De Bar em Bar XXII: Na Prainha da Paulista
Por Mouzar Benedito.
Uma quadra da rua Joaquim Eugênio de Lima, entre a Avenida Paulista e a Alameda Santos ficou conhecida como “praia de Paulista”, ou simplesmente “prainha”, por causa do grande número de botecos. Há um prédio que toma todo espaço, com uma galeria com saídas para as três vias públicas. Dentro, há duas salas de cinema, várias lojas e alguns bares e restaurantes. A face virada para a Rua Joaquim Eugênio de Lima é só de botecos, com mesas na calçada.
Comecei a frequentar esses botecos quando estudava jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, ali pertinho, mas não gostava, preferia um boteco embaixo do próprio prédio da faculdade, na Avenida Paulista. Depois, já em 1979, trabalhando no Senai, também ali pertinho, comecei a ir lá porque muitos colegas de trabalho transformaram um bar daqueles em ponto de encontro nos finais de tarde, na happy hour segundo alguns (acho horrível essa expressão). Mas apesar da localização, não eram bares caros. Alguns tinham bons chopes e bons tira-gostos.
Um dos colegas que iam lá (e que ficaram meus amigos) era o Chico Villela, com quem eu ficava imaginando bobagens divertidas, como a Cabedoria Federal, inspirada numa expressão muito usada em Minas para falar de coisas absurdas: “não tem cabimento”. A Cabedoria Federal seria um órgão com poderes acima dos constitucionais para julgar o que tinha ou não cabimento. Só fomos concluir como seria essa Cabedoria Federal na época da eleição para a Constituinte. Ele sugeria que eu fosse candidato a Deputado Federal constituinte para, entre outras coisas, propor a criação da Cabedoria. Muita gente ficava curiosa para saber como seria isso e explicávamos dando Paulo Maluf como exemplo. Ele era candidato a tudo quanto era cargo que aparecia. Toda eleição, lá vinha sua presença chata. Tem cabimento? A Cabedoria (formada por um grupo de pessoas que entende bem sobre o que tem ou não cabimento – ou seja, nós mesmos) julgaria. Se carimbasse “Não tem cabimento” no pedido de julgamento, não adiantaria alegar direitos constitucionais nem nada, que ele não poderia se candidatar mais a nada. Mas a coisa não seria restrita à política. Dávamos como exemplos assuntos relacionados a tudo quanto é coisa, como japonês dirigindo kombi cheia de verduras na Avenida Radial Leste, morador da zona rural ir comprar chuchu na cidade… Qualquer coisa mesmo. Se a Cabedoria Federal carimbasse no pedido de análise “Tem cabimento”, tudo bem. Mas se carimbasse “Não tem cabimento”, acabou-se.
Outro que ia lá era o Victor Atamanov, nascido na China, filho de uma família de russos refugiados. Depois da Revolução Chinesa, eles fugiram todos da China também, para a América. Mas vieram divididos. Ele, um irmão e a mãe vieram num navio e chegaram no Brasil, em Santos, pensando que aqui era a “América” que imaginavam, ou seja, os Estados Unidos, onde foram parar suas irmãs, que ficaram morando no Oregon. A família continuou dividida, mas tendo contatos. E manteve a mesma religião ortodoxa, mas acho que de uma seita, pois segundo o Victor contava havia um costume do qual nunca ouvi falar de outros ortodoxos: quando alguém tinha maus pensamentos, tinha que lavar as mãos. Segundo contou, num almoço comunitário, com o pessoal da sua religião, ele flagrava algum dos participantes com olhares interessantes pra cima da mulher ou filha de outro, e correr para lavar as mãos. Uma prima dele, gostosíssima, atraía a atenção de quase todos os homens. Durante todo o almoço havia fila na frente da única pia…
Um dia o Marcos, colega do Senai, disse que o Victor atropelava as palavras e às vezes não usava verbo. Ele gostou da observação e passou a falar sem verbo mesmo. E muitas vezes sem artigos, preposições etc. Engolia o máximo de palavras que podia. Por exemplo: não dizia mais “eu vou ao cinema hoje à noite”, mas apenas “eu cinema noite”. Na saída de férias, perguntaram o que ia fazer, não disse “vou viajar para o Oregon, para visitar minhas irmãs”, mas apenas “eu Oregon irmãs”. Enfim, era direto: “Você comigo almoço?”, “chefe bravo erro”, “eu chope pastel”. O mais interessante é que todo mundo entendia.
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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
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