O sapo Gonzalo em: A náusea

Por Luiz Bernardo Pericás.

Deu uma grande bocejada, esticou os braços finos e moveu o pescoço para os lados. Lá estava Gonzalo novamente, na mesma praça Fellini de sempre. Talvez aquela manhã não trouxesse surpresas. Mas ele duvidava. É que aquele lugar parecia enfeitiçado e toda vez surgia alguém inconveniente para prosear.

O corpo do bufonídeo exalava um forte odor de nicotina, provavelmente por ter virado a noite fumando. Sua indisposição era tão grande que sequer teve vontade de lançar a comprida língua negra em direção a uma mosca solitária, que voava à sua frente. Estava sem apetite. Preferiu, na verdade, tirar um Muratti do maço… colocá-lo lentamente entre os lábios… depois, riscar um fósforo e ver a chama surgir na ponta avermelhada… em seguida, sem pressa, aproximá-lo do palheiro… dar uma tragada vigorosa… e finalmente, soltar o fumaceiro cinzento no ar. Jogou fora o palito chamuscado. E colocou a carteira pela metade no bolso.

A paisagem poderia ser idêntica à habitual. Mas havia algo diferente ali. Em vez de pombos ciscando milho, urubus enormes, de cabeça pelada, faziam um banquete com a carcaça de um cachorro sarnento jogada no piso de concreto. No lugar de crianças com babás a passear, gorilas discutindo futebol acaloradamente. E os pipoqueiros, sempre presentes, agora davam lugar a traficantes de tartarugas marinhas. Teve de coçar os olhos duas vezes para ter certeza que estava vendo bem. Mas era isso mesmo. Como ninguém parecia se importar com o cenário inusitado, Gonzalucho decidiu se manter quieto. No fundo, talvez o mais estranho de todos ali fosse ele próprio. É que era o único que ainda fumava, ato considerado pecado para a maior parte da população…

Pois o fato é que ele já estava sentado naquele banco há um bom tempo e não percebeu a aproximação de ninguém para conversar. Achou que, finalmente, poderia aproveitar aquela manhã em paz. Até que, subitamente, do seu lado… PLOP!!! … surgiu, do nada, um homem!

“Caramba!!!”, pensou o batráquio, dando um pulo no estrado do assento.

O sujeito que acabara de se materializar misteriosamente era alto, magro e pálido. Mesmo que o inverno ainda não tivesse chegado, o homenzarrão vestia um sobretudo de lã pesado em cima de um paletó discreto de linho, assim como uma gravata de cor escura e um chapéu de feltro, que lhe cobria a cabeça calva. O senhor distinto segurava com firmeza uma bengala com cabo de madrepérola. Um singelo bigodinho grisalho emoldurava seu lábio superior. Depois do susto, o sapo se acalmou, mas continuou olhando, intrigado, para o exótico indivíduo que, percebendo o estranhamento do dendróbata, se virou e disse, em tom sério:

“Não precisa se preocupar, meu caro colega. Só estou tomando um pouco de ar fresco. Daqui a pouco, vou dar minha caminhada matinal”.

“Está certo…”, disse Gonzalo, reticente. “É que achei inusitada a forma como você surgiu…”

“Gosto de entrar em cena com estardalhaço. Fui mágico na juventude, um prestigitador renomado. Na verdade, fui o melhor ilusionista de minha época. Cheguei até a flertar com a alquimia! Ah, velhos tempos… Mas agora me tornei um idoso decrépito. De qualquer forma, sempre que posso, faço minhas ‘aparições’ em grande estilo. Para não perder o hábito. Parte da profissão, você entende…”

“Sim, sim, é claro…”

“Belo dia, não? Clima agradável hoje, não acha?”

“É verdade…”

“Pois sinto-me bem, cheio de energia. Agora, você não imagina pelo que passei anos atrás. Houve uma época em que estive mal, muito mal mesmo…” 

“Sei…”

“Eu não conseguia sequer caminhar até aquele poste ali”, falou, apontando para uma luminária pública, na outra esquina da praça.

