O ‘folha-seca’ da arquitetura
Por Flávio Aguiar.
Morreu Niemeyer, para mim o ‘folha-seca’ da arquitetura brasileira e mundial.
Quem lembra da ‘folha-seca’? Foi uma das invenções brasileiras no futebol, ao lado da bicicleta (Leônidas), do chute de bico (Friedenreich), do goleiro jogar adiantado em relação às traves (não me lembro o nome, mas foi um goleiro do Fluminense) e do 4-3-3 (seleção de 1958), entre outras.
A ‘folha-seca’ foi invenção de Waldyr Pereira (antes dessas horríveis padronizações ortográficas, o nome dele era escrito com y). Consistia em bater com o peito do pé na bola, por baixo, de modo que ela girava por si mesma, descrevia uma curva e perto do gol subitamente dava uma caída para um lado ou até para baixo, como uma folha seca ao vento.
Não confundir ‘folha-seca’ com ‘bola-em-curva’, de que era rei, por exemplo, o Nelinho, que jogava no Cruzeiro. Nunca vi ninguém bater uma ‘folha-seca’ exatamente como Didi o fazia. Só ele. Deixou duas mais famosas nas minhas retinas nada fatigadas de vê-las continuamente em filmes. A primeira foi no Maracanã, o gol da classificação do Brasil para a Copa de 58, contra o Peru (em Lima o Brasil empatara em 1 a 1, gol de Índio), quando o Brasil venceu por um magérrimo 1 a 0. A segunda foi nessa Copa, na vitória de 5 a 2 sobre a França, quando o goleiro francês, enganado pela curva da bola, foi parar à esquerda do gol (visto por trás), caído no chão voltado para as traves.
Mas Didi era o homem das folhas-secas simbólicas. Ainda na Copa de 58 sua jogada mais importante foi colher a bola no fundo do gol brasileiro, quando a Suécia inaugurou o placar na final, e ir caminhando, a passo lento, animando os companheiros, até o centro do gol, quando teria dito: “vamos acabar com esses gringos”. O Brasil estava acostumado a rememorar frases solenes, como “Independência ou Morte!”, ou “Os que forem brasileiros que me sigam!”. Bom, a do Didi também foi solene, mas de outro jeito.
Pois Niemeyer foi também um homem de ‘folhas-secas’. Já é lugar comum dizer que ele era o arquiteto das linhas curvas, ‘sensuais’. Sim, mas não só referentes (ainda que também) ao corpo feminino, também, penso, aos rios brasileiros, esses cheios de meandros e igarapés, remansos e dúvidas metafísicas, como a relativa ao Guaíba, de Porto Alegre, se é mesmo rio ou lago. Ou estuário. Ou outra coisa que ainda não se descobriu.
Com suas linhas curvas Niemeyer inovou a escola que o criou, a germânica Bauhaus, com suas linhas funcionais e sua tendência profundamente racionalista e didática de um novo modo de vida, mais iluminado e até igualitário. Contribuiu para embelezar a paisagem brasileira de um modo muito interessante, numa época em que predominava a casa “caixão” (lembram?, anos 1940, 50), funcionais, mais uma verdadeira prosa sensaborona, por vezes, entregue às suas linhas retas e a seus ângulos retos também.
Mas Niemeyer foi além, nas suas linhas curvas, estilo ‘folha-seca’. Comunista, foi autor de algumas mais belas igrejas do Brasil, como a Catedral de Brasília e a de Pampulha, em BH. Na gótica São Paulo ele introduziu o Copan, aquela surpresa de “S”.
Sua última ‘folha-seca’: casar aos 99 anos, cheio de sensualidade.
Vale lembrar, por fim, que embora nascidos com 21 anos de diferença, 1907 (ele) e 1928 (Didi), eles foram de certo modo contemporâneos em campo: enquanto Didi desfilava suas ‘folhas-secas’ nos gramados, Niemeyer desenhava algumas das principais obras de Brasília.
Gênios, cada um em seu campo.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Seu próximo livro, A Bíblia segundo Beliel será lançado pela Boitempo em dezembro de 2012. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
muito bom !
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