A arte do assobio
Por Roniwalter Jatobá.
– Você sabe assobiar?
Confesso que a indagação me pegou de surpresa, quando certo dia participava de um churrasco à moda gaúcha na casa de José Gregório, o mais antigo sondador geológico no Brasil. Ainda mais que, naquele momento de confraternização, ele falava de usinas hidrelétricas, morros de minérios e a vida solitária da profissão.
– Certamente – respondo meio apressado. – Acho que, em algumas regiões do País, há crianças que aprendem o assobio bem antes da fala.
Mais tarde lembrei-me de um amigo bom de bico, que me recomendou a arte do assobio, inclusive para surtos depressivos em casos de paixão.
– A minha receita é simples – disse ele à época. – Assim que a pessoa sentir dentro da alma aquele ligeiro mal-estar, procure em sua memória a trilha musical mais simples de sua vida. Vale até canção de ninar, o que em alguns casos é a mais recomendada. Em qualquer lugar que esteja, comece a assobiar, inicialmente bem baixinho, que é para não incomodar as pessoas mais próximas. Depois, quando descobrir que o ritmo está devidamente integrado com a sua respiração, aumente o som e não se incomode com as resistências à felicidade. Já conheci uma pessoa que ficava possessa de ódio quando estava em um elevador e alguém, em geral um boy, entrava assobiando com a alegria estampada na cara. Um sujeito chato, sem dúvidas.
Aprendi a arte do assobio bem cedo. Tinha doze anos. Um dia, menino ainda, estava sentado num banco de madeira na deserta estação de trem. Depois de passar o final de semana na roça, voltava aos estudos, para a segunda época em matemática, no Ginásio Augusto Galvão, em Campo Formoso. O pai havia me deixado ali, no começo da tarde, junto com a pequena mala com roupa limpa e a caixa com frutas da terra, mangas, graviolas e umbus. Depois, saíra em disparada no cavalo vermelho, porque à noite, em casa, ia acontecer a festa de Reis.
Era um domingo. Janeiro. Na claridade da luz ainda forte, o menino ficou olhando a estrada de ferro já coberta de vegetação rasteira, dormentes carcomidos, e procurou sentir se tinha algum tremor nos trilhos, primeiro sinal da chegada do trem. Atrasado, como sempre.
Em seguida, o menino venceu a timidez e foi até a sala do chefe da estação, a face murcha, o rosto meio escuro desbotado, a farda azul, os cabelos embranquecidos. O homem conferia um papel no telégrafo.
– Trem só amanhã – ele disse.
– O que fazer?, o menino pensou.
Escurecia. O dia terminava com rápidas e escuras sombras. O menino voltou para casa. Eram apenas seis quilômetros, mas nunca tinha feito o caminho com os próprios pés. Ia ou vinha no lombo de animais. Agora, seus passos ficavam pesados na areia da estrada.
Boca da noite. Pela primeira vez, o menino sentiu um grande medo. Pensou em sua mãe, agora preocupada, e no Dia de Reis. Mas logo outro pensamento envolveu a caminhada, como se os espíritos da mata fossem saltar em sua frente ou, de surpresa, atacá-lo pelas costas. O menino tremeu assustado com a escuridão.
De repente, surgiu uma ideia, há tempos ensinada pelo avô.
– Assobiar, meu filho, espanta o mais tenebroso fantasma.
Os primeiros sons vieram tímidos, sem força, mas pouco a pouco foram ganhando volume e harmonia. Em instantes, ele teve a impressão de que a mata e os bichos calaram. Andou mais depressa. Logo, abria a porteira e ouvia o som de um grupo musical, animando a festa em sua casa.
Pela primeira vez, passou a noite em claro no meio de cantos alegres – e folia.
***
Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
Toda vez que ouço uma canção em assobio, minha alma acorda!
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