A paixão segundo Cassiano

Por Roniwalter Jatobá.

Encontro um velho amigo na Rua Barão de Itapetininga. Tarde fria, rua tomada de saltimbancos, vendedores de loteria, passantes apressados e alguns, como o cronista, viajando no meio da multidão.

 Velho Cassiano!

Era exagero, no entanto. Cassiano Lima Guedes tem 46 anos e, talvez por hereditariedade, não tem um fio de cabelo branco na cabeça. O melhor: encontrar alguém na vasta metrópole e que, há quase vinte anos, tomou caminhos diferentes. Por alguns instantes, alheios ao movimento ao redor, ficamos ali sem saber o que perguntar um ao outro, mas logo o convido para um café na Rua Xavier de Toledo.

Sua história não diferencia de tantas outras, mais de um milhão, na batalha pela sobrevivência na cidade grande.

 Estou sem emprego, meu caro.

Sentamos numa mesa da Leiteria Americana, pouca gente nessa hora.

− Por favor, não vamos falar de coisas tristes — busca o rumo da conversa.

Lembramos os amigos dançarinos das tardes domingueiras no Clube da Nitro, em São Miguel Paulista. Um voltou para sua terra de origem, outro entrou para a igreja do bispo Edmir Macedo e há outros que se deram bem e dizem que são felizes.

− Lembra de Camila?

Sinto que Cassiano não resiste às tristezas da vida, mas queria começar pelas lembranças de antigamente.

− Sim − digo. − Como poderia esquecer?

− Era a mais bela de todas − ele suspira. − Não era mesmo?

Pele alva, magra, cabelos cacheados, beirava os vinte anos. No Clube da Nitro, era um par e tanto. Hipnotizado pelo cheiro de jasmim, cada parceiro seguia seu corpo ágil, que avançava no ritmo da música, como levado pelo vento no amplo salão. Depois, ela ria de corpo inteiro, balançando os seios volumosos que explodiam em blusas de tecidos finos e coloridos.

Quando chegou a São Paulo vinda do Interior, Camila foi morar na Rua Raquela Sinopoli, bem junto à minha moradia. Vivia com a mãe separada e mais dois irmãos. Raramente era vista, sempre fazendo os afazeres domésticos. O seu único divertimento eram os bailes domingueiros. Ali, podia se soltar na dança e, também, na arte de torturar corações até cair deles a última gota de sangue. Joel, Euclides, Marinho e Cassiano dariam a metade da vida para sofrer nas mãos da alegre e arredia menina de olhos verdes.

− Dançar, tudo bem, mas namorar gente sem futuro nem em sonho − esnobava entre as raras amigas.

Meses depois de minha mudança de São Miguel para um sombrio prédio na Praça Júlio Mesquita, no Centro, me contaram que a moça havia descoberto o caminho da fortuna. O felizardo era um fazendeiro da cidade de sua família, acho que Vista Alegre do Sul.  Também fui informado que o grupo de apaixonados por ela se conformara com o casamento, menos Cassiano.

Cada um tem suas loucuras. Para amenizar a perda, Cassiano mandou ampliar, de um pequeno retrato, imagens dela em diversos tamanhos, e forrava a parede de seu quarto. A demasiada exposição de seu rosto, ao contrário, piorou a situação do rapaz. Já em 1978, depois de sete anos sofrendo com a ausência de Camila, Cassiano sucumbiu à paixão que impedia seu sono, mesmo em noites de embriaguez. Então, resolveu ir em busca de sonho: viajava atrás dela nos finais de semana, quando folgava na fábrica. Em Vista Alegre, acho que era lá mesmo, passava o dia inteiro a seguir a amada pelas ruas ou ficava de longe na observação de sua casa. Na pequena cidade, porém, os seus passos eram também vigiados pela população desconfiada daquele visitante que não tinha ali nem parente nem aderente. Foi preso numa tarde e espancado na delegacia. Um soldado, quem sabe a mando do marido de Camila, disse a Cassiano que se voltasse seria um homem morto. Morto!

A vida, francamente, é uma sucessão de histórias iguais, digo a Cassiano. Recentemente, li um caso semelhante. O comerciante paulista Carlos Alberto Roda do Vale foi preso por três anos e deportado pelo Serviço de Imigração dos Estados Unidos, acusado de perseguir, por amor, uma ex-namorada, Judith. Conheceram-se há mais de quinze anos, em São Paulo, quando eram estudantes. Depois de formada, ela migrou para a Califórnia e se casou com um americano rico. Inconformado, Vale vendeu um posto de gasolina em Atibaia e foi atrás da mulher.

− No dia em que fui preso, os policiais revistaram meu carro à procura de armas − contou Carlos Alberto. − Sabe o que encontraram no banco traseiro? Duas rosas. Eram para ela.

Cassiano ouviu tudo aquilo como uma criança ligada num conto de fadas, embora o final não fosse feliz.

− Sou mais arrojado ainda do que esse cara de Atibaia − disse antes de partir pelas ruas paulistanas. − É melhor morrer de amor do que de conhaque.

Bravata, apenas. Sei que o velho Cassiano não vai fazer nenhuma besteira. Ele sabe que toda paixão tem limites e que um amor não correspondido não vale a dor de um corpo crivado de balas.

***

Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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