O enigma do precariado e a nova temporalidade histórica do capital – Parte 3

Por Giovanni Alves.

No video-documentário Precários Inflexíveis (Praxis Video, 2012), tornou-se recorrente nos depoimentos de jovens trabalhadores precários, o sentimernto de ansiedade perante o futuro. Como observou uma trabalhadora precária: “Ser precário é isso: é ter um futuro continuamente hipotecado; ser precário é viver mesmo o dia-a-dia, mesmo o dia-a-dia, quase hora-a-hora. Ser precário é a impossibilidade de fazer um plano e de ter a certeza relativa que eu vou poder concretiza-lo.” Esta é uma percepção candente de jovens altamente escolarizados que tiveram seus sonhos de inserção salarial frustrados pela nova dinâmica do capitalismo global. Eles constituem o “precariado”, a nova camada social do proletariado que cresceu nos paises capitalistas mais desenvolvidos nos “trinta anos perversos” de capitalismo global.

O crescimento da precariedade laboral, caracterizada pelo desemprego e trabalho precário atinge principalmente milhões de jovens-adultos com alta escolaridade que percebem que seus certificados e diplomas são pouco mais que bilhetes de loterias, vivendo, deste modo, o que Guy Standing em seu livro The Precariat, salientou como sendo “frustração de status”. Na verdade, existe hoje, mais do que nunca, o perigo de uma bolha educacional global, como milhões de estudantes tentando sobreviver com o fardo de enormes dívidas. Enfim, o precariado vive em situação de insegurança social e econômica, sem identidades ocupacionais, entrando e saindo de empregos, constantemente preocupado com os seus rendimentos, habitação e muito mais.

Em 28 de outubro de 2011 foi lançado nos EUA o filme de ficção-científica In Time, de Andrew Niccol (no Brasil intitulou-se O Preço do Amanhã e em Portugal, “Sem Tempo”). Nicoll foi o roteirista de O Show de Truman (1998) e dirigiu também Gattaca (1997), S1mOne (2002) e Senhor das Armas (2005). Niccol é um roteirista e diretor critico do nosso tempo historico, criando fábulas distópicas da ordem insana do capital. No mundo social de In Time, os cientistas conseguiram descobrir uma forma de destruir o gene do envelhecimento, tornando o tempo a principal moeda de troca para sobreviver e também obter lucros. O tempo virou moeda. As pessoas param de envelhecer aos 25 anos. Entretanto, após alcançarem os 25 anos, possuem apenas mais um ano de vida, a não ser que tenha dinheiro para pagar pelo tempo extra. Os ricos conseguem “ganhar” décadas de uma só vez, podendo até se tornar imortais. Os outros têm de pedir esmolas, pegar emprestado ou roubar mais horas para chegar vivo até o final do dia.

O filme In Time é uma metafora distópica da nova temporalidade histórica do capital. De certo modo, é um filme visionário do precariado (o filme foi lançado no alvorecer dos protestos de ruas nos EUA com o movimento “Occupy”, e na União Européia, com os Indignados espanhóis). Na verdade, a camada social mais radical da classe social do proletariado possui carecimentos radicais que são incapazes de serem satisfeitos no interior da ordem burguesa hipertardia – por exemplo, o carecimento de uma vida plena de sentido que aparece fetichizado – no plano da consciencia contingente – no sonho da vida para o consumo. Por isso, uma parcela significativa de jovens precários são nostálgicos do fordismo-keynesianismo. Entretanto, a luta de classe do precariado atinge hoje, o cerne da democracia burguesa cativa da ordem sociometabolica do capital. Para ampla parecla da juventude européia, a desilusão com as instituições apodrecidas da democracia liberal tornou-se candentes no berço histórico das instituições democrático-burguesas. Por isso, nos paises capitalistas centrais, o precariado e sua insatisfação social cresceu nas últimas decadas, assumindo uma visibilidade social expressa por exemplo, no plano do pensamento, no conceito de precariado..

Utilizamos o conceito de “carecimentos radicais” de acordo com a filósofa hungara Agnes Heller que os definiu como “os carecimentos que se formam nas sociedades fundadas em relações de subordinação e de dominio, mas que não podem ser satisfeitos quando se esta no interior delas. São carecimentos cuja satisfação só é possivel com a superação dessa sociedade.” Por exemplo, o carecimento radical da verdadeira democracia (democracia real ya!), reivindicado pelos Indignados espanhóis, é incapaz de ser satisfeito no interior das sociedades de mercado; ou ainda o carecimento radical da “boa vida” ou vida plena de sentido no interior do sistema social do capitalismo manipulatório é um sonho impossivel de ser realizado.

