A ironia e o apocalipse: entrevista de Slavoj Zizek ao jornal Valor Econômico
Entrevista publicada no caderno Eu & Fim de semana do jornal Valor Econômico de hoje, 20 de julho de 2012. Confira clicando aqui.
Slavoj Zizek encerra uma hora e meia de entrevista com um desafio. “Sou um bom totalitário, então deixo aqui a autorização para distorcer tudo que eu disser”, concede o filósofo e psicanalista esloveno, por telefone, de sua casa em Liubliana. “Este é o desafio: o bom jornalista é aquele que consegue me fazer dizer o oposto do que eu disse sem mudar minhas palavras.” Para Zizek, autorizar a distorção das próprias declarações é divertido. Trata-se de mais uma forma de ver emergir “a ironia das coisas”, e o termo “ironia” não surge ao acaso: é recorrente no discurso do filósofo, ao lado de “paradoxo”, “cinismo” e “pessimismo”.
Ele se queixa dos tempos politicamente corretos, em que o senso de ironia, o gosto pelo humor e a disposição para o combate estão se perdendo. “Acontece o tempo todo comigo. Digo coisas que claramente devem ser tomadas como piada e sou bombardeado por causa delas, porque todo mundo me leva a sério!” Mas os tempos não são só politicamente corretos, no entender de Zizek: o título de seu livro mais recente é “Vivendo no Fim dos Tempos” (Boitempo, 368 págs., R$ 52). O autor busca mostrar que, embora as coisas não possam continuar como estão – crise financeira, degradação ambiental, avanço da biogenética, favelização, os atuais “quatro cavaleiros do apocalipse” -, ninguém tem nada de animador a propor para mudar a situação. Nem a direita, nem muito menos “a velha esquerda”.
São dois os gêneros em que o filósofo divide suas publicações, que são muitas: só em livro, contam-se mais de 50, a partir de 1974. Os textos teóricos, a maioria sobre o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), o filósofo alemão G.W.F. Hegel (1770-1831) e a cultura popular, analisada sob a ótica desses autores, são a verdadeira paixão do esloveno. Mas “Vivendo no Fim dos Tempos” pertence ao segundo grupo de textos, aqueles que lhe conferem a celebridade e a fama de polemista folclórico: os escritos embebidos em engajamento político.
“Se pudesse escolher, eu só escreveria os livros filosóficos”, diz o autor. “Escrever sobre política, falar com a imprensa, esse é o meu lado iluminista, ou melhor, meu lado socrático. Nós, filósofos, não sabemos mais do que os outros, mas parece que entendemos um pouquinho melhor que não sabemos o que pensamos saber”, afirma. Na mesma época em que escreveu “Vivendo no Fim dos Tempos”, ele também publicou um livro sobre Hegel (“Less Than Nothing: Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism”) que conta mais de mil páginas e sairá no Brasil em versão reduzida no ano que vem.
Sua produção prolífica é atribuída à sorte. “Minha tese, na Iugoslávia comunista do período mais linha-dura, foi considerada ‘não marxista’, então não me deram uma cátedra para lecionar”, relembra. O emprego que apareceu foi no Centro Marxista da Eslovênia, um instituto de pesquisas. “É o emprego perfeito. Não tenho nenhuma obrigação, não dou satisfação a ninguém e não dou aulas – odeio estudantes, eles fazem perguntas. Posso passar o dia todo lendo e escrevendo.” Junte-se a isso a verborragia de alguém que recebeu dos amigos o apelido de “Fidel”, em referência a Fidel Castro. “Não é pela política. Ele engata discursos de seis horas quando promete só fazer um comentário.”
Zizek se define de maneiras variáveis: como um comunista atípico, um esquerdista radical, um socialista oposto a Marx. “Meu esquerdismo radical é mais o resultado de um insight pessimista. Vejo que estamos chegando perto de uma catástrofe, e não estou falando daquela profecia maia idiota”, explica. “Acontece que não se pode ir indefinidamente nesse caminho de desastres ecológicos, segregação racial, novos muros de apartheid, apropriação da criatividade intelectual e guerra biológica.” Em “Vivendo no Fim dos Tempos”, a tarefa autoimposta é a de propor uma volta à filosofia de Hegel, superando a tradição da leitura de Marx, que, em seus textos de juventude, virou do avesso o pensamento hegeliano.
