Crônicas de Berlim (21): As cores cambiantes do outono
Para um brasileiro, mesmo do sul do Brasil, onde a diferença da duração dos dias e das noites entre o inverno e o verão já é significativa, é difícil visualizar e sentir o que se passa por aqui. A velocidade da mudança é muito grande. Para se ter uma ideia, o nosso brasileiro teria que ir até Punta Arenas, no Chile, no extremo sul da América continental, depois da Patagônia, e aí poderia sentir algo parecido com o que acontece em Berlim nesta época do ano.
No outono, o dia encolhe e a noite cresce à base de quatro minutos por dia. Isso significa que numa semana, há uma diferença de 28 minutos, mais ou menos, entre noite e dia. E isso não é muita coisa. Como relatei na crônica anterior, estive há já quase um mês na Islândia: a diferença diária era de seis minutos. Fiquei uma semana lá: portanto, quando saí, juntando manhã e noite, o dia era 42 minutos menor, e a noite maior. Um quarto de hora. Para se ter uma ideia do que se passa na Islândia, a gente teria que por os pés no continente Antártico, na fímbria dos gelos eternos de lá.
É verdade que as temperaturas médias das latitudes no hemisfério sul são mais baixas do que no hemisfério norte, talvez porque a quantidade de água marítima naquele sejam maiores. Mas o problema não se refere à temperatura. O problema é a quantidade de luz.
Porque há outra variação importante. Até há duas semanas atrás, o outono aqui em Berlim era decididamente luminoso. Céu azul, árvores coloridas pela decadência das folhas, predomínio nelas do amarelo, vastos tapetes de folhas caídas na relva já queimada pelas geadas, tudo dá a impressão de uma “alegre melancolia”, se me permitem o oximoro.
De repente – não mais mas nem menos – tudo muda. Num meio de semana qualquer (na última) o céu se agrisa, as folhas se precipitam com mais velocidade, as névoas matinais se instalam, os crepúsculos cinzentos começam mais cedo. Os dias parecem não nascer, nos fins dos dias uma garoa acinzalhada se espraia pela cidade, e assim passam o dias e o tempo.
Não há mudança. Dias e dias se passam assim. A gente passa a considerar que o verão foi um intervalo precoce, fugaz e feliz entre dois invernos.
Claro: há climas mais violentos. No Canadá, onde sobrevivi a três invernos, as temperaturas chegam facilmente a menos 30º C. Peguei menos 40º C. O pulmão congela por dentro. Há recomendações de que numa temperatura dessas não se respire fundo nem forte: cristais de gelo podem entrar e congelar alvéolos no pulmão, provocando até gangrena. Cruz credo vôte cobra tutufum treis vêz que a Uiara me proteja!
Mas o inverno no Canadá, que dura mais da metade do ano, é ensolarado. Menos 30, mas com sol e neve às pampas, o que também ilumina.
Aqui, a partir do começo de novembro os berlinenses gemem pelo sol que se foi, deus agonizante. Dá pra entender: apesar de protestantes na maioria, os berlinenses continuam tendo algo de pagãos, adoradores do sol. Do Grande Ausente em boa parte do ano.
O que fazer então? Entregar-se à esfuziante vida cultural da cidade que, nessa época do ano, fica, em compensação, esfuziante à demasia.
Ontem estivemos num hotel – o Bogotá, bem na Kurfürstendamm – onde há décadas um grupo de “meia idade”, digamos, toca jazz: clarinete, bateria e piano. A gente vai lá, ouve a qualidade profissional do grupo, e paga assim, o vinho ou cerveja ou água ou café ou refri que a gente consome. E ponto. Altíssima qualidade, a preço de batata, porque, proporcionalmente, a banana aqui é cara. Depois, é claro, a gente é convidado a deixar uma gorjeta para os músicos, o que se faz com prazer, dada a excelente qualidade do trio. De quebra, dançarinos encantam a vista com seus passos no foxtrot, no two-step, nos blues mais lentos, porque ali também há uma escola de dança, em todos os sentidos.
E depois a gente sai com o sol interior mais iluminado. Esta é uma lição de Berlim: uma cultura para todas as idades.
Apesar do sol morrente.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Seu próximo livro, A Bíblia segundo Beliel será lançado pela Boitempo em dezembro de 2012. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Berlim fica tão colorida e iluminada nas tuas letras, tio Flávio. Nem importa a pequena quantidade de luz, fez-se clarão!
Beijo pra ti.
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maria ap aguiar berlin sim e iluminada voce e muito mais curto muito voce e sua iteligencia gosto de escrever i ler so tenho 4 serie primaria ti aconpanho pelo radio adoro voce bjos
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