Crônicas de Berlim (15): Histórias de família –continuação
Por esses dias, graças à minha posição de jornalista, estava considerando as vicissitudes da Rússia, com o embate entre Vladimir Putin – que tem um vasto apoio, não resta dúvida – e as várias oposições, da extrema-esquerda aos que se vestem militarmente, à extrema-direita, ainda saudosos dos tempos dos czares.
Não pude deixar de lembrar de Seu Bernardo – e de sua lucidez.
Quem era Seu Bernardo? Era o Seu Bernardo Enk, dono do Armarinho da rua Demétrio Ribeiro, no bairro do Gasômetro, em Porto Alegre.
Seu Bernardo era uma figura. Fugira da Polônia ao tempo da ascensão do nazismo. Deixara lá familiares, que desapareceriam na tempestade desencadeada. Soubemos depois que sua mãe (pelo menos, talvez outros parentes) foi levada num comboio até uma praia no Mar Báltico, e lá, com outros judeus, metralhada. Desapareceu nas águas.
Como muitos imigrantes, judeus ou outros, Seu Bernardo começou a vida no Brasil como vendedor ambulante, com um balaio debaixo do braço, e sem falar português. Ao que se sabe, começou no Rio. Teve até um burro para levar suas mercadorias. Sobreviveu, veio para Porto Alegre, chegou a ser o dono do Armarinho da Demétrio. Armarinho? Ora, uma loja de tecidos e aviamentos, como botões, fitas, chitas, etc., tudo guardado em armários de parede, com portas envidraçadas, altas até o teto.
Ali, com seu jeito manso, Seu Bernardo reinava. Nos fundos da loja, um cortinado (azul?) dividia os mundos. Dali para lá, era o reino da Dona Sara, sua esposa. E ela governava seu reino com mão de ferro, mas sem exageros. Que eu me lembre, eram cinco filhos, três rapazes e duas moças, mais os/as agregados/as.
Para mim, menino que acompanhava minha avó nas compras, embora cheio de “coisas de mulher”, o Armarinho do Seu Bernardo era, sobretudo, um mundo de cores, que se abriam quando ele desenrolava os tecidos, abria as caixas de botões e de linhas, media as fitas e chitas com seu metro de madeira. Seu Bernardo era perguntão. Conversava com os fregueses, queria saber das novidades. E saudava as notícias com um característico – “I-a-i-é?!”, que devia ser uma mistura de polonês, iídiche e português. Tinha o olho claro, e curioso, sempre voltado para fora, sempre de bom humor. Nunca vi o Seu Bernardo reclamar da vida. Devia ter suas reclamações, claro. Mas não vivia delas, nem do seu amargor.
Depois Seu Bernardo entrou para a família. Ou vice-versa. A sua filha Ivete casou com meu irmão Rogério. Os laços e as conversas se estreitaram. Através da Ivete ouvi falar, pela primeira vez em Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Também da solidariedade deles com a luta pela independência da Argélia, contestando, inclusive, o adesismo do PC Francês ao colonialismo gaulês na África. Desse casamento nasceram meus sobrinhos Marcelo – hoje fiscal da Receita Federal (mas é boa gente) – e Cláudia, funcionária do IBAMA, protetora das tartarugas e aparentados.
Muito tempo depois, quando houve a separação do casal – essas coisas da vida – instalou-se uma certa e inevitável distância entre as famílias. Nada a condenar, existe algo de salutar nisso, nessas circunstâncias. Mas não entre o Seu Bernardo e eu. Claro: nos víamos com menos frequência. Era natural: eu já residia em S. Paulo. A gente se encontrava na rua, quando eu ia visitar a família, em Porto Alegre. Mas ele sempre era extremamente amigável comigo. Perguntava – ele os conhecia – por meus escritos literários. Foi assim que fiquei sabendo que Seu Bernardo, que os desavisados chamariam pejorativamente de uma “pessoa simples”, tinha essa grande virtude da simplicidade exterior e de uma rica sofisticação interior, sem vaidades. Seu Bernardo tornou-se para mim uma lição de vida.