“O sistema de Hegel é muito mais apropriado para entender o mundo de hoje, porque temos uma totalidade em crise – o capitalismo neoliberal – e não sabemos ao certo para onde estamos caminhando”, afirma. “Não sou um marxista da velha escola. Só sigo Marx na percepção de que, no longo prazo, o capitalismo não será capaz de regular suas contradições internas. Mas a história não tem uma tendência inerente para o comunismo. Ela é confusa, não tem tendência nenhuma.”
A organização do livro segue um esquema psiquiátrico, inspirado nos estágios do luto, como definidos por Elisabeth Kübler-Ross, psicóloga suíça morta em 2004. Zizek vê negação (a primeira etapa e primeiro capítulo) nos “modos predominantes de obscurecimento ideológico”. Um exemplo é a ambiguidade libidinal de “A Noviça Rebelde”, tratada à moda de Zizek: com enorme ironia. “O poder do filme reside em sua representação obscenamente direta de fantasias íntimas embaraçosas”, escreve o filósofo, citando a cena em que a noviça Maria, apaixonada pelo barão von Trapp, volta ao convento e ouve da madre superiora que deve corajosamente “escalar todas as montanhas”.
A raiva (segunda etapa) está identificada às reações violentas contra o sistema global. Na Europa, segundo Zizek, os embates entre direita e esquerda foram substituídos por uma disputa entre a política e a “pós-política”, em que o lado mais perigoso é o da política. Pós-políticos são os “grandes partidos de centro”, “economicamente neoliberais, mas um pouco mais tolerantes socialmente”. Do outro lado está uma oposição politicamente belicosa, racista, xenófoba e conservadora. “Só uma nova esquerda poderia romper este quadro”, diagnostica o pensador.
Essa nova esquerda não há de ser encontrada, ele diz, em movimentos como o Ocupe Wall Street, que tomaram as ruas e fizeram muito barulho em 2011. “É simpático, mas um pouco idiota”, diz. “O que o movimento fez de bom foi puramente negativo. Fazia décadas que um movimento político não se estruturava com a percepção de que o sistema econômico tem uma falha estrutural.” As conversas com participantes do movimento, porém, o deixaram “decepcionado e pessimista”. “Tudo que eles dizem querer são platitudes moralistas abstratas ou uma estranha atitude humanitária keynesiana.”
À raiva se sucede a barganha: Zizek defende que se refaça a crítica da economia política (subtítulo de “O Capital”), mas com um “Marx não marxista”. Nesse capítulo, Zizek atinge o núcleo de sua proposta de retorno a Hegel. “A esquerda tem de pensar muito mais radicalmente. Para começar, temos que acabar com essa ideologia de ver o Estado como inimigo, aquele que controla e oprime”, afirma. “O estado do mundo, hoje, exige muito mais organização em nível global.” Enquanto isso, a esquerda se divide entre aqueles que esperam a derrocada do sistema por si só e aqueles que propõem pequenos ajustes social-democratas. “No Leste Europeu sob regime soviético, a oposição propunha o socialismo com face humana. Hoje, que ironia, querem o neoliberalismo com face humana”, diz.
A quarta etapa é a depressão, o desinvestimento libidinal. Neste capítulo, Zizek analisa o impacto da catástrofe que espera para breve, na forma de “algum novo tipo de regime levemente autoritário, não como o antigo autoritarismo fascista, mas algo entre a China, Cingapura, a Itália de Berlusconi e a Rússia de Putin”. No nível privado, a liberdade ficaria intocada: sexual, sobretudo. “Mas as relações econômicas tendem a ser menos transparentes e mais cartelizadas.” A explosão de novas favelas no mundo tem “potencial para uma guerra civil mundial”, refletindo eventos como as revoltas suburbanas de Paris em 2005 e 2008 e de Londres em 2011. “Não tinha ideologia nenhuma aí, no máximo o consumismo. Roubar as lojas e levar as roupas bacanas”, lembra Zizek. “Isso é uma indicação muito triste de como perdemos até mesmo a imaginação para sonhar com algo diferente. Só conseguimos responder com uma violência reativa.”
Outro sintoma daquilo que Zizek chama de uma “stasis mundial”, ou seja, a incapacidade para agir que acomete tanto os poderosos quanto os dissidentes, pode ser encontrado na Grécia. “Fiquei arrasado com o que aconteceu com o Syriza [partido de esquerda que chegou em segundo lugar nas eleições]”, relata. “Eles não são nada do que a propaganda dizia deles. Não são idiotas malucos e não queriam sair do euro. Só queriam tornar o Estado grego mais responsável: todo mundo teria de pagar impostos, incluindo os ricos.” Lembrando das acusações que recaíram sobre a Grécia, considerada pelos europeus do Norte como clientelistas e corruptos, Zizek arremata: “e foram apoiar justamente o Nova Democracia, partido do clientelismo e da corrupção”.
