De bar em bar XVII: Giratório e alguns mais

Por Mouzar Benedito.

O centro de São Paulo tinha bares e restaurantes populares memoráveis, ótimos, que nunca deviam ter sido fechados, deveriam fazer parte do patrimônio cultural da cidade. Um deles era o Jeca, na esquina mais badalada da música popular brasileira, a Ipiranga com a São João, do outro lado do Bar Brahma. Tinha uma canja e um caldo verde ótimos e baratos. Em fim de noite, de madrugada mesmo, depois de alguma bebedeira, eu parava lá às vezes, antes de continuar a pé até meu apartamento na 9 de Julho (quem anda a pé de madrugada pelo centro de São Paulo hoje?).

Um que eu sinto não ter frequentado era o Tabu, na rua Vitória, bem no meio da Boca do Lixo. Era ponto de prostitutas e ex-jogadores de futebol decadentes, aos quais o dono sempre dava um prato de comida. Lá, além desses já citados, policiais, marginais, traficantes e gente “honesta” da classe média conviviam numa boa.

Outro, que eu frequentava na hora do almoço — mais por achar divertido —, era o Giratório. Ficava na avenida São João, do lado direito de quem sobe, logo depois do largo do Paissandu. Hoje, parece-me, tem lá uma livraria e mais alguma casa comercial.

Era um restaurante popular, estreito e fundo. Só funcionava para o almoço. Não havia mesas, a comida era servida no balcão. Só que com um detalhe: o balcão era giratório, com cadeiras que o acompanhavam, e a cozinha ficava no meio desse balcão giratório. Os pratos eram numerados, tinham suas composições escritas na parede, na entrada.

Formava-se uma fila em frente ao caixa, a gente pedia o prato pelo número e a bebida, pagava na entrada mesmo, e sentava numa cadeirinha, que ia girando junto com o balcão. Ao passar em frente a uma janelinha da cozinha, serviam o prato pedido (sempre certo) e a bebida. Eu achava o máximo.

O balcão dava uma volta grande, com as respectivas cadeiras andando na mesma velocidade, claro, de modo que dava tempo da gente almoçar calmamente antes de chegar à porta de saída.

Mas sempre havia alguém que comia devagar demais, que chegava em frente à saída e continuava comendo. Aí, tinha direito de continuar, mas quem estava na fila de entrada não gostava dos vagarosos, pois era uma vaga a menos no balcão. E frequentemente ouvia-se uma vaia dada com gosto para algum desses retardatários.

Uma brincadeira de criança, falar rimando “um dois, feijão com arroz; três quatro, feijão no prato…” virou nome de um restaurante popular na rua Aurora, pertinho da praça da República.

Uma inovação do restaurante era que a pessoa “montava” seu próprio prato. Não como os self-service (que meu amigo Chico Villela chama de serve-serve) de hoje. A gente olhava o cardápio e pedia cada coisa que compunha o prato. Por exemplo: feijão preto, arroz, lombo de porco e couve; ou tutu de feijão, arroz, bisteca e salada de tomate. Hoje, podemos também pedir porções separadas em alguns restaurantes, só que os preços são altos, um prato “montado” assim acaba custando muito caro. O Um Dois Feijão com Arroz era baratinho, frequentado por estudantes.

A frequência lá aos domingos era enorme, porque muita gente ia à feira de artesanato da praça da República e em seguida procurava um lugar com comida barata e saborosa. O bar chegou a abrir filiais. Uma delas ali perto, outra na praça da Sé, que era o preferido por muita gente, como o cartunista Maringoni. Ficava num “subterrâneo”. O próprio Maringoni diz que não consegue imaginar porque esses restaurantes fecharam, pois eram muito frequentados. Eu sempre frequentei o primeiro deles, e também achava barato.

Mas mesmo sendo barato, havia estudantes que não tinham dinheiro nem pra comer lá e precisavam usar uns expedientes diferentes. Um deles era o Alagoinhas, estudante de História. Mas ele comia lá, dando um bom espaço de tempo entre uma vez e outra. É que ele costumava dar o que chamávamos de pinote. Comia bem e depois saía correndo sem pagar a conta. Fazia isso em vários lugares, muitas vezes com garçons correndo atrás.

Depois, o Alagoinhas virou professor universitário, com carteira assinada e tudo, e voltou ao Um Dois Feijão com Arroz para comer… e pagar! Mas justo nesse dia, um garçom se lembrou dele, do pinote acontecido meses antes. Chamou os donos e, com um policial que estava por ali, enquadraram o Alagoinhas. Ele se fez de ofendido, dizendo “eu sou um professor universitário”, mostrando a carteira profissional e dando bronca no garçom, nos donos e no policial.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

10 comentários em De bar em bar XVII: Giratório e alguns mais

  1. Antenor m gigante. // 17/06/2013 às 9:59 am // Responder

    Mozart, valeu. É, São Paulo revive vou matar saudade daquele tempo.. Vou entrar no Blog.

