Cartão vermelho

Por Izaías Almada.

A temperatura era de quase quarenta graus quando os dois times entraram em campo. O da casa tinha a camisa em listas verticais pretas e verdes. O time visitante vestia uma camisa branca com golas e punhos vermelhos. Era a decisão da zona oeste do estado, segunda divisão.

O time de Santo Antonio do Paraíso recebia o de Palmital e a rivalidade era enorme. No primeiro turno do campeonato o Palmital venceu em seu estádio por dois gols a zero. Além de decisivo, o jogo de hoje seria a revanche para os de Santo Antonio do Paraíso.

Era a primeira vez que o Paraisense chegava a uma final de campeonato e a festa era grande, como se pode imaginar. Jogo difícil, disputado a cada palmo do gramado, cheio de jogadas violentas.

O primeiro tempo terminou zero a zero, mas a torcida local estava nervosa e irritada com a atitude do seu goleiro Ananias que, com apenas quinze minutos de jogo, correu atrás do ponta direita adversário e derrubou-o com um belo soco no pé do ouvido.

Ninguém entendeu o motivo daquela agressão. Cartão vermelho. Expulsão e, é claro, o time da casa teria que jogar mais setenta e cinco minutos com dez jogadores, um deles o goleiro reserva. Irresponsabilidade.

Assim que terminou o primeiro tempo o repórter da rádio local correu até o tal ponta direita do Palmital e quis saber o que havia acontecido. Liso como quiabo, o jogador – chamado Leleco – foi se desvencilhando de todos dizendo que não sabia o que tinha acontecido e que fossem fazer perguntas ao goleiro Ananias, pois ele é quem perdera a cabeça. Durante o intervalo do jogo não se falou de outra coisa.

O repórter foi atrás do negrão Ananias, mas esse já havia se mandado dos vestiários como medida de precaução e segurança, caso o Paraisense perdesse o jogo e o campeonato.

Mas assim Deus não quis. Pelo contrário. O Paraisense terminou por ganhar o jogo por um a zero e foi proclamado campeão da zona Oeste, classificando-se para o quadrangular que indicaria dois times ao acesso da primeira divisão.

Uma festa danada em Santo Antonio do Paraíso. Euforia e comemoração dentro do gramado, nas arquibancadas, nas ruas em volta do pequeno estádio e no coreto da praça, onde a banda da cidade literalmente executava o Hino Nacional.

Ninguém reparou que o goleiro expulso tinha sumido e nem deram pela falta dele. Até alguém se lembrar que ele não poderia ficar fora da festa. Talvez a sua atitude impensada tivesse intimidado o time visitante, ajudando a desmoralizar as hostes inimigas, quem sabe?

Surpresa maior foi descobrirem que Ananias se mandara da cidade com a mulher, prometendo voltar dali a alguns dias quando tudo tivesse esquecido. Ninguém entendeu nada e as coisas ficaram por isso mesmo se Pelópidas, vizinho do enigmático goleiro, não tivesse dado com a língua nos dentes.

O que se passou foi o seguinte: Leleco, ponta direita do Palmital era primo de Armandinho, que morava em Santo Antonio do Paraíso. Por sua vez, Armandinho, irmão do inconfidente Pelópidas, morava em frente à casa do goleiro do Paraisense e ficava muito intrigado com o fato de ver que toda a vez que o time da cidade jogava, mesmo na hora exata do jogo, a mulher saía de casa e ia até a esquina, onde embarcava numa Parati vermelha de vidros escuros… Olívia, a mulher do goleiro, voltava dali uma hora e meia, sem tirar nem por, no sentido cronológico bem entendido, como se estivesse em sincronia com o cronômetro do juiz das partidas.

Durante meses Armandinho ficou em dúvida se entregava ou não a mulher do goleiro, aquela maravilha de ébano, pois não se conformava com toda aquela traição. Enquanto Ananias se transformava num dos principais responsáveis pela bela campanha do Paraisense no campeonato, a mulher aproveitava da melhor maneira possível os noventa minutos regulamentares.

Certo dia Armandinho reuniu coragem, atravessou a rua e apertou a campainha da casa em frente. Ananias não estava e Armandinho arriscou a chantagem: “De quem é a Parati vermelha que vem pegá-la para passear nos dias de jogos do Paraisense?” A boazuda acusou o golpe, mas não perdeu o rebolado. “Não é da sua conta e se insistir na conversa ainda pode se dar mal…”

Armandinho não gostou nada de ser tratado daquela maneira, ainda por cima por uma sirigaita que corneava o marido. Pegou da caneta e fabricou alguns bilhetes anônimos que ia pregando no limpador do pára-brisa do fusca do Ananias. Intrigado, não notou qualquer reação na casa em frente. E a Parati vermelha continuou com suas incursões dominicais. A gostosona devia ter uma lábia danada para ludibriar o marido.

Pelópidas ficou sabendo das investigações do irmão e não gostou nada disso. Armandinho não devia se meter com a vida dos outros. Nem bem Pelópidas teve tempo de dar uma bronca no irmão e Armandinho foi encontrado nos arredores de Santo Antonio do Paraíso todo arrebentado: uma surra de fazer gosto.

Pelópidas achou que o irmão merecia o corretivo, mas não gostou da maneira como o aplicaram. Assim que ficou definida a final do campeonato, Pelópidas viajou até Palmital e foi visitar o primo Leleco, o tal ponta direita. Contou-lhe toda a história. Leleco agradeceu e disse que se quisessem apostar contra o Paraisense ainda poderiam ganhar uma grana com a aposta, pois se dependesse dele, Leleco, o Ananias não acabaria o jogo.

Dito, feito e acontecido. Leleco cumpriu sua palavra e o goleiro do Paraisense, como sabemos, foi para os chuveiros mais cedo. E dos vestiários rapidinho para a casa. Não podia era ficar com aquela sensação de ser o corno mais conhecido na região. Arrumou-se o mais rápido que conseguiu e chegou a casa antes do final do primeiro tempo.

Lá, estava tudo em seus lugares e não havia nenhuma Parati vermelha por perto. Alguém estava querendo encrencá-lo, mas Ananias não ia permitir que o merda do ponta direita passasse o tempo todo do jogo lhe dizendo que a mulher estava no bem-bom com outro, enquanto ele ficava ali noventa minutos de olho numa bola.

Preocupado com a sua atitude, que poderia prejudicar o Paraisense, e pensando no pior, Ananias tão logo chegou a casa enfiou a mulher um tanto aparvalhada dentro do fusca e partiu para Matãozinho.

O que Pelópidas não sabia é que a Parati vermelha de vidros escuros pertencia ao português Manuel Carrapicho dos Santos, honorável presidente do Paraisense Futebol Clube, atual campeão da Segunda Divisão e que naquele domingo foi assistir a grande final da zona Oeste.

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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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