“Imagino que você queira me contar detalhes de sua história…”

“Isso mesmo, amigo sapinho! Você deve estar curioso para saber o que aconteceu comigo”.

“Muito…”, respondeu o anfíbio viscoso, sem esboçar qualquer sinal de ânimo no rosto.

“Pois então vou lhe narrar o meu drama de décadas atrás…” 

 

Andava mal. Havia algum tempo que sentia um estranho desconforto no estômago, sempre acompanhado de enjoos e tonteiras constantes. Não sabia do que se tratava. Achei que os sintomas fossem sumir rapidamente, mas com o arrastar das semanas e a insistência de minha esposa, quase fui convencido de que o melhor talvez fosse mesmo ir ao médico, algo que eu havia evitado até então. Nunca gostei de hospitais e de seu cheiro de clorofórmio, tampouco do que os doutores pudessem me dizer em seus consultórios abarrotados de doentes em busca de ajuda. Por isso mesmo, resisti. Só iria falar com um especialista se não tivesse mais jeito…

O problema é que a enfermidade não passava e a cada dia me sentia pior. A cabeça girava, a febre chegava e com ela, as dores em todo o corpo. Tinha a nítida sensação de que meus músculos lentamente iam sendo rasgados por uma força incontrolável que crescia dentro de mim. Aquilo estava passando dos limites. E minha mulher, enquanto isso, tinha de se resignar com minhas insistentes recusas em buscar um diagnóstico preciso, já que eu achava que aquilo não devia passar de uma tensão rotineira, o que se costuma chamar comumente de estresse. Para mostrar que me apoiava incondicionalmente, ficava horas ao meu lado, esfregando um pano úmido em minha testa, trazendo sempre os mais variados medicamentos e constantemente me dizendo que eu logo iria melhorar. Mas meu estado de saúde não se alterava.

Numa noite daquelas, os sintomas intermitentes voltaram. Uma terrível e amarga ânsia de vômito se apoderou de mim. Suava sem parar. Meu corpo tremia, chacoalhava desordenadamente em espasmos abruptos e violentos. Delírios… Não tinha mais noção do que estava acontecendo.

Notei algo estranho roçando minha goela e se aproximando do palato; senti falta de ar. A glote, entupida, impedia a entrada de oxigênio. Gasp, gasp, gasp… Mas não havia o que fazer. Até que…

Minha boca se abriu abruptamente e ficou maior do que a de uma jibóia! Meu maxilar quase se deslocou por completo!

No mesmo momento, comecei a expelir o que estivera por semanas dentro de meu organismo. De repente, uma cabecinha apareceu lentamente sobre minha língua e entre meus dentes! Pavor! Não havia nada realmente que eu pudesse fazer naquela hora. Ao meu lado, observando tudo, minha esposa, com os globos oculares saltando da facha, petrificada de medo.

Gradualmente, a cabeça asquerosa foi saindo, e em seguida, o pescoço, o tronco, os braços e pernas. Por último, foram expelidos os pés gosmentos. Era um ser monstruoso que escorregara através da laringe, encharcado pelos líquidos ácidos do estômago, e que saíra agora, inteiro, para se debater em tremeliques insanos no chão do apartamento.

Lá estava ele, um homúnculo fétido que estrebuchava no solo e soltava guinchos como um porco! Nunca presenciara algo assim. O rosto do “hominídeo”, carcomido a partir dos lábios finos até a parte superior de sua única órbita, não tinha sobrancelha. Estrias de pus corriam das narinas resfolegantes até a testa franzida. Na boca sem dentes, uma gengiva embranquecida e cerosa exalava um hálito desagradável, enquanto no resto da face, pústulas rebentavam aqui e ali em profusão assustadora.

Os braços finos e as pernas tortas do monstrengo se moviam freneticamente, sem coordenação. Por instinto, apenas dei um pulo para longe, tentando me afastar dele.

