Cosmópolis, Cronenberg e o capitalismo contemporâneo: artigos de Vladimir Safatle e Inácio Araújo

Cosmópolis, filme dirigido pelo cineasta David Cronenberg (adaptação do livro homônimo escrito por Don DeLillo), estreou no Brasil na última sexta-feira, 07 de setembro. Confira abaixo crítica de Inácio Araújo e artigo de Vladimir Safatle para o filme, que representa de forma ácida o capitalismo contemporâneo.

Cosmópolis mostra busca infinita por poder

Por Inácio Araújo.*

Cosmópolis é um retorno a David Cronenberg. Não o Cronenberg de Freud e Jung, não o dos mafiosos russos –estavam muito OK esses filmes mais recentes, mil por cento acima da média que vemos no cinema. Desde a abertura, porém, “Cosmópolis” é outra coisa: parece o jovem Cronenberg.

Aquele das interpretações antinaturalistas, em que os personagens parecem, talvez, drogados. Ou sonados como velhos boxeadores depois de apanhar.

É assim nos primeiros diálogos do filme, em que o motorista adverte Eric Packer (Robert Pattinson) de que aquele será um dia de trânsito terrível, porque vai passar o presidente. “Que presidente?”, replica Packer.

O importante é que ele deseja cortar o cabelo. Sendo assim, trata de entrar em sua limusine. A limusine de que é inseparável, onde permanecerá até o final do filme.

Packer é um jovem magnata das finanças. Acaba de fazer uma aposta contra o yuan -tudo lhe diz que a moeda chinesa não deve ultrapassar um dado patamar.

Que importância tem isso? Toda e nenhuma. Toda: nessa aposta ele jogou o que tinha e o que não tinha (é o que se chama de alavancagem). Nenhuma: ele parece indiferente ao risco, tal a certeza de que não é capaz de errar.

Dito isso, a vida segue. Logo ele recebe Didi (Juliette Binoche), consultora artística. Ela revela que existe um Rothko dando sopa. “Não basta”, responde Eric. Ele quer comprar a capela Rothko (Houston, Texas). Para Packer não há limite.

Mas, pode-se perguntar, existe vida? Por que ele quer comprar a capela? Porque tem um dinheiro infinito. E esse dinheiro, para quem já tem tudo, não significa nada, exceto poder.

E quando se tem poder é preciso buscar mais poder.

Essa busca é infinita. O jovem Packer pode transar no seu carro, mas não demonstra nenhum prazer nisso. Ou pode dar um tiro em um auxiliar, sem se abalar. Nada significa nada para ele.

Se estamos próximos do Cronenberg do século passado, quando tratava com tanta frequência de seres em estado de mutação, é porque Eric Packer é também, a seu modo, um mutante: o homem-limusine.

Pois a limusine branca que habita também não significa muito: existe apenas para definir uma categoria de mutantes, os seres ligados ao mercado de capitais.

Eles representam o capitalismo em seu estágio mais recente. Não se trata mais de produzir. Esse capital só consegue se reproduzir, se multiplicar. Esse é Eric Packer.

Não estamos mais às voltas com um manipulador, como em Wall Street, nem com o deslumbrado de A Fogueira das Vaidades. Packer não tem medo nem prazer. Não conhece nenhuma espécie de emoção que não venha da acumulação (e da demonstração) de poder.

É o homem-limusine, inexistente como um zumbi e perigoso como uma arma de fogo: essa duplicidade será demonstrada em muitos diálogos e poucos cenários. Pois Cosmópolis é um filme de que deve fugir quem procura “ação”. Um filme que amará quem percebe quanta ação está ali implicada.

* Crítica publicada originalmente no jornal Folha de S.Paulo, em 07/09/2012.

Cosmópolis

Por Vladimir Safatle.*

“O dinheiro perdeu sua qualidade narrativa, tal como aconteceu com a pintura antes. O dinheiro agora fala sozinho.” Pela primeira vez em todo o filme, Eric Packer presta atenção em outra pessoa, a que fala estas frases: “A única coisa que importa é o preço que se paga. Você mesmo, Eric, pense só: o que você comprou por US$ 104 milhões de dólares? Não foram dezenas de cômodos, vistas incomparáveis, elevadores privados. Você gastou esse dinheiro pelo próprio número em si, US$ 104 milhões. Foi isso o que você comprou”.

Só um cineasta como David Cronenberg seria capaz de filmar esse automovimento do capital transformado em modo de funcionamento do desejo. O cinema a serviço da crítica social nós conhecemos. Mas conhecemos pouco o cinema como exposição trágica do ponto de junção entre vida econômica e economia psíquica. Esse cinema nos foi apresentado por Cosmópolis, novo filme do cineasta canadense e um dos retratos mais fiéis do nosso mundo em crise.

Cronenberg sempre foi sensível ao caráter marcial do desejo que só se manifesta quando se choca contra seu ponto de excesso. Crash – Estranhos Prazeres, Mistérios e Paixões e Videodrome são alguns dos seus filmes entre os mais relevantes dos últimos tempos por, entre outras coisas, fornecer as imagens para descrevermos a maneira com que o desejo, muitas vezes, existe apenas ao se bater contra os limites do corpo, da identidade, do real, da forma. Existe somente reduzindo todo objeto a um movimento incessante que ignora limites.

Porém, com Cosmópolis, Cronenberg lembrou como esses sujeitos assombrados por seu próprio gozo não são o ponto de desajuste da vida social. Eles são o verdadeiro cerne de funcionamento do capitalismo contemporâneo. Eles são a encarnação de uma unidade monetária que perdeu sua qualidade narrativa para se realizar como puro movimento, para não falar de nada a não ser de sua própria quantidade.

Aparentemente, vemos em Cosmópolis um dia na vida de um jovem yuppie em sua limusine que procura por um acontecimento que pare o movimento que tudo anula, seja tal acontecimento o assassinato, o sexo ou a simples e pura perda de tudo.

No entanto, ao filmar Eric em sua limusine, Cronenberg mostrou, na verdade, qual a melhor maneira para analisar uma crise. Uma verdadeira crise nunca é apenas econômica, mas também política e, principalmente, psicológica.

Crise não apenas dos modelos, mas também de seus contrapontos. Crise que nos ensina o sentido desta outra frase que Eric Packer ouvirá de uma amante, frase que ele precisará de todo o filme para compreender: “Você está começando a achar que duvidar é mais interessante do que agir. Duvidar exige mais coragem”.

* Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo, em 11/09/2012.

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Os livros de Vladimir Safatle publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook), em média custando metade do preço dos livros impressos:

Cinismo e falência da crítica, de Vladimir Safatle * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)

O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)

Bem-vindo ao deserto do Real!, de Slavoj Žižek (posfácio de Vladimir Safatle) * ePub (Livraria Cultura | Gato Sabido)

Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, coletânea de artigos com textos de David Harvey, Edson Teles, Emir Sader, Giovanni Alves, Henrique Carneiro, Immanuel Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Mike Davis, Slavoj Žižek, Tariq Ali e Vladimir Safatle * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido | Livraria da Travessa | Livraria Saraiva)

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Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus. Escreveu A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo, Edunesp, 2006), Folha explica Lacan (São Paulo, Publifolha, 2007), Cinismo e falência da crítica (São Paulo, Boitempo, 2008) e co-organizou com Edson Teles a coletânea de artigos O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), entre outros. Atualmente, mantem coluna semanal no jornal Folha de S.Paulo e coluna mensal na Revista CULT. Em 2012, teve um artigo incluído na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, publicada pela Boitempo Editorial em parceria com o Carta Maior.

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