O sapo Gonzalo em: o ovo do avestruz

Por Luiz Bernardo Pericás.

O calor era tanto que Gonzalo, nosso provocador e muitas vezes incompreendido sapo platense, decidiu comprar uma lata de cerveja de um vendedor ambulante ali mesmo, na Praça Fellini, onde costumava frequentar semanalmente, mesmo num horário tão inusitado como aquele, no início da manhã. Sentia o corpo amolecido…

A tinta do jornal que carregava deixara seus dedos escurecidos. E as marcas negras de suas digitais ficavam impressas, como desenhos abstratos em nanquim, no pequeno recipiente de metal, agora levemente amassado pela pressão de suas ventosas enrugadas.

Sentou-se no banco de madeira descascada, deu um gole demorado na birra resfriada e abriu o diário, para se inteirar das notícias. Mas não teve tempo de terminar uma matéria sequer. Afinal, como era de praxe naquele lugar, apareceu um desocupado para incomodar o anuro hermano. Tudo bem…

O homem de meia-idade, calças jeans desbotadas e camiseta branca de algodão, ainda que pudesse escolher outro canto qualquer para descansar seus ossos, decidiu se acomodar justo ao lado de Gonzalucho! Não tinha saída mesmo…

Você, caro leitor, já sabe o que ocorreu. O indivíduo, primeiro, começou a dar olhadelas de viés nos artigos que o batráquio tentava ler. Como o esverdeado herói dos pampas sentia-se cada vez mais incomodado com a intromissão do estranho, fechou o periódico e ficou olhando para o forasteiro, de modo despeitoso.

“Não há novidades na imprensa…”, comentou o sujeito.
“É o que parece…”, retrucou Gonzalo, sem muito entusiasmo.
“Se você soubesse o que aconteceu com um amigo meu…”

Pronto! Aí estava a deixa! Daí em diante, o bufonídeo teria de se preparar para mais uma narrativa inusitada. E longa! Pelo menos, era o que sempre ocorria ali… Afinal, aquela era a Praça Fellini! Se Gonzalo quisesse paz e sossego, que procurasse outro parque para flanar, ora bolas!

“Pode contar…”, falou o verdoso, resignado.  

A voz do sapo, de fato, não expressava ânimo algum. Já pensava até em colocar algodões nas cavidades auriculares. Mas, por educação, decidiu escutar o que o colega tinha a dizer.

“Então vamos lá, sapinho! Vou começar!”

Ao entrar em casa, percebeu, estirada na sala, a carcaça em decomposição de um avestruz. Mas não se importou. Colocou a pasta executiva em cima de uma cadeira, afrouxou a gravata, tirou o paletó e arregaçou as mangas da camisa engomada, empapada de suor. Caminhou para o mini-bar, preparou um uísque com gelo e voltou para seu living room. Exausto, após um dia intenso de trabalho na repartição, só queria relaxar. Acomodou-se no sofá (um presente de sua velha tia, que o mimara desde criança), mexeu a bebida com o dedo indicador e deu um gole. Por muitos anos, só tomara estilo “caubói”. Para ele, esse era o jeito de um homem consumir um bom scotch. Mas com os problemas no fígado, que haviam surgido alguns anos antes, resolvera suavizar seu drinque favorito. Prometera a si mesmo que só tomaria duas doses por dia. Entornava até seis, quando chegava estressado. Como vivia sozinho, não havia esposa ou parentes para repreendê-lo. Bebia à vontade, muitas vezes até seu limite: gostava de ter essa liberdade.

Chupou o dedo, ainda molhado com o líquido dourado, e deu mais uma golada, com prazer. Só então se lembrou que havia um avestruz putrefato estendido no piso de seu apartamento.

Virou a cabeça e deu uma rápida mirada no que restara do animal. O cadáver apresentava um aspecto grotesco: no lugar dos olhos, dois buracos profundos; o bico, ressecado, perdera a coloração; as penas, esticadas e espalhadas em volta, sem qualquer brilho; e o pescoço, retorcido, manchado de sangue. Uma imagem pouco agradável… e inexplicável. Como não era criador de emas ou estrutionídeos, nem vivia perto de um zoológico, não entendia como aquele bicho fora parar logo ali, no seu lar.