Minha coloração começava a voltar ao normal. Era como se estivesse redimido após ter me livrado de algo inexplicável e então, restituído de minhas energias, pronto para recomeçar minhas atividades costumeiras. Respirava melhor, inspirando e exalando grandes quantidades de ar, ao mesmo tempo em que meus músculos gradualmente relaxavam e a febre, finalmente, desaparecia por completo. Sentia-me certamente outro homem, pronto para enfrentar o mundo. Mas ainda havia o homúnculo horríssono se debatendo no meu quarto, soltando urros de arrepiar.

De improviso, minha mulher deu um violento chute na criatura, que foi jogada, como uma bola, para dentro do banheiro. Sem pestanejar, fechamos a porta do toalete com um safanão. 

Olhamos um para o outro, sem saber o que dizer. Ainda estávamos demasiadamente assustados com tudo o que ocorrera para poder proferir uma palavra sequer. Quando os nervos se acalmaram, caminhamos com as pernas bambas para a sala e, sentados no sofá de couro, devidamente posicionados no desajeitado e pouco confortável espaldar de design moderno alemão, fomos logo ao que interessava, ou seja, decidir o que fazer com o monstro. Que ser era aquele? Como surgira? Como havia sido produzido dentro de mim? Como será que ele reagiria? Nenhuma dessas indagações foi feita e, para falar a verdade, não nos interessava. Acompanhados de um copo de uísque nas mãos, falávamos frases desconexas, sem ter qualquer ideia de como deveríamos agir a partir daquele momento. Preso no reservado, o homúnculo gritava e se debatia nas paredes, jogando seu corpo raquítico sobre os ladrilhos e azulejos com tal violência que fomos advertidos pelo porteiro que os vizinhos começavam a reclamar do barulho. Era fundamental que resolvêssemos logo o que fazer.

Certamente não podíamos divulgar este fato a ninguém. Se o caso se tornasse público, eu provavelmente seria detido, levado a algum laboratório e estudado por renomados cientistas nacionais e estrangeiros. Ou seja, me tratariam como uma anomalia. É provável, inclusive, que eu fosse afastado do convívio social. A população, interessada em minha história, talvez risse de mim ou, pior ainda, tentasse se afastar de minha presença logo que me visse ao longe. Não, eu não podia me arriscar a revelar este episódio a ninguém.

O melhor seria fingir que nada havia ocorrido. Sim, minha esposa e eu apenas diríamos que a doença havia sumido, que tudo não passara de fadiga. Ninguém se preocuparia com os detalhes da enfermidade e os dias voltariam a transcorrer como de costume. Mas e o monstrengo? Como explicaríamos sua existência? Em algum momento as pessoas perguntariam sobre os barulhos, os gritos, as estranhas movimentações dentro do meu apartamento. Caso descobrissem que ele não era produto de prestigiação, mas um ser “real”, eu estaria em apuros… 

Se o matássemos, tudo estaria resolvido. Cheguei a pegar uma faca afiada, mas desisti. Afinal, não era um assassino. Não conseguiria dar cabo nem mesmo de um inseto sequer. E se o eliminasse, não saberia o que fazer com o seu corpo sem vida. Cortá-lo seria muito aflitivo. Só a ideia de esquartejá-lo como um açougueiro me causava arrepios. Aquela pele languinhenta e enrugada era por si só nauseante o suficiente para que eu me decidisse por me manter distante dele. Além disso, se o retalhasse em diversas partes, teria de colocá-lo na geladeira, onde compartilharia o espaço com uma grande variedade de alimentos que acabara de comprar no supermercado. Imaginem se, inadvertidamente, eu pegasse um braço ou perna do monstrengo, o servisse frito ou cozido na hora do jantar e o comesse por inteiro, da gordura até o osso, sem perceber. De jeito nenhum!

E ainda, é claro, havia outro agravante. Não queria sujar os carpetes com o sangue do horrípilo! Se o matasse, certamente seu fluido vital se espalharia por todos os lados e as manchas vermelhas dificilmente sairiam com facilidade dos meus caros tapetes importados!

