O pior da democracia é a liberdade aparente


Por Izaías Almada.

Aos amigos, colegas de blog e queridos leitores quero deixar para seu deleite e reflexão esses versos de Fernando Pessoa, escritos sob o heterônimo Álvaro de Campos, um dos mais belos poemas que conheço. Enquanto isso, como o final de ano se aproxima, aproveito para tirar férias dos meus artigos e colunas, desejando a todos um auspicioso 2013, se a prepotência e a intolerância da direita israelense, a indústria de guerra norte americana e a ignomínia do STF brasileiro deixarem…

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que venho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

4 comentários em O pior da democracia é a liberdade aparente

  1. Forma de repressão silenciosa, eis a liberdade aparente, em uma democracia.

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  2. Suely Farah // 02/12/2012 às 3:00 am // Responder

    Dobrada à Moda do Porto

    Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
    Serviram-me o amor como dobrada fria.
    Disse delicadamente ao missionário da cozinha
    Que a preferia quente,
    Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

    Impacientaram-se comigo.
    Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
    Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
    E vim passear para toda a rua.

    Quem sabe o que isto quer dizer?
    Eu não sei, e foi comigo …

    (Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
    Particular ou público, ou do vizinho.
    Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
    E que a tristeza é de hoje).

    Sei isso muitas vezes,
    Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
    Dobrada à moda do Porto fria?
    Não é prato que se possa comer frio,
    Mas trouxeram-mo frio.
    Não me queixei, mas estava frio,
    Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

    Álvaro de Campos, in “Poemas”
    Heterónimo de Fernando Pessoa

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  3. Suely Farah // 02/12/2012 às 6:12 pm // Responder

    Dobrada à Moda do Porto

    Álvaro de Campos

    Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
    Serviram-me o amor como dobrada fria.
    Disse delicadamente ao missionário da cozinha
    Que a preferia quente,
    Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

    Impacientaram-se comigo.
    Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
    Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
    E vim passear para toda a rua.

    Quem sabe o que isto quer dizer?
    Eu não sei, e foi comigo…

    (Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
    Particular ou público, ou do vizinho.
    Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
    E que a tristeza é de hoje).

    Sei isso muitas vezes,
    Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
    Dobrada à moda do Porto fria?
    Não é prato que se possa comer frio,
    Mas trouxeram-mo frio.
    Não me queixei, mas estava frio,
    Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

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  4. Suely Farah // 05/12/2012 às 4:10 pm // Responder

    Boas férias, Izaías!
    E um derradeiro comentário sobre as adversidades a um breve futuro luminoso:

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