Quando olhou com mais atenção, notou milhares de vermes pequeninos, branquicentos e anelados, movendo-se desenfreadamente, pulando para fora das vísceras do animal. E mosquitos, quase imperceptíveis à distância, voando, em círculos, em torno da carcaça. Mesmo assim, ajeitou-se no sofá, esticou as pernas e, mais uma vez, tomou de seu copo. Só depois de alguns minutos é que percebeu, ao lado do penachudo, um enorme ovo branco, como uma escultura, imóvel e liso, decorando o ambiente. Mas nunca comprara aquele objeto: aparecera naquele mesmo dia, junto com o struzzo estirado no piso. Quem sabe houvesse alguma conexão entre os dois… Talvez… Mas isso aparentemente não importava. Estava tão cansado que achou melhor, por ora, não mexer em nada ali.

De manhã, revigorado por uma boa noite de sono, pensaria no que fazer. Mas no momento, o ideal seria deixar de lado a “possível” preocupação. Ligou a televisão e ficou assistindo a algum programa entediante até altas horas da madrugada. Depois foi dormir.

Acordou ao primeiro raiar do sol, com um pouco de ressaca, como sempre. Para variar, tomara mais do que devia na noite anterior, e os efeitos do trago eram visíveis nas olheiras profundas e no hálito amargoso. Coçou a barriga, lavou o rosto e se vestiu lentamente. Quando terminava a xícara de café, olhou para o relógio e se deu conta que estava atrasado. Nem sequer se recordou do avestruz em decomposição. Colocou rapidamente o paletó, agarrou a pastinha de couro marrom comprada no camelô e correu para pegar o primeiro ônibus para o serviço.

Chegou em sua residência no final da tarde, como fazia todos os dias. E, as usual, cumpriu seu ritual costumeiro: arremessou a bolsa achatada para longe, tirou o casaco pestilento, afrouxou a gravata, levantou as mangas do punho até o cotovelo. E preparou seu uísque. O lanche rápido que fazia habitualmente no boteco da esquina, ao sair da repartição, servia como jantar, mas não era o suficiente para forrar o estômago. Por isso, talvez, o álcool subisse tão rápido à cabeça.

De qualquer maneira, quando terminou de virar o primeiro copo, se lembrou do struthio camelus que até então havia ignorado completamente. Voltou a cabeça para trás, e lá estava o emplumado, com o mesmo aspecto horripilante de antes, junto ao ovo, ainda no mesmo lugar.

Continuava intrigado. Mas, novamente, a fadiga e a falta de interesse nos mistérios do mundo animal fizeram com que ele deixasse de se atormentar com aquilo. Afinal de contas, nem o pescoçudo apodrecido nem o ovo o incomodavam. Não tinha a menor ideia de como haviam chegado até ali, mas se estavam lá, que ficassem. Desta forma, acreditou ter encontrado a solução para um problema que quase não gastou seu tempo tentando resolver.

Encheu outro copo com o Glenfiddich falsificado que comprara no supermercado de seu bairro e o virou inteiro pela goela. Levemente embriagado, ligou o aparelho de TV. Mas não teve condições de acompanhar filme algum. Em poucos minutos, dormia um sono pesado. Despertou no meio da noite, levantou-se do estofado, caminhou tropeçando até o quarto e se deitou.

A alvorada chegou, e com ela, também as responsabilidades. Como de costume, mal conseguiu terminar de mastigar o pão murcho com a manteiga endurecida, que tanto lhe causava enjoo: em cima da hora para bater o ponto, disparou para o emprego, no centro da cidade.

Distraído, pisou no ventre do avestruz. Uma gosma estranha, amarelada, que saía da ave, grudou em seus sapatos. Nem notou; tinha de pegar a condução.

Foi para o escritório dentro da lotação obsoleta, amassado como se estivesse numa lata de sardinhas. Mais um dia de tédio; mais um retorno estafante, em pé, apertado no meio da multidão. E, de novo, entrava em seu domicílio, com o olhar distante e a mente em alguma ilha paradisíaca longe dali.