Era preciso encontrar outra solução. E que fosse rápido, porque ele não parava de arrebentar o lavatório. Já podia até imaginar o custo da reforma da pia, do chuveiro e das paredes, que àquela altura, deveriam estar em frangalhos. Uma fortuna!

Minha mulher, neste ínterim, ainda parecia não entender a situação. Em estado semi-catatônico, perplexa com tudo aquilo, apenas balbuciava algumas palavras, sem conseguir formar frases coerentes…

Talvez a criatura sentisse fome; por isso, quem sabe, a reação tão agressiva e espalhafatosa. Como acabara de vir ao mundo, podia estar querendo algo para beber, ou então, um pouco de comida. Apreensivo, fui para frente do repartimento com uma garrafa de leite na mão, a coloquei na soleira da porta, girei o trinco e me afastei.

O torvo, antes agitado, parou e me fitou com seu único olho. A pupila enorme saltava da sua cabeça calva. Vagarosamente foi abandonando o recinto. Olhou para mim em silêncio e depois saiu pulando pelas paredes e coinchando como um louco, até a sala de jantar, onde pegou a garrafa de uísque da qual eu havia tomado pouco antes: virou tudo pela goela. Depois sorriu. Ao ver minha mulher petrificada no sofá, se jogou em cima dela e lhe deu um beijo salivoso na boca. Corri em sua direção, mas o ser endiabrado saltou com suas estranhas pernas de rã e ficou grudado na parede, preso pelas ventosas das mãos e dos pés, parecendo atemorizado com o que eu pudesse lhe fazer.

Peguei a adaga que havia deixado em cima da mesa e apontei a lâmina brilhante para ele. O monstrengo ciclope arregalou ainda mais seu único olho, amedrontado.

Foi nessa hora que senti alguma coisa diferente. O anormal não me parecia mais tão pavoroso assim. Até se assemelhava ligeiramente a mim. Peguei outra botelha de bebida alcoólica, a mais forte que encontrei, coloquei o líquido num prato de sopa e acomodei o vasilhame no chão. O “bicho”, ainda desconfiado, pulou da parede para a mesa, e desta para o piso. Sua língua áspera sorveu em poucos segundos todo o conteúdo.

Já um pouco embriagado, parou de gritar. Olhou para minha esposa novamente, e, completamente tonto, lançou-se sobre seu corpo, como se estivesse enamorado dela.  

Foi nessa hora que resolvi impor limites. Acertei um violento tapa no rosto do hórrido funambulesco, que foi atirado para longe. Acuado no canto da sala, juntou os bracinhos magros no peito e calado, ficou arfando pesadamente por alguns minutos. 

Minha patroa não falava; parecia um boneco de cera. Percebi, portanto, que teria de decidir o que fazer com aquele estranho ser sozinho. Já o homúnculo unioculado, sentindo perigo, quis fugir, mas, por causa da embriaguez, apenas conseguiu dar alguns saltos descoordenados, esbarrando nos móveis e voltando para o mesmo lugar.

Enquanto isso, o interfone não parava de tocar: eram os vizinhos insuportáveis e pouco compreensivos, que insistiam que o barulho estava se tornando inadmissível. Uns velhacos! Afinal, ainda não era tão tarde da noite e eu tinha de resolver o que fazer com aquele “animal” pegalhoso. Era fundamental, portanto, que eu não fosse incomodado em hipótese alguma. E, convenhamos, não é sempre que uma criatura daquelas sai de dentro de uma pessoa e fica pulando pelas paredes da casa. Os moradores do condomínio tinham de ser compreensivos! Mas, é claro, eles não sabiam que havia um ciclope medonho com pernas de rã dentro de meu apartamento. Era melhor que continuassem sem conhecer este segredo. Tinha de tomar logo uma decisão.