Mas soube mais. Numa dessas visitas, soube que Seu Bernardo recebera a visita de um primo. Ele viera da Polônia. Ambos se localizaram depois de décadas de procura. Ele, o primo, era um dos raros sobreviventes dos campos de concentração nazistas na Polônia. Conseguira fugir de um deles (Auschwitz?) e se juntara à resistência polonesa. Perdera filhos nessa dramática aventura. De repente, caíra nos braços do parente – em Porto Alegre.
Falávamos pouco – mas muito intensamente – de política. Um dia, emocionado, Seu Bernardo me contou, durante um desses encontros furtivos, que ainda na Polônia ouvia os discursos de Leon Trotsky no rádio. Seu Bernardo sabia – soubera, pelo menos – russo. Não era de arroubos. Mas tinha posições firmes, assim como a família. Um dia eu soube que fora chamado à escola de seu filho caçula. Motivo: este reproduzira, em aula, os comentários que ouvira em casa sobre o golpe e a ditadura de 64. Não houve represálias. Mas imagino o susto de Seu Bernardo, que fugira dos pogroms europeus, que ouvira Trotsky no rádio, que era, evidentemente, um amante da liberdade, ao ser chamado para um “esclarecimento” na escola pelos comentários domésticos sobre nossa ditadura.
Vi Seu Bernardo pela última vez na rua Fernando Machado (antiga rua do Arvoredo, que ironia!), diante de um supermercado instalado ruidosamente no que restava do prédio de meu antigo colégio, o Anchieta. Como sempre, paramos para conversar um pouco. Na jovem Rússia, egressa da União Soviética naufragada, Gorbachev acabara de cair, derrubado por um golpe restauracionista, este por sua vez derrubado pela resistência que tivera a liderança de Boris Yeltsin. A mídia saudava Yeltsin como um “herói da democracia”. Este, ao invés de restituir o poder a Gorbachev, descartou-o, e assumiu as rédeas – o trono, talvez, de Moscou.
Era tudo mesmo muito confuso. Mas não para Seu Bernardo. “Não gosto desse Yeltsin”, me disse ele. “É um homem de direita, um autoritário. Vai construir um governo reacionário”. Na época me calei, eu nem sabia muito bem quem era aquele Yeltsin. Só fui compreender a extensão do comentário de Seu Bernardo ao visitar, muitos anos depois, a cripta dos Romanov, na Catedral de São Pedro e São Paulo, em São Petersburgo. Aliás, não foi bem a cripta. Nesta, estão, além de outros czares, o czar Nicolau II e a esposa. Com justiça, devo dizer: não considero que o extermínio da família Romanov tenha sido um dos grandes feitos da Revolução de 17, que, sem dúvida, promoveu grandes feitos – outros. Dei-me conta ao ver, no corredor ao lado, a exposição das fotos dos remanescentes dos Romanov e familiares – na maioria playboys de óculos escuros da última moda, vivendo na Suíça ou por aí, damas de balagandans sacolejantes, aristocratas encarquilhado(a)s pela riqueza ostentada – e no meio o Boris Yeltsin, com aquele ar pimpão de restaurador da Santa Aliança.
Não deu outra. Das consistências e das inconsistências da política de Yeltsin nasceram, sucessivamente, a desorganização do nível de vida russo, algumas das piores organizações mafiosas da Europa e da Ásia, um bando de oligarcas de dar inveja ao coronelismo brasileiro e, last but not least, o novo czariato de Vladimir Putin, o ex-diretor da KGB que tornou-se o Magnus Imperator do neo-capitalismo nascente.
Salve a lucidez do Seu Bernardo!
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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés (finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012). Ambos estão à venda na Livraria da Travessa e na Gato Sabido pela metade do preço dos livros impressos.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Maravilha. E salve também a sua lucidez por essa belíssima e comovente crônica.
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Bela crônica, leve e solta parece mesmo nem ter partitura!
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Muito boa leitura. Boas lembranças também. Do neto do Seu Bernardo,
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Boas lembranças do nosso amado avô, saudade sempre! Flavia Enk
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Muito comovente! um ídolo de toda família.
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