Militante bagunceiro?

Centro Acadêmico da História (FFLCH/USP). Fotografia de Ana Paula Paiva (Valor)

Por Mouzar Benedito.

Um monte de abobrinhas no meio de textos sérios, de muita reflexão, é o que me parece vendo meus textos no blogue da Boitempo. E isso me faz lembrar dos tempos de estudante de Geografia, na USP.

Entrei lá em 1967 e já no fim do ano fui eleito para a diretoria do “Centrinho”. Nosso órgão estudantil, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (antes de dividir, passando a ser só Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a Faculdade de Filosofia incluía as chamadas “exatas”, como Física, Química, Geologia etc.) era o então famoso Grêmio da Faculdade de Filosofia, como era chamado resumidamente, e cada departamento tinha um “centrinho” ligado ao Grêmio.

A direção do centrinho era composta por seis pessoas, e cada diretor tinha um armário. Dava gosto ver os armários dos meus colegas: só livros de Marx, Engels e outros teóricos marxistas. Alguns livros encapados com papel opaco, podia-se saber: eram do Trotsky, pois a maioria tinha um baita preconceito contra textos e ideias trotskistas.

Enfim, era isso: os armários dos meus colegas eram repletos de textos marxistas não trotskistas, e também um pouco de livros de Geografia.

Quando abria meu armário, via a cara de desaprovação de alguns dos demais diretores: tinha livros marxistas, sim. Mas eram bem menos e boa parte do espaço era ocupado por garrafas de cachaça da marca Levanta e Cai, que eu trazia de Minas e de vez em quando abria alguma depois da aula, apreciando o conteúdo conversando com colegas no pátio – por sinal todos eram de esquerda e a maioria marxista, mas tinha trotskista e anarquista também.

A gente estudava muito, tinha muita curiosidade e seriedade quando precisava. Aos sábados e domingos, o prédio da Geografia tinha grupinhos estudando temas políticos e/ou geográficos, mas no final do dia a minha turma não ia para casa, tomávamos um pouco da Levanta e Cai e depois seguíamos para algum boteco, pra tomar cerveja. E falávamos muita abobrinha.

No final de 1968, não concorri à reeleição. A chapa que apoiei perdeu, ganhou uma só de gente “séria”, militantes em tempo integral, grandes leitores e teorizadores. Pouco depois veio o Ato Institucional número 5, o famigerado AI-5.

Vi todo mundo com as barbas de molho – e também pus as minhas – mas continuei tentando viver como antes, militando contra a ditadura agora mais braba, mas bebendo minhas cachaças. Além dos meus companheiros mais antigos, enturmaram conosco alguns calouros (e calouras) que, como nós, eram de esquerda, mas dedicavam algum tempo para coisas menos dogmáticas.

Até nos namoros o pessoal mais sério era meio dogmático: seus namoros também eram “sérios” e geralmente entre militantes da mesma organização. Minha turma era bem anárquica nisso: os namoros eram geralmente pouco duradouros (na maioria das vezes uma “ficada”) e não havia restrições quanto a tendências. Só evitávamos as meninas de direita e nossas colegas também evitavam os rapazes de direita.

Em 1969, a coisa andava terrível na Faculdade, a repressão aumentava, radicalizava, mas aguentávamos firmes na Geografia, tanto o pessoal mais dogmático.

Alguns militantes mais linha dura achavam que nossa turma era muito bagunçada e só pensava em farrear, e eu respondia que a ditadura estava se fechando cada vez mais e que com nosso estilo resistiríamos tanto quanto eles.

No meio do ano, a repressão baixou feio, prendeu estudantes dentro do prédios, numa das invasões com centenas de militares e policiais, e muita gente se mandou em seguida. Dos seis diretores do Centrinho, só restou um. Quatro foram para o exterior e um se afastou da diretoria. Não critico a saída deles, corriam risco de prisão, torturas e morte. Outros estudantes partiram para organizações clandestinas.

Mas nós, bagunceiros, continuamos resistindo daquela maneira considerada “irresponsável”. Admirávamos e respeitávamos quem foi para a luta armada, mas optamos por continuar com o nosso método. O único diretor do centrinho me falou que sozinho ele não aguentaria a barra, e pediu ajuda a nós perdedores. Topamos. O exército invadiu o Centrinho algumas vezes, arrebentando tudo, “apreendendo” o que dizia ser “material subversivo”, mas logo no dia seguinte limpávamos o espaço, colocávamos um tabuleiro de xadrez e algumas coisas mais que mostravam que o Centrinho continuava aberto. Resolvemos ser mais chatos do que o pessoal da repressão.

Os centrinhos de outros departamentos fecharam praticamente todos ou pararam as atividades consideradas políticas. Não se ouvia mais falar dos centrinhos de Ciências Sociais e Filosofia, por exemplo. Mas o da Geografia sobreviveu teimoso.

Nessa época, o jornal “oficial” dos estudantes de Geografia era O Geográfico, com um ou outro texto de análise relacionada à Geografia e o restante eram textos políticos, também de análise, parecendo editoriais de partidos. Sem o pessoal que o editava, parou de funcionar. Já em 1970, fundei então um jornalzinho “meu”, chamado O Órgão, com logotipo em formato fálico e o subtítulo pequeno “dos estudantes de Geografia da USP”. Era muito inspirado no Pasquim, surgido pouco antes, em 1969, contra a ditadura mas com humor.

E aprendemos a gozar a repressão, deixando-a meia perplexa às vezes. Por exemplo: quando o clima ia ficando muito pesado, aquela sensação de que sofreríamos alguma nova invasão policial-militar, organizávamos uma “culhãozada de boi” regada a cachaça. Colhão de boi tinha fama de ser afrodisíaco. Fazíamos isso num bar da entrada da Cidade Universitária. E casais namoravam em todo o entorno do bar.

Víamos alguns caras que sabíamos ser policiais rondando por ali, olhando, e talvez concluindo que não podia nos levar a sério. Éramos da chamada “esquerda festiva”, imaginavam.

Então, voltando ao início, vejo meus textos de abobrinhas no meio de uns de reflexão, muito bons, me lembrei desse tempo, não comparando épocas nem comportamentos. Fico contente de ver meus textos no mesmo blogue desse pessoal muito respeitado e respeitável, grandes teóricos e práticos (não dogmáticos, ressalvo). Gosto de estar no meio deles. E também de considerar todos companheiros da mesma luta. A militância, acredito, é a mesma. Só as maneiras é que são diferentes. Acho que mudei pouco de 1968 para cá.

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

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