Depois do ritual de sempre, já esparramado em seu assento acolchoado e decrépito, sentiu um estranho odor. A princípio não sabia de onde vinha, nem o que poderia ser. Até que se deu conta de que era o resultado da podridão da carcaça. Ainda povoada de helmintes minúsculos, exalava um cheiro desagradável.

Com um lenço sobre o nariz, pensou no que poderia fazer para resolver a questão: talvez jogar fora o autruche, ou quem sabe, esvaziar um frasco inteiro de perfume sobre ele. Deu um gole no destilado. Matutou um pouco. Analisou a questão. E decidiu, após alguns minutos, que seria fácil se acostumar com aquela emanação sem demasiado esforço, afinal de contas.

Tendo resolvido deixar tudo como estava, ligou a televisão. Assistiu à sessão coruja e depois foi para seus aposentos. 

O canto do galo trouxe um dia quente; a tarde, quase insuportável. O escritório não tinha ar condicionado nem ventiladores, o que tornou o lavor de todos lento e desesperador…

Quando o expediente acabou, comeu em dois tempos um sanduíche de mortadela no boteco de sempre, tomou um café amargo e seguiu para casa. Instalado confortavelmente no sofá, de copo entre os dedos, percebeu que a fedentina do avestruz havia piorado, impregnando todo o ambiente. Mas, de uma forma estranha, estava se acostumando e até gostando do odor. Ingeriu seu puro malte “paraguaio” com calma.

Então, ouviu um leve ruído. Olhou para trás e notou que o ovo, que ficara dias no mesmo lugar, começava a rachar lentamente. Primeiro surgiram minúsculas fissuras, que foram aumentando gradualmente; depois, rachaduras maiores, perceptíveis até de longe: a casca se quebrava. E então, um pequeno avestruz foi surgindo, a cabeça, o pescoço, as asas, as patas. Um bicho estranho, desgrenhado, desengonçado, que rompia a crosta em pedaços, na tentativa de se libertar.

Após se livrar completamente de sua antiga morada, parou por alguns minutos, esforçando-se por se equilibrar. Olhou, intrigado, para todos os lados. Estranhamente, a pequenina ave se parecia, de alguma maneira, com o embriagado burocrata, dono do apartamento. Cada contorno, cada detalhe do animal se assemelhava ao indivíduo com o copo de bebida na mão.

Os dois se entreolharam, atônitos. Por um momento, ficaram petrificados.

Em seguida, o jovem avestruz, com a penugem ainda em formação e o bico amassado, começou a andar aos trancos em direção ao sujeito enfastiado, trocando as pernas a cada passo. Pulou com dificuldade no sofá e sentou-se ao lado de seu novo amigo.

O homem, intrigado, deu mais um gole. E ligou a televisão. Os dois, então, ficaram o resto da noite juntos, assistindo a filmes antigos.

 

Gonzalo escutou tudo sem nada dizer. Depois, o silêncio. Como ninguém abriu mais a boca por vários minutos, um certo constrangimento tomou conta do ambiente. Percebendo a situação incômoda, o estranho apenas se levantou, começou a mover os braços de baixo para cima, repetidamente, em alta velocidade, como se fossem asas, e saiu voando da praça como um pássaro!

Amigo leitor, acredite, Gonzalucho se assustou com a cena. Por outro lado, estava se sentindo bem melhor, agora que não havia mais ninguém para importuná-lo. Até que notou, justo a seu lado, onde o forasteiro estivera sentado o tempo inteiro, um grande ovo. Arregalou os olhos, surpreso. Até que, subitamente, ouviu um “crec”! E teve a nítida sensação que a casca estava para se romper!

O sapo argentino não esperou nem mais um minuto sequer! Saiu correndo dali como um relâmpago! Não iria arriscar ter mais surpresas!

***

Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o lançamento ficcional Cansaço, a longa estação. Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

***

Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

2 comentários em O sapo Gonzalo em: o ovo do avestruz

  1. Tonho da BaraFunda // 10/11/2012 às 9:09 pm // Responder

    Sensacional!!! Ainda que tenha de reler algumas vezes o mesmo tetxo, porque as aventuras do Gonzalucho nos fazem remover a alma por inteiro!!! Arago

    Curtir

  2. Muito boa esta aventura do sapucho! Nem Murilo Rubião faria melhor!

    Curtir

Deixe um comentário