Apesar do nojo, consegui colocar as mãos no asqueroso monocular, que se debateu um pouco e depois cedeu. Após amarrar uma corda em seu pescoço e de prendê-lo no pé da mesa, enchi mais uma tigela de bebida, desta vez repleta com as mesmas pílulas que eu havia ingerido por semanas. Ele já se acostumara ao efeito daquelas drogas quando estava dentro do meu estômago e engoliu tudo rapidamente. Em poucos minutos, apagou. Minha esposa também dormiu logo, afetada pelas cenas estranhas e pelo álcool em excesso que consumira aquela noite. Já eu, tive dificuldades em pegar no sono. 

No meio da noite, dei uma olhada na criatura, ainda amarrada na sala. Dormia silenciosamente, sem fazer um barulho sequer. Quando voltei ao meu quarto, lá estava a patroa, roncando como um leitão. 

Todos aqueles eventos haviam me deixado elétrico! Só esperava que a manhã chegasse logo para resolver o que fazer…

O dia nasceu belo e luminoso. Nas ruas, a população transitava nervosamente de um lado ao outro. Uma grande correria e desespero para se livrar do trânsito e chegar logo ao trabalho.

Coloquei uma roupa limpa, fiz a barba calmamente e fui dar uma olhada no monstrengo, que já estava acordado e tentava como podia se desvencilhar da corda. Mas eu havia dado um nó duplo. Só sairia de lá quando eu quisesse.

Em poucos minutos minha mulher apareceu, com um peignoir felpudo e os cabelos compridos totalmente desgrenhados. Perguntou se eu queria um café. Só depois de me trazer uma xícara cheia é que se lembrou do homúnculo. Percebeu que não sonhara com a cena bizarra da noite anterior; tudo o que ocorrera fora verdade. Um pouco assustada, com as mãos trêmulas, sentou-se ao meu lado no sofá, tentando se manter afastada do unioculado. Quis saber o que faríamos.

Dei um gole no java e mandei que fosse ao quarto se trocar. Enquanto ela se arrumava em nossos aposentos, eu lia o jornal despreocupadamente. Nenhuma notícia que valesse a pena. Os mesmos assuntos de sempre: algum time havia vencido um jogo de futebol; um novo filme estreava nos cinemas; e um político qualquer discursara no Congresso Nacional. Quando ela voltou, vestida e maquiada (mas ainda com a mesma cara de pão velho e amassado de sempre), resolvi lhe dizer o que faria. Iria libertar o monóculo. Sim, soltá-lo, para que seguisse com sua vida.

Abri a janela do meu apartamento. A vista era “magnífica”: carros, ônibus, poeira, poluição, barulho, assaltos, gritos, guardas de trânsito, trabalhadores, semáforos, edifícios. Cortei as cordas que amarravam o ser exótico, segurei com firmeza seus bracinhos moles e o joguei pela janela. Como morávamos num dos primeiros andares e havia uma enorme árvore logo em frente ao prédio, o ágil e elástico monstrengo não teve problema: como um acrobata, se agarrou em um galho folheado e em seguida, saltou para a calçada.  

Percebeu que estava no meio da rua, cercado de milhares de cidadãos que caminhavam rapidamente para repartição, sem tempo para parar por um minuto sequer. 

Aquele era um mundo totalmente diferente para o homunculóide. Enquanto tentava assimilar o que estava à sua volta, era esbarrado e empurrado pelas multidões, que não se interessavam por ele.

Pensou em entrar numa loja de conveniências, talvez para roubar algumas aspirinas ou outros analgésicos. A enxaqueca causada pela ressaca da noite anterior latejava… Mas ao ver um policial frustrado arrebentando a cabeça ensanguentada de um ladrão com um porrete (sem causar a menor comoção do público), desistiu da ideia. Então olhou para meu apartamento e uma lágrima solitária escorreu de seu único olho…

Nessa mesma hora, fechei a janela. Não queria de forma alguma que ele voltasse para minha casa para me importunar.

