Paraguai, Brasil e o desarme da arapuca

Por Edson Teles.

No último dia 22 de junho, o presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, foi destituído de seu cargo via julgamento realizado pelo Senado, com 39 votos a favor da cassação, 4 contra e 2 abstenções. Em seu lugar, assumiu imediatamente o vice-presidente Federico Franco. A sessão ocorreu menos de um dia após a Câmara de Deputados aprovar a abertura do processo e durou cerca de cinco horas. A acusação principal foi a de que o presidente teve “fraco desempenho de suas funções” durante o conflito entre trabalhadores em terra e a polícia, em cumprimento de uma ordem judicial de reintegração de posse. Tal ação ocorreu uma semana antes, no dia 15 de junho, e terminou com a morte de 11 trabalhadores e 6 policiais. O presidente deposto alega, contra a cassação, a ausência do direito à ampla defesa e da presunção de inocência. Curioso que a última acusação, das cinco alegadas, foi a crítica à decisão de Lugo em ratificar o Protocolo de Ushuaia II, de dezembro de 2011, que prevê a intervenção externa em caso de quebra da ordem democrática (teria sido uma previsão do que viria acontecer?).

A cassação do mandato está sendo chamada sugestivamente de “golpe democrático”. A fraca institucionalidade é marca constante na história paraguaia. Em 1989, a ditadura de Alfredo Stroessner com 35 anos de duração foi finalizada com um golpe de estado clássico: a quartelada do general Andrés Rodríguez. Em 1996, o general Lino Oviedo, do mesmo Partido Colorado do ditador Stroessner e principal grupo a votar pelo impeachment de Lugo, tentou um golpe. Condenado pelo Judiciário, Oviedo permaneceu livre diante da recusa do presidente de então, Raúl Cubas, em cumprir a ordem de prisão. Agora, mediante uma abertura legal sob a chancela de “julgamento político”, o presidente eleito é destituído do cargo em “rito sumário”. Impeachment? Golpe de Estado? Foi um ato legal ou romperam com o Estado de Direito?

A seção VI do Capítulo I da Constituição do Paraguai define a possibilidade de julgamento político dos principais cargos da República, incluindo o de presidente, os quais podem ser processados “por mal desempenho de suas funções, por delitos cometidos no exercício de seus cargos ou por delitos comuns”. Ou seja, tudo que a elite que governa o país, seja nos cargos da República ou no controle da economia e das riquezas, desejar. Nada mais comenta, a não ser que o processo deve ser autorizado por dois terços da Câmara e a condenação votada por mais dois terços do Senado.

O golpe de estado com verniz “democrático” não é algo totalmente novo na América Latina. Guardadas as proporções e as diferenças históricas e locais, Honduras sofreu da mesma estrutura de aplicação de decisão de algum órgão da República (no caso, a Corte Suprema) para destituir um mandatário eleito. Em Honduras fez-se uso das Forças Armadas. No Paraguai não foi preciso: os aliados de Lugo ou se alinharam à oposição (é o caso do Partido Liberal do atual presidente Franco, que participou da chapa vitoriosa e logo após a eleição rompeu com Lugo), ou não têm força suficiente para esboçar alguma reação mais eficaz. No momento, a esquerda paraguaia já se prepara para lançar candidato às eleições de abril de 2013.

Tal formato “democrático” do golpe expõe certo aspecto autoritário presente nas novas democracias latino-americanas surgidas após as ditaduras. Apesar da onda democratizante dos anos 1980 e 1990, com suposta inclusão de sujeitos cidadãos participantes, com a conquista de direitos e a formação de governos de esquerda ou comprometidos com o discurso da democracia, a ação política nos novos estados de direito vem perdendo sua capacidade transformadora. Diante de diferentes fantasmas – crise econômica, terrorismo, movimentos sociais radicalizados, violência urbana – se tem autorizado uma série de medidas de exceção dentro do Estado de Direito e sob a legalidade das constituições. São os casos brasileiros de uso das Forças Armadas nos morros cariocas, da violação de direitos dos adolescentes autores de ato infracional e dentro dos presídios, dos abusos nos canteiros de obras das hidrelétricas da região Norte, da matança cultural e material dos índios, da ação violenta e repressiva das polícias militares contra os movimentos sociais e nas periferias das grandes cidades etc.

Na Constituição brasileira de 1988, seu Título V, que trata “Da defesa do Estado e das Instituições”, indica a presença dos militares nas questões do poder político. No artigo 142, a ingerência militar nos assuntos civis mostra-se clara: “As Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O termo “ordem” tem várias conotações em nossa Constituição: ordens “interna e internacional”, “constitucional”, “pública e social”, “econômica”.           

Como podem os militares se submeterem aos “poderes constitucionais” de uma República democrática (Executivo, Legislativo e Judiciário) e, ao mesmo tempo, garantí-los? Ao instituir as Forças Armadas como garantidoras da lei e da ordem, acaba-se por estabelecê-las como um dos poderes políticos da sociedade. Em uma democracia plena o poder não pode ser garantido por quem empunha armas, mas pelo conjunto da sociedade, por meio de eleições, da participação das entidades representativas da sociedade e dos partidos políticos.

 Independente de ser com o apoio de militares ou por meio de cortes supremas, ou ainda via poderes legislativos ou executivos, haverá sempre uma necessidade maior, se assim entenderem as oligarquias políticas, as velhas e as novas, que autorize as medidas emergenciais e urgentes para sanar os problemas “fantasmagóricos” da democracia.

Parece que vivemos uma armadilha: paradoxalmente, evoluímos para a construção de um regime de registro das mais variadas práticas em direitos, legalizando os conflitos e as relações sociais; por outro lado, esta mesma disciplinarização da vida por meio das leis tende a estabelecer uma judicialização da política. Tal judicialização introduz um elemento autoritário nas democracias contemporâneas: o estado de exceção, ou seja, a suspensão dos direitos por meio de um mecanismo interno à própria lei. A questão que se coloca para os defensores de uma efetiva democracia é: como desarmar esta arapuca?

***

Para aprofundar a discussão sobre a herança social, política e cultural da ditadura militar, recomendamos a leitura de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), coletânea de ensaios organizada por Edson Teles e Vladimir Safatle. A versão eletrônica (ebook) está à venda pela metade do preço do livro impresso. Compre nas livrarias da TravessaSaraiva e Gato Sabido.

Edson Teles é também autor de um dos artigos que compõe a coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas, que tem sua versão impressa vendida por R$10 e a versão eletrônica por apenas R$5 (disponível na Gato Sabido, Livraria da Travessa e outras).

***

Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

1 comentário em Paraguai, Brasil e o desarme da arapuca

  1. Realmente, as questões do autoritarismo na atual democracia brasileira e nas demais presentes na América Latina estão fadadas à intervenção do Estado de Exceção, sempre com o pressuposto de manter a ordem. Porém, o Estado democrático tem como essência a obrigatoriedade de não priorizar setores sociais específicos. Portanto, dar aval às Forças Armadas para que elas tenham autonomia e prioridade frente aos diversos setores sociais é uma ruptura com a essência democrática.

    Curtir

Deixe um comentário