Depois de tantas etapas, chega-se à aceitação. No quinto capítulo, Zizek aproxima essa aceitação de uma “nova subjetividade emancipatória”, “germes de uma cultura comunista”. O filósofo propõe que a esquerda aprenda a usar uma estratégia associada à direita: a “doutrina do choque”, a partir do livro homônimo da ativista canadense Naomi Klein. Ela afirma que as principais reformas liberalizantes na economia foram introduzidas enquanto a população estava em estado de choque: o Chile de Pinochet, a Rússia de Ieltsin, o Iraque sob domínio americano etc. Para Zizek, “no choque, as pessoas perdem seus antigos pontos de orientação. Elas estão abertas a novas políticas, de direita ou de esquerda. É preciso agarrar a oportunidade”.
Indícios de possíveis novas subjetividades emancipatórias são encontrados em uma das áreas de estudo preferenciais de Zizek: a cultura popular. A banda de “rock industrial” alemã Rammstein, por exemplo, parece exibir uma forma de violência e intolerância que remete ao fascismo, mas “destrói a ideologia totalitária não com a distância irônica dos rituais que imita, mas confrontando-nos diretamente com sua materialidade obscena e, assim, suspendendo sua eficácia”, como escreve Zizek.
Levando ao paroxismo seu pessimismo e seu gosto pela ironia, Zizek encerra o argumento afirmando que nos aproximamos de “tempos interessantes”, ou seja, um período “de inquietação, guerra e luta pelo poder, em que milhões de inocentes sofrem as consequências”. Em seu hegelianismo pessimista, o filósofo esloveno encerra o livro apontando novamente para os impasses da esquerda: a situação é diametralmente oposta à vivida no século XX, “em que a esquerda sabia o que tinha de fazer”. “O comunismo, hoje”, escreve Zizek, “não é o nome da solução, mas o nome do problema”. O que está em jogo, portanto, são “as áreas comuns da natureza como substância da vida” e “espaço universal de humanidade”.
***
Todos os títulos de Slavoj Žižek publicados no Brasil pela Boitempo já estão disponíveis em ebooks, agora com preços até metade do preço do livro impresso. Confira:
Às portas da revolução: escritos de Lenin de 1917 * ePub (Livraria Cultura |Gato Sabido)
A visão em paralaxe * ePub (Livraria Cultura | Gato Sabido)
Bem-vindo ao deserto do Real! (edição ilustrada) * ePub (Livraria Cultura | Gato Sabido)
Em defesa das causas perdidas * ePub e PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)
Lacrimae rerum: ensaios sobre cinema moderno * PDF * (Livraria Cultura | Gato Sabido)
Primeiro como tragédia, depois como farsa * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)
Vivendo no fim dos tempos * ePub (Livraria Cultura | Gato Sabido) (LANÇAMENTO)
***
No dia 4 de julho de 2012, o psicanalista Christian Dunker se reuniu com os filósofos Paulo Arantes e Vladimir Safatle no Espaço Revista CULT para discutir os novos livros dos filósofos Slavoj Žižek (Vivendo no fim dos tempos) e Alain Badiou (A hipótese comunista), ambos publicados no Brasil pela Boitempo Editorial. Confira abaixo gravação integral do debate:
***
Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e os mais recentes Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
O que me deixa mal nos textos e falas do filósofo Zizek é que não consigo prever o que ele vai dizer, não consigo enquadrar suas ideias em nenhuma ideologia existente (ele escorrega o tempo todo), não consigo gostar totalmente dele nem desgostar integralmente do que ele fala, fico sempre com um texto escrito nas entrelinhas mais na fantasia do que no Real.
CurtirCurtir
Hoje finalmente consegui concordar com o Zizek. Pude compreender e aceitar tudo o que ele falou nessa entrevista. Não é fácil.
CurtirCurtir
Vamos ver se Zizek não muda o que está escrito nesse texto. Penso que a “liberdade” que ele dá pra nós de fazer o que quiser com o texto dele não fica sem retorno. Mas eu não sou qualquer uma eu é que duvido de sua honestidade em relação a manter o que escreveu.
CurtirCurtir