Crônicas de Berlim (17): Falsos amigos – o caso do cartão de visitas
Normalmente (se é que isso existe), quando a gente fala em “falsos amigos”, a gente pensa em palavras semelhantes em diferentes línguas. Já tratei do caso aqui neste blog.
Mas outras coisas podem ser “falsos amigos”. Por exemplo: gestos. Sobretudo aquele famoso circulinho com os dedos (o polegar e o indicador) que nos Estados Unidos significa uma coisa e entre nós, no Brasil, inteiramente outra. Ou imagens. Aqui na Alemanha, a suástica virou um símbolo amaldiçoado. Na Índia, ela é um antiquésimo símbolo de “boa sorte” e “boas vindas”. Eles podem também servir para fomentar controvérsias inacabáveis.
Tentei explicar para um amigo alemão o símbolo indiano. Ele não aceitou. “Não pode”, ele dizia. “Eles têm que saber o que a suástica significou na Alemanha e na Europa”. “Mas por que”, eu argumentava, “vocês, nós também no Brasil, não podemos nos dar conta do que isso signfica na Índia. E tem mais: entre eles, o símbolo era de uso muitíssimo mais antigo. Hitler se apropriou dele”. “Não e não”, insistia ele, sem se dar conta que, por trás de seu viés de esquerda, pairava outro eurocêntrico: aqui, na Europa, é que os significados são “verdadeiramente” definidos.
Também há os objetos. Por exemplo, um mero cartão de visitas. Ou profissional. O exemplo que vou dar se passou com meu amigo João Eleutério Fagundes.
Eleutério, como ele gosta de ser chamado, é um jornalista da área econômica e um cinéfilo contumaz. Nascido em Santana do Livramento, fronteira do Brasil com o Uruguai, separada da co-irmã Rivera apenas por uma linha branca que atravessa praças e ruas, Eleutério hoje é colunista – algo conservador, devo dizer, mas ainda assim boa gente, melhor do que muita gente que se acha de esquerda – do jornal J… da cidade do R… não importa.
Como bom cinéfilo, Eleutério pediu férias do jornal e da coluna em fevereiro passado e se mandou para Berlim, para assistir a Berlinale, nessa altura o melhor festival de cinema da Europa, como tenho propalado aos quatro ventos, os sete mares e os cinco continentes, mais o cyberspace e a Antártida, nessa ordem.
Tanto pediu férias, que nem se preocupou em vir como jornalista, quando poderia ter acesso gratuito a várias sessões. Não. Ele queria ser um cidadão comum na Berlinale, um voyeur de telas grandes, como ainda as há em Berlim, e que tanta falta fazem no Brasil. Queria ser um fã de raiz da Berlinale: enfrentar as filas intermináveis para a compra de entradas, correr de um cinema para o outro ferozmente, dando cotoveladas no metrô (e recebendo) para chegar a tempo, esfregando as mãos para compensar o frio na frente dos cinemas, e todos os etc. que fazem a vida e os amores dos cinéfilos berlinalesc os.
E foi. Viveu tudo. Inclusive o caso dos cartão de visitas, que passo, desautorizadamente, pois não o consultei, a narrar.
Acontece que houve um desencontro de números. O Eleutério veio com dois amigos, o João Hermano, do mesmo jornal, seção de culinária, e o Pedro Valério, esportes, ambos igualmente tarados por cinema. Então decidiram se revezar nas longas filas, na Galeria das Arkkaden, na Potsdammer Platz, para a compra dos ingressos. Numa das vezes foi apenas o Eleutério.
No caminho do guichê, já na fila, ele se deu conta de que cada pessoa pode comprar entradas para quantos filmes puder, em geral no prazo de três dias para diante. Mas apenas dois tickets por pessoa. E ele precisava de três, para cada programa.
Reparou então que algumas vezes as pessoas pediam para outras comprarem um ingresso sobressalente. “Por quê não?”, ele pensou. Então se dirigiu a quem estava à sua frente, na fila. Ela – era uma mulher – voltou seus olhos verdes para ele. “Como o mar do Ceará”, ele pensou de imediato. Ademais, ela parecia a Virgem dos Lábios de Mel, a mítica Iracema: cabelos pretos longos, quase até a cintura.
Com seu inglês fluente subitamente tornado meio gago, Eleutério explicou o caso. E a moça concordou prontamente. Claro, ela poderia comprar os terceiros ingressos. Ademais, ela estava sozinha, ia comprar ingressos apenas para ela. Eleutério vibrou interiormente, por vários motivos, entre eles o da compra dos ingressos estar dando certo.
Depois de receber os ingressos, ele quis ser gentil.
“Olhe”, ele explicou em seu inglês com sotaque da fronteira gaúcha, “eu sou um jornalista brasileiro. Se você precisar de algo sobre ou no Brasil, pode contar comigo”. E quis dar para a moça o seu cartão.
Naquela noite ele veio jantar na nossa casa aqui em Berlim. E me explicou, perplexo:
“Não entendi. A moça ficou vermelho rubra. Olhou pro lado. Encolheu a mão. E insisti. Acabei enfiando o cartão na mão dela, de qualquer jeito. Ela foi embora, e eu também”.
Suspirei.
“Eleutério”, eu disse, “tu tens de saber de umas coisas”.
“Aqui em Berlim, talvez na Alemanha inteira, dar um cartão de visitas para alguém significa expressar que se está desejando algo com essa pessoa. É um convite para que ela telefone mais tarde. Ou mande um e-mail. Ou um buquê de flores. Enfim, isso pode ser o começo de um caso, um namoro, sei lá, até um noivado”. “Se há um motivo apenas profissional, ou cordial, isso precisa ficarexplícito, entende, e muito claro”.