Triste e desiludido, o homúnculo, então, começou a andar pelas calçadas, desconsolado, sem saber para onde ir, como um indigente, sem que ninguém lhe prestasse atenção…

Para encurtar a história. Por vários anos, não ouvi mais falar daquela criatura. Nenhuma notícia sequer. Até que recebi uma correspondência com o carimbo de uma agência de correios de um vilarejo no meio da floresta amazônica. Era uma longa carta do monstrengo! Nela ela me dizia que tivera muitas dificuldades depois que eu o expulsara de casa. Fora faxineiro, garçom e até mesmo atração de um circo de segunda categoria. Sentia que sofria constantemente preconceito, e por isso, decidiu sumir das vistas do público, para se esconder num lugar distante, inóspito, perdido no mundo. Mudou-se para uma vila na selva onde, acreditava, não seria julgado por sua aparência bizarra. Seria, digamos, um recomeço. Lá, contudo, percebeu que teria dificuldades em ficar rico, sua maior ambição. Gostava de apostar na loteria semanalmente, mas nunca ganhava nada. Até que teve um golpe de sorte: um representante de uma madeireira estrangeira apareceu por aquelas bandas e sugeriu que os dois se tornassem sócios. O monstro seria o testa de ferro, o laranja do esquema, e ganharia, para isso, uma porcentagem polpuda de quaisquer transações escusas em que estivesse envolvido. O “hominídeo” unioculado aceitou na mesma hora e a partir daí, começou sua ascensão no mundo dos negócios. Depois de algum tempo, tornou-se um grande businessman e investidor na bolsa. E em poucos meses, converteu-se num milionário. Sempre colocava um “X” no nome de suas empresas… 

Foi nessa época também que seus problemas psicológicos surgiram. Andava nervoso, tinha tiques e tremores, lavava constantemente as mãos. Foi diagnosticado com Transtorno Obsessivo Compulsivo. Terminou seus dias isolado de todos, trancado num quarto de hotel, com as cortinas totalmente fechadas, recebendo sua comida uma vez por dia do dono da hospedaria. Era uma espécie de Howard Hughes tropical, misterioso e recluso. Comentam que chegou a deixar crescer uma barba longuíssima, rala, e unhas tão compridas que chegavam a dar voltas e mais voltas. Não queria falar com ninguém.

A população da região sempre aparece com alguma nova história sobre o homúnculo. Dizem que doava dinheiro para caridade, que havia feito implantes capilares, e que namorara as mais belas atrizes de Hollywood. Teria até mesmo se casado (sem avisar a imprensa) com uma modelo famosa, capa de revista masculina, rainha do Carnaval e destaque de escola de samba, e com ela, inclusive, tido um filho, mais estranho e bizarro do que ele próprio, o qual recebeu o nome de uma divindade nórdica. Um verdadeiro excêntrico! Há quem afirme até que ele ainda está escondido, morando numa ilha paradisíaca qualquer, numa gigantesca mansão em frente à praia, onde aproveita, sem ser incomodado, toda a fortuna que acumulou ao longo dos anos…  

 

Que história! Por essa Gonzalo não esperava. Já ouvira narrativas estranhas, mas poucas superavam essa. O forasteiro de bengala percebeu a reação do anfíbio e decidiu que era hora de partir.

“Bem, senhor sapinho, acho que vou embora agora. Você compreende, ainda tenho muito o que fazer”.

“Sim, claro…”, retrucou o jia, ainda desconcertado. “Mas, me diga…”

Não teve tempo de completar. Pois, quando ia continuar a frase, não é que, subitamente… PLOP!!! … o estranho se evaporou num estouro! Só restou um cheiro acre no ar… e uma fumacinha dançarina onde antes ele estivera sentado.

“Que mundo louco!”, pensou o dicó. “Acho que estou realmente precisando de uns tragos. E agora mesmo”.

Ainda confuso, Gonzalo, com o cigarro amassado entre os lábios, se levantou do banco da praça. E foi correndo para um bar… 

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o lançamento ficcional Cansaço, a longa estação. Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

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