O sapo Gonzalo em: Bicicleta, orelha

Por Luiz Bernardo Pericás.

Quase tropeçou ao entrar no apartamento, mas conseguiu se equilibrar. O velho tapete estava fora do lugar, como de costume. E também, bastante puído. Tinha de comprar um novo em algum momento. Mas naquela hora, só queria mesmo ir para a cama.

Gonzalo sentia tantas tonturas que via passarinhos voando em torno da cachola. Havia discutido por umas boas horas no Finnegan’s Pub com um calango furbesco, dito literato, amigo do jabuti CaBraL e íntimo da “nata” do mundo jornalístico e empresarial da República do Repolho. O pequeno réptil passara a noite elogiando uma certa “festa literária internacional” que ocorrera havia pouco numa cidadezinha no litoral. Nosso Gonzalucho não suportara a cantilena do lagarto de ideias furfuráceas, que exaltara ininterruptamente toda a flanação e babação de ovo no vilarejo histórico onde ocorrera o happening cultural. Tudo para vender os livrórios e cartapácios do momento. Mas o calanguinho dizia que as donas de casa gorduchas e ociosas, os estudantes deslumbrados e os aficcionados das letras haviam adorado perambular pelas ruas de pedra do lugarejo colonial e tirar fotos com supostas “celebridades” europeias. É verdade que essa gente não entendia nada de literatura, e não compraria mais um livro sequer durante o resto do ano. O importante era fingir que conheciam os romancistas convidados, ficar perto deles, pedir autógrafos. Mesmo que nunca tivessem lido uma linha sequer de suas obras. O fundamental era manter as aparências. E comemorar os números! “Quanta gente visitou o evento! Quantos livros foram vendidos! Que multidão de ruminantes gastou seu dinheiro com as ‘novidades’ editoriais, palestras e refeições nos restaurantes da cidade! A República do Repolho está cada vez melhor, mais rica, mais culta!!!”, diziam os responsáveis para os repórteres de televisão. Ah, que dureza… Enquanto isso, no resto do país, multidões de analfabetos pediam esmola, incapazes de escrever o próprio nome numa folha de papel e sem saber da existência de qualquer escritor desta galáxia. E os professores da “grande” nação da América Latina, com seus salários de miséria, continuavam em greve… Com toda a razão, por assim dizer… Se tivessem maiores soldos e fossem respeitados, quem sabe também pudessem participar daquele “festival intelectualizado”…

Gonzalo saiu do bar soltando fumaça pelas ventas. E agora estava em casa. Foi caminhando em ziguezague até o quarto e se jogou na cama. As têmporas latejavam. Fuga… fuga… fuga… Em poucos minutos, dormia um sono pesado. E um estranho mundo começou a surgir em sua mente…

Eram lentas. Bolhas amarelas e vermelhas moviam-se devagar, mudando constantemente de forma, se contraindo e se esticando, em cima de um fundo branco, sem nenhum motivo aparente. Superfície lisa, a das bolhas; em outras, rugas e membranas, patas, pernas talvez; estranhas criaturas. Mexiam-se silenciosamente, em momentos se unindo, para em seguida se separarem… Algumas pareciam olhos; mas eram apenas bolhas. Grandes círculos em cores fortes, de vez em quando cercados por traços negros, que definiam sua circunferência. E também, nos amplos espaços vazios entre si, riscos escuros, sem razão, cortando e desenhando os caminhos.

Em cima de uma bicicleta, Gonzalo pedalava desenfreadamente, segurando firme no guidom, levando uma pesada furadeira às costas, presa ao boldrié. Percorria os espaços vazios entre as bolhas monstruosas e excepcionalmente grandes comparadas a ele, desviando-se com destreza dos riscos. Era esguio, as veias nos braços delgados, aparentes, saltando para fora da carne, as pernas compridas, tensas, o olhar nervoso, a boca mostrando a gengiva amarelada, escurecida pelo cigarro. Pedalava velozmente sua antiga bicicleta: os aros desgastados; o quadro de tubos metálicos, enferrujado; os pneus lisos, mal alinhados; o selim rasgado. Isso não importava, já que sua mareca era de estimação, seu objeto de adoração. Corria entre os glóbulos esféricos.

Um fio de cabelo grosso, gigantesco, surgiu bem à sua frente. Aumentando a velocidade, pedalou em cima dele, utilizando-o como ponte. Chegou rapidamente ao topo de uma enorme cabeça. Continuou dentro da espessa grenha, cruzando a gaforina, transitando na densa selva capilar que o cercava por todos os lados. 

O tempo estava ruim e uma tempestade parecia iminente. Quando raios e trovões começaram a povoar os céus, ele aproveitou e pegou um relâmpago que brilhou justo diante de si. Com o relampo apertado em sua mão, seguiu pedalando, iluminando as sendas que percorriam as melenas.

O vento ficava mais forte, os fios de cabelo dançavam juntos, ritmicamente, de um lado ao outro. Guedelha cerrada. Então, parou repentinamente, deixou a bicicleta jogada com cuidado no solo, pegou o barbaquim amarrado ao talabarte, e começou a perfurar agressivamente o chão. O sangue logo saltou como um poço de petróleo; o líquido rubro jorrou. O esforço durou horas, mas finalmente compensou: conseguiu abrir um grande buraco na cabeça, no meio da trunfa.

Estava tão entusiasmado com seu feito que, sem se preocupar com a verruma ou a magrela, pulou para dentro do crânio desconhecido. Escorregou pela escuridão até chegar a um lugar onde conseguiu colocar os pés. Parecia um longo túnel.

Com o clarão do firmamento ainda apertado na mão, foi andando até ver, ao longe, indícios de luz. Acreditava que a caverna gosmenta provavelmente terminaria poucos metros adiante. Caminhou até chegar à boca da galeria. Percebeu, antes de sair, que estava numa orelha. Mais tranquilo, sentou-se no pavilhão auricular, os pés encostados no lóbulo. Acendeu um cigarro e deu uma profunda baforada. O tempo havia melhorado, a tormenta não viera feroz e uma brisa leve soprava por ali. Então, mais calmo, ficou olhando a paisagem.

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o lançamento ficcional Cansaço, a longa estação. Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

2 comentários em O sapo Gonzalo em: Bicicleta, orelha

  1. Luiz, boa história. Sapo não é réptil. Abs, M

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