Agnes Heller  elaborou a discussão sobre os “carecimentos radicais” em meados da década de 1970. Naquela época, o capitalismo global ainda não se desenvolvera o suficiente para explicitar suas candentes contradições objetivas. Apesar da grande crise, a ilusão social-democrata persistia por conta da manipulação intensa e ampliada do poder da ideologia. Por exemplo, para amplas parcelas da juventude trabalhadora de “classe média” reforçou-se, no momento imediato de descenso histórico do capital, a ilusão da compatibilidade entre capitalismo e bem-estar social ou ainda, compatibilidade entre realização pessoal e profissional baseado no ethos de consumo, por um lado, e preservação da ordem de mercado e democracia burguesa, pelo outro lado. Entretanto, no decorrer dos “trinta anos perversos” de capitalismo global, a ilusão social-democrata mesclada com tonalidades neoliberais, naufragou nas contradições candentes da ordem burguesa hipertardia. Quase vinte anos depois do débacle da experiencia do “socialismo real”, em 1989, tivemos o débacle do projeto reformista da social-democracia européia que, na crise de 2011 naufragou irremediavelmente como promessa civilizatória efetiva. Entretanto, no cenário de barbarie social, o pendulo politico perverso da ordem burguesa hipertardia continua oscilando entre a direita conservadora e a social-democracia neoliberal que respalda hoje, com tonalidades cor-de-rosa, as politicas de austeridade monetarista (o caso francês, com o socialista François Hollande sucedendo a conservador Nicolas Sarkozy é paradigmático. Enfim, como diria Lampedusa, “É preciso que tudo mude para tudo ficar na mesma.”). Na verdade, a crise da democracia representativa burguesa européia é a crise radical dos “intelectuais orgânicos” da classe social do proletariado. Além disso, é a crise do pensamento critico europeu adormecido em seu sono dogmático por décadas de manipulação por meio da ideologia do neopositivismo e ideologia do pós-modernismo. O Velho Mundo clivado pelas contradições candentes do capitalismo global não consegue operar a “negação da negação”, no plano politico-concreto. Apesar disso, tornou-se claro, no plano da consciência contingente de amplas camadas sociais do proletariado europeu, o sentimento de “frustração de status” decorrente da quebra sistematica de expectativas dos jovens trabalhadores, principalmente da “classe média” altamente escolarizada e com uma multiplicidade de anseios e sonhos de realização profissionais, obrigados a contentar-se com empregos precários e estatutos salariais atípicos.

Enfim, a ordem da financeirização da riqueza capitalista em sua etapa de crise estrutural, com o desempenho mediocre das economias de mercado na geração de emprego e redução das desigualdades sociais, corrói não apenas o Estado social, mas a própria democracia burguesa e os ideias de consumo e inclusão social. Na verdade, o surgimento da camada social  do precariado é a prova histórica viva da falencia da ordem social burguesa baseada nos ideais de emprego com direitos sociais, inclusão social com consumo e Estado social com democracia representativa.

Em seu livro The Precariat, Guy Standig descreve o que denominamos de condição de proletariedade da nova camada social do proletariado que se ampliou nas últimas décadas. É uma parcela de jovens-adultos cujos pais pertencem a camada estável da sociedade salarial, mas os filhos encontram-se alienados e sem perspectivas de inclusão na ordem salarial burguesa. Deste modo, o precariato é produto da crise de mobilidade social da ordem burguesa. Por exemplo, pela primeira vez na história européia moderna, uma parcela significativa da geração de filhos de trabalhadores asalariados estáveis não conseguirá manter, pelo menos, o padrão de vida dos pais.

Entretanto, Guy Standing não considera o precariado como sendo parte da classe social do proletariado. Pelo contrário, para ele o precariado é uma “nova classe perigosa”. Talvez o suposto perigo do precariato salientado por Guy Standing decorra dos seus carecimentos radicais que, incapazes de serem absorvidos pela ordem burguesa baseado em relações de subordinação e de dominio podem dar origem a ações coletivas irracionais, como aquelas que ocorreram nos riots de Londres em 2011; mas também podem se expressar em movimentos de massa como o movimento Occupy ou dos Indignados de Madri e Lisboa.

