesus at the sewer
And the Pope said it was none of his God-damn business
While the rain drank champagne
My Estonian Archangel came and got me wasted
Cause the sweetest kiss I ever got is the one I’ve never tasted”.
Foi então que Gonzalo acordou! E se deu conta de que retornara à realidade. O menino feliz não estava mais montado em suas costas… Olhou demoradamente para as palmas de suas mãos, para seus braços erodidos por rugas, para sua pança gelatinosa. Sentiu desânimo. Ainda assim, Gonzalucho levaria o garoto de seu sonho sempre, sempre consigo. Dentro do velho sapo, o guri ingênuo continuaria a manter alguma esperança em sua alma.
Deu um gole na garrafa de Grant’s, já pela metade. Neste ano, passaria o Natal sozinho, acompanhado apenas de seus botões e de sua tristeza. Estava cansado, solitário, sem ninguém para conversar. E aguardava mais um ano sem saber o que faria, num mundo que cada vez mais sentia não ser o dele. Saiu para caminhar…
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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o lançamento ficcional Cansaço, a longa estação. Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.
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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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