Crônicas de Berlim (19): Objetos de culto
Toda e qualquer nação, todo e qualquer grupo social, família, escola, sociedade, etc., tem seus objetos de culto. Um exemplo bem concreto: o Brasil e a bola. Já outro um pouco mais abstrato: o Brasil e a moda.
Claro: em todo lugar há de tudo e de todos. Estou falando de tendências gerais. Há até o contra-culto: no Brasil há quem deteste bola, assim como no meu estado natal, o Rio Grande do Sul, há quem deteste carne de rês e chimarrão. Meu pai, por exemplo, nunca tomou chimarrão. Já minha mãe e minha avó, a mãe dele, tomavam chimarrão religiosamente pelo menos duas vezes por dia, uma de manhã e outra no fim da tarde. Talvez uma coisa tivesse a ver com a outra.
Mas a Alemanha é especialista em ter objetos de culto abstratos. Por exemplo: na Suíça cultuam-se relógios; na Alemanha, a pontualidade. Você foi convidado para jantar às sete horas? É bom não chegar nem às cinco para as sete, nem às sete e cinco. Se chegar antes, espere até a hora marcada para tocar a campainha, mesmo que esteja 10 graus abaixo de zero na rua (os prédios só têm porteiros eletrônicos). E em geral eles ficam atônitos quando a gente explica que no Brasil ser pontual num caso desses (convite para jantar) pode ser falta de educação. Convidado para as sete horas, chega-se às seis para ajudar a cozinhar ou às sete e meia, para não atrapalhar os donos da casa.
Aqui até os atrasos devem ser pontuais. Na universidade, se a aula está marcada para as 11 horas, ela certamente vai começar às 11:15. Pontualmente: nem às 11:14, nem às 11:16. São os “15 minutos acadêmicos”, assim chamados. Um trem atrasar é uma catástrofe moral, um golpe na auto-estima coletiva.
Outro objeto de culto bem abstrato: a discrição. Ninguém fica comentando: “nossa, como você engordou”. Muito menos: “nossa, como você emagreceu”, porque se estará insinuando, indiscretamente, que o objeto do comentário estava gordo antes. Corpo, aqui, é como dinheiro: não se fala a respeito, a não ser genericamente.
No caso do dinheiro, o comportamento esperado é rígido. Se você tem dinheiro, não ostente. Se você não tem, não toque no assunto. Um dos pecados mortais do ex-presidente Christian Wulff, forçado a renunciar no ano passado por ter sido pego mentindo sobre assuntos triviais, foi o de ser um notório ostentador de sua riqueza e de ter amigos ricos. A mídia alemã o desancou por causa disso, por aparecer sem pejo frequentando clubes e praias de gente rica.
No caso do corpo, o caso é paradoxal. Não se fala do corpo alheio, nem do próprio, a não ser no círculo mais íntimo da intimidade. Mas se há um lugar onde o corpo foi e é objeto explícito de culto é a Alemanha.
O culto ao nudismo, ou naturismo, por exemplo, instalou-se na Alemanha no final do século XIX. A motivação oscilava entre um culto romântico que via a natureza como regeneradora do indivíduo e de sua saúde, e da sociedade e de seu bem-estar, e um culto algo higienista de um ideal quase atlético para o corpo.
Muitos médicos esquerdistas alemães tornaram-se adeptos do nudismo, pois viam na nudez dos corpos misturados um ideal de igualdade. Não médicos também: a nudez encarnava uma metáfora da futura sociedade sem classes nem diferenças entre pobres e ricos, homens e mulheres.
O nazismo teve um relacionamento atribulado com o nudismo. Inicialmente o proibiu, ou pelo menos tentou contê-lo, como coisa de comunistas e outros “degenerados”. Mas ao mesmo tempo cultou o princípio e o ideal do “mens sana in corpore sano”. Claro que ambos, “mens” e “corpore”, eram exclusivamente arianos. Voltando a liberar o nudismo, proibiu-o para judeus, comunistas, outras raças inferiores, etc. E temendo o homossexualismo (apesar ou mesmo por causa da latência de um homossexualismo reprimido em muitas manifestações nazistas – até hoje, entre os neonazis) baniu o nudismo dos centros urbanos, permitindo-o no campo, em praias mais afastadas, etc.
O culto do nudismo aberto voltou com a Alemanha comunista. Talvez por temer sua prática coletiva em lugares privados, o governo oriental liberou-o em praias vizinhas aos centros urbanos e parques. Também houve essa prática no Ocidente, mas com menos intensidade. Mas ela era comum, por exemplo, e permanece até hoje, em saunas mistas, onde você pode entrar de roupa (em algumas, em outras não), por sua conta e risco. Certamente choverão olhares reprovadores sobre a mais minúscula sunga ou exíguo biquini que você esteja usando.
Especialistas apontam que, curiosamente, depois da reunificação (que no dia 3/10 comemorou 22 anos) o culto ao nudismo diminuiu na antiga Alemanha Oriental e aumentou na antiga Ocidental. Não disponho de dados estatísticos a respeito.
Aqui em Berlim é possível ver o nudismo total praticado em praias reservadas para tal, onde inclusive é proibido permanecer com roupas, ou, mais discretamente, em parques no meio ou na periferia da cidade. Em geral, nos parques, há áreas – não necessariamente discretas – onde os praticantes desse culto se concentram. Lamentavelmente também se vêem “bicões” – sempre homens – que ficam sentados, vestidos, nas proximidades, para ver as mulheres tirarem a roupa. Mas se alguém se sentir molestado por esse tipo de atitude pode chamar a polícia – que ela virá para convidar os “bicões” a irem passear em outra freguesia.
É bom lembrar, também, que esse tipo de culto ou atitude não significa que na Alemanha você sai nu em qualquer parte ou de qualquer jeito em qualquer lugar. Aqui também existe atentado ao pudor e, sobretudo, atentado àquele culto à discrição. Se você possui um belo corpo, não o ostente. Se não, não precisa se envergonhar. Mas, em ambos os casos, mostre-o com contenção e temperança.
***
Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés (finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012). Ambos estão à venda na Livraria da Travessa e na Gato Sabido pela metade do preço dos livros impressos.
***
Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Seu próximo livro, A Bíblia segundo Beliel será lançado pela Boitempo em dezembro de 2012. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Deixe um comentário