Enfim, pode-se dizer que, com a crise européia, existe um espectro que ronda a Europa – o espectro do precariado. Os sociologos da ordem burguesa não conseguem identificar na massa de jovens proletários altamente escolarziados, mas frustrados em sua pretensões salariais, um pertencimento de classe capaz de “negar” a ordem burguesa. Pode-se dizer que o precariado repõe o sentido do proletariado como classe social negativa, na acepção do jovem Marx. É claro que o Marx de 1843 tinha em mente os proletários industriais do factory system cujo movimento social radical insurgia-se contra a ordem industrial-burguesa emergente. Na verdade, para o jovem Marx o proletariado era a classe negativa por excelência: os que não têm propriedade, obrigados então a trabalhar, os que já são uma classe em dissolução e em transição constante (o negativo em ato), aqueles que não têm esperança no progresso burguês e por isso mesmo os que radicalmente podem recusar o seu papel de suporte do sistema. Entretanto, naquela época (1843), o jovem Marx não tinha descoberto ainda a categoria de mais-valia relativa. A luta de classes, a organização sindical e politica da classe trabalhadora e a capacidade de acumulação do capitalismo industrial em sua fase de ascensão histórica, que permitiram ao sistema produtor de mercadorias elevar salários reais da classe trabalhadora organizada sem prejudicar o nivel de acumulação do capital, contribuiram para a redistribuição das riquezas sociais produzidas entre parcelas da classe trabalhadora organizada, permitindo a construção da sociedade burguesa de direitos sociais. Naquelas condições históricas, o proletariado organizado, constituido em sua maioria por trabalhadores assalariados “estaveis”, abdicou, nos pólos mais desenvolvidos da ordem burguesa, da perspectiva de “negação” do capitalismo. De fato, a ilusão social-democrata tinha um lastro na materialidade de classe. Entretanto, na etapa de crise estrutural e descendencia histórica do capital, o sistema mundial produtor de mercadorias não conseguiu manter as promessas civilizatorios de sua época de ascensão historica. A crise da social-demoicracia oculta a crise estrutural do capital. Deste modo, ressurge com vigor, com o protagonismo social da camada social do precariado, o conceito de proletariado como classe negativa. Entretanto, não se trata mais do proletariado industrial de meados do século XIX, alienado do ideal de produção, mas sim do precariado como camada do vasto mundo social do proletariado, alienado do ideal de consumo.

Guy Standing observa – e com razão – que o precariado não é a velha classe trabalhadora. Entretanto, isto não quer dizer que seja uma nova classe social. Ora, como eles poderiam ser uma nova classe social se não ocorreu nenhuma mudança histórica de modo de produção ?. É claro que eles não se identificam subjetivamente – no plano da contingencia – com as outras camadas sociais da classe do proletaroiado – os “estáveis” e os antigos precários de baixa qualificação. Mas não podemos subestimar a dinâmica da luta de classes e esquecer que as dificuldades de formação da consciencia de classe na camada social do precariado decorre da fragmentação social provocada pela dinâmica do capitalismo manipulatório, principalmente no núcleo orgânico do capitalismo global. O precariado tornou-se alvo, nos “trinta anos perversos” de capitalismo global, do individualismo consumista de massa que caracterizou as sociedades burguesas mais desenvolvidas. Ao mesmo tempo, o precariado representa a nova camada social que expressa em si e para si, as contradições qualitativamente novas da ordem burguesa do capitalismo global. Na verdade, a propria dimensão de classe social do proletariado – em si e para si – é adquirida por eles na medida em que se aproximam, no processo de luta de classe, das outras camadas de trabalhadores assalariados organizados ou não, em sua luta anti-capitalista contra as misérias do mundo burgues (por exemplo, a manifestação dos operários mineiros espanhois – a Marcha de Madri em 11 de julho de 2012 – que teve a solidariedade e apoio do M15M, os indignados espanhóis, expressa a aliança politica possivel e necessária entre camadas sociais do proletariado, permitindo vislumbrar, na atividade prático-sensivel da luta de classe, o sentido de classe social do proletariado como classe consciente de sua negatividade).

Na medida em que os sociologos da ordem burguesa não conseguem identificar a natureza radical das contradições da ordem buguesa na nova temporalidade historica do capital, não conseguem decifrar o enigma do precariado.

***

O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura. O autor conta com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, à venda em ebook por apenas R$5 na Gato Sabido, Livraria da Travessa, dentre outras. Giovanni Alves conta também com o artigo “Trabalhadores precários: o exemplo emblemático de Portugal “, escrito com Dora Fonseca, publicado no Dossiê “Nova era da precarização do trabalho?” da revista Margem Esquerda 18, já à venda em ebook na Gato Sabido.

***

Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Em 2012, dirigiu o curta-metragem Precários inflexíveis. Confira abaixo:

 

1 comentário em O enigma do precariado e a nova temporalidade histórica do capital – Parte 3

  1. Republicou isso em Projeto Observatório do Precariadoe comentado:
    O desvelamento do enigma do precariado por Giovanni Alves. Primeira parte.

    Curtir

2 Trackbacks / Pingbacks

  1. O enigma do precariado e a nova temporalidade histórica do capital – Parte 3 | Baierle & Co.
  2. O que está por trás das redes sociais? | Eu Ciborgue

Deixe um comentário