“Mas como?” Me retrucou ele. Imagine no Brasil. Seu eu quero começar uma aproximação com uma mulher, ou seja lá o que for, dar um cartão de visitas como primeiro gesto é murchada na certa. Pior que isso, só se eu a convidasse para ouvir meu long-play dos Meninos Cantores da Guanabara, ou para ver meu álbum de figurinhas dos jogadores de futebol de 1956”.
“Bá”, eu disse. “Tu tem ele completo?”
“Claro”.
“Puxa, pra mim ficou faltando o Dequinha, do Flamengo. E o Píndaro, do Fluminense. Um dia tu me mostra”?
“Claro, Flávio”. “Eu até te dou o raio do álbum”. “Mas não desconversa. Por que isso do cartão? E o que eu faço?”.
“Na verdade, sei lá. Eu acho que é porque aqui na Alemanha tem uma coisa muito forte, chamada “Schriftkultur” – a “Cultura do Escrito”. Ou melhor, traduzindo livremente, “O culto do escrito”. É uma religião. Te lembra daquele filme, “O leitor”? Pois é, a mulher prefere confessar o crime que não cometeu a confessar que não sabe ler nem escrever. É isso aí. É um drama profundamente alemão. Na primeira vez em que vim para cá, como professor convidado na universidade, em 1996, eu recebi duas cartas. Numa, a universidade me dizia que eu seria pago como professor convidado. Noutra, como professor titular, o que significava mais. Quando cheguei, eu fui ao Serviço Financeiro e perguntei qual das cartas valia. Foi um rebuliço. A funcionária que me recebeu ficou muito perturbada. Eu expliquei que não queria criar caso. Só queria saber qual delas era a verdadeira. Ela sumiu porta a dentro. Voltou meia hora depois. E me disse que a boa era a de professor convidado. Mas que eu iria receber como professor titular. Por quê, eu perguntei. Porque está escrito, me disse ela. E aquilo valia como um destino, como as tábuas da lei entregues a Moisés.”
“Mas o que isso tem a ver com o cartão de visitas”?
“Não sei. Vai ver que é uma forma ao mesmo tempo distante e firme de dizer que você está a fim mesmo de algo. Você entrega, por escrito, teu nome, endereço, telefone, e-mail. Quer maior compromisso?”. “Por isso ela ficou perturbada. Tu estavas queimando etapas. Mal conversou, já foi entregando um cartão”.
Fiquei sem saber se o Eleutério entendera ou aceitara tudo aquilo. Nos despedimos depois do jantar, e ele se foi, intrigado.
No dia seguinte, por acaso, encontrei num cinema da Berlinale os amigos dele. Perguntaram: “você sabe do Eleutério?”
“Não tenho a menor idéia”, eu respondi.
“É que ele saiu hoje de manhã, depois de nos dar as entradas de ontem, e disse que tinha de ir pra fila da compra de entradas. Que estranho, não? Afinal, já compramos tudo o que tínhamos de comprar. E hoje ele nem veio aqui”.
“É”, eu disse. Mas não comentei nada sobre a história do cartão.
O fato é que o Eleutério, de fato, sumiu.
Depois da Berlinale, os amigos dele me ligaram. Disseram que iam voltar para o Brasil. Sem o Eleutério. Que estava em Munique.
Aí quem ficou intrigado fui eu.
Mais alguns dias depois, recebi um envelope de Munique.
Era do Eleutério. Dentro, tinha um cartão de visitas.
“Obrigado pelas dicas”, estava escrito no cartão. “Tu foste um grande amigo. Quando fores ao Brasil, me avisa, que o álbum de figurinhas estará te esperando. Um abraço, Eleutério”.
Aí eu virei o cartão de visitas. Era dela, de nome Bruna.
Aí eu entendi tudo. Schriftkultur. Estava escrito.
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Próximo livro de Flávio Aguiar será lançado pela Boitempo em dezembro de 2012
Um anjo desgarrado decide reunir narrativas bíblicas perdidas. Mas os narradores são, na maioria, como ele: desgarrados. São os coadjuvantes da história, como a pomba que Noé soltou da arca para ver se as águas do dilúvio tinham baixado; ou o demônio Misgodeu, que trabalha como porteiro do Inferno, um faz-tudo que toca os mecanismos daquele fim de mundo, sem o qual nada funciona no reino de Lúcifer; ou ainda o escravo de Jó, que assiste, completamente surpreso, à desgraça e às tentações de seu amo. Lemos também sobre a luxúria e a hecatombe de Sodoma e Gomorra contada por um dos anjos enviados para averiguar o que por lá se passava (e como se passavam coisas!). Assim como fala do passado, a narrativa de Beliel, ele mesmo um faz-tudo nos céus, se dirige ao futuro, nos levando a uma versão absolutamente fantástica do fim dos tempos e do destino da Criação. Em tom de paródia, mas solidamente ancorada nas tradições bíblicas – que Flávio Aguiar, pesquisador e professor de literatura da USP, conhece como poucos –, A Bíblia segundo Beliel combina a leveza da chanchada com reflexões profundas e ousadas sobre temas como a religião, o fanatismo, a crença e a descrença, a opressão e a liberdade, a desigualdade e a justiça e, last but not least, o amor, como objetivo e possibilidade de redenção da humanidade.
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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés (finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012). Ambos estão à venda na Livraria da Travessa e na Gato Sabido pela metade do preço dos livros impressos.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Seu próximo livro, A Bíblia segundo Beliel será lançado pela Boitempo em dezembro de 2012. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
tenho um amigo(a)assim
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