De bar em bar XX: Mudança na hora certa

Por Mouzar Benedito.

Dos bares tipo “da esquina”, simplórios, lembro-me bem de alguns muito divertidos. Vários deles nem ficavam em esquinas. É o caso do Viana do Castelo, na altura do número 700 da avenida 9 de Julho, em frente ao prédio em que eu morava. Tinha umas mesinhas, mas eu gostava de beber cerveja no balcão, olhando um painel pintado na parede azulejada. Aliás, esta era uma característica dos bares de portugueses durante muito tempo, em São Paulo: um painel, provavelmente inspirado em fotos trazidas pelos imigrantes, ou em cartões postais mandados por parentes, mostrando paisagens da terrinha, especialmente as cidades de origem dos donos. Mas havia também cenas de mulheres colhendo azeitonas etc.

Ao lado do Viana do Castelo tinha outro mais caído, chamado Luar de Julho, que a gente ia mais porque ficava aberto até tarde da noite. O apartamento em que eu morava era grande, mas com apenas um quartão. Entre o quarto e a sala, havia apenas uma meia parede, não dava intimidade. Muitos amigos meus o frequentavam e tinham a chave dele. O nosso código pra preservar a intimidade na hora de namorar era este: se a porta estivesse com o “pega ladrão” (aquela correntinha que só abre por dentro), era sinal que tinha alguém namorando, então o jeito era ir para o boteco em frente, esperar o casal sair. Alguns esperavam no Luar de Julho sem tirar o olho da portaria do prédio, curiosos em saber quem estava com quem no apartamento.

Logo que me mudei para lá, esse bar era ponto de um cara que já que morava no mesmo prédio, o Feres, que odiava umas lésbicas que também iam lá. Eram mulheres que não iam ao Ferro’s Bar, ali pertinho, porque era mais caro um pouquinho só. Eu não entendia o ódio do Feres, já que por homossexuais masculinos ele não nutria a mesma raiva. Ele dizia que homossexual masculino, ativo e passivo, tinha algo que enfiar em algum lugar, ao contrário das lésbicas. E daí? Não havia resposta. O certo é que ele não xingava ninguém mas ficava babando de raiva contra as lésbicas.

No Luar de Julho, um dia, ele me contou que era piloto amador e todo sábado de tempo bom voava, saindo do Campo de Marte, onde funcionava o aeroclube. Fiquei interessado e ele me convidou pra voar também, logo no sábado seguinte. Dividiríamos a despesa. Fui e achei bonito ver São Paulo de cima, mas não muito alto, embora o motor do teco-teco (apelido dado aos monomotores também conhecidos como “paulistinhas”) parecesse motor de fusca falhando.

Passei a voar quase todos os sábados com ele. Nas sextas à noite eu o encontrava no boteco e ele já vinha logo me falando de como estaria o tempo no dia seguinte, se ia dar pra voar ou não. Até que um dia, em março ou abril de 1968, mudei para o Crusp, o Conjunto Residencial da USP, na Cidade Universitária. Avisei que não voaria com ele naquele sábado, e ele disse que lamentava, mas procuraria outro parceiro.

No início da semana seguinte, os jornais noticiavam a fuga de Carlos Marighella, lider guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN), que a ditadura considerava seu inimigo número 1, de um cerco policial que ia se fechando. Marighella desapareceu. A conclusão era que ele havia saído de avião do aeroclube do Campo de Marte, em direção ao Paraguai, pois um piloto saíra com um desconhecido que tinha as características de Marighella um pouco disfarçado, e não voltou mais.

Não liguei uma coisa com outra. Mas uns dias mais e veio a notícia inteira. O piloto era o Feres e o passageiro suspeito de ser o Marighella era outra pessoa. Não foram para o Paraguai, foram dar um voo sobre as praias de Santos e, na volta, uma corrente descendente de ar empurrou o teco-teco contra a Serra do Mar. Morreram os dois. Se não tivesse mudado, acredito, seria eu o outro passageiro…

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

2 comentários em De bar em bar XX: Mudança na hora certa

  1. NELSON MACHADO // 22/08/2012 às 1:53 pm // Responder

    POR FAVOR, PRECISO FALAR VIA E-MAIL COM O MOUZAR BENEDITO A RESPEITO DE UM CONTO GENIAL PUBLICADO NUM LIVRETO QUE VALE OURO EM PÓ CHAMADO “SANTA RITA VELHA SAFADA” DE SÉCULOS ATRÁS. É SOBRE UMA CITAÇÃO QUE QUERO FAZER DESSE CONTO, DO AUTOR, ETC, NUM BLOG DE ALTA VISIBILIDADE E SERIEDADE. É POSSÍVEL VOCÊS FAZEREM ESSE MEIO DE CAMPO PRA MIM? DESDE JÁ MUITO OBRIGADO. ABRAÇO. NÉLSON

    Curtir

Deixe um comentário