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  2. Antenor m gigante. // 17/06/2013 às 10:36 am // Responder

    Mouzar, Que histórico! Para mim vc é um vencedor. Não perca o Pic.

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  3. Acho que o amigo se confundiu com o local do Restaurante Giratório. Ele ficava na Rua Amador Bueno quase na esquina do Largo Paiçandu em frente à estátua da Mãe Preta (do lado da Igreja).
    Ele nunca foi na Av. São João. Nos anos 60, como office boy, frequentei muito o Giratório. Como era Boy e não tinha dinheiro o prato era sempre o mesmo: Arroz e dois ovos mais a sobremesa que era de graça.
    Waldevir Bernardo.

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    • Laércio Card // 09/09/2021 às 8:35 pm // Responder

      Isso mesmo, era na Amador Bueno hoje Rua do boticário. Realmente era o prato mais baratinho rsrsr a primeira vez que fui levado por um Amigo Ele falou que era pra eu pedir Arroz Mexicano rsrsr. Em frente tinha o Restaurante Ita que até hoje ainda existe, onde comi também por muitos anos e ainda vou de vez em quando. Eu tinha sómente 13 anos, hoje 69 . o tem,po passou . abs

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  4. Clovis Pacheco F. // 25/05/2016 às 2:09 pm // Responder

    O Giratório era mesmo na amador. Muitas vezes comi rabada com polenta, tomando cerveja Caracu!

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  5. Roberval Rodrigues Barioni // 27/07/2017 às 9:55 pm // Responder

    Caro Mouzar, adorei ver a sua versao do Giratorio! Na verdade ele situava-se mesmo na antiga rua Amador Bueno. Digo com propriedade porque passei minha infancia todo indo diariamente ao Giratorio, pois ele pertencia ao meu finado pai, Sr. Ezio Barioni. Apos sair da escolar Pais Leme na esquina das ruas Augusta e Av. Paulista, eu pegava o onibus eletrico e descia na praca da biblioteca. Depois caminhava por entre as galerias ate o Gira (como o chamavamos) onde o gerente, meu tio Breno supervisionava eu fazer minhas licoes de casa para somente depois ser “liberado” para brincar, ficar no balcao olhando a rua e finalmente jantar, ate esperar meu velho que passava vindo do seu Atelier para me resgatar e voltarmos juntos pra casa.

    Forte abraco! Roberval R. Barioni

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  6. Luiz Antonio Mauro // 07/06/2018 às 1:24 pm // Responder

    Com dinheiro curto fui poucas vezes no Giratório, na Amador Bueno, mas também no “Dom”, e no “Gato Que Ri”, nos entornos do Arouche, o desfile de Carnaval era na Av. São João, depois vieram os vegetarianos, quando as coisas melhoraram dava para ir no “Bar das Putas”, numa travessa da Consolação, comer bisteca com repolho, arroz era a parte e, vez ou outra, dançar no Brahma à noite.

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  7. Aldo Sigueira // 09/09/2018 às 8:56 pm // Responder

    No caso da Rede de “Restaurantes Um dois, feijão com arroz” (republica e Sé), o jornalista também se confundiu todo. Era um ótimo restaurante, e nada popular veja foto no site Abaixo. O dono da rede era um ator paulistano, filho do proprietário da famosa “cantina” Restaurante do Papai. O “Astro” tinha duas redes de Restaurantes no centro novo e velho de São Paulo, que viviam superlotados e frequentado por atores, banqueiros e turistas apaixonados pelo charme e glamour do centro paulistano. Rede de Restaurantes “Um, dois, feijão com arroz” e “La Farina. O proprietário foi o ator, paulistano, diretor e roteirista Mário Benvenutti, astro do cinema e de vários filmes de pornochanchadas e da TV, morto em um acidente de carro aos 67 anos, em 1993. Era filho do famoso “Papai”, dono do Restaurante do Papai. Mario Benvenutti era também irmão do famoso roqueiro “Nenê” dos “Incríveis”: Eu gostava muito do “Um, dois…” da Praça da Sé, com suas paredes decoradas com cartazes de filmes nacionais. No inicio dos anos 80 almoçávamos quase todo dia no famoso restaurante, com seus pratos disputadíssimos, em especial o “Filé a Cubana”, muito diferente dos “A cubana” que encontramos hoje em dia.

    https://www.poetarosani.com.br/fotos?lightbox=dataItem-ip5tcl8v

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  8. Puxa, eu ia quando criança à feirinha dos hippies na Praça da República com minha família. Depois íamos a um restaurante nas imediações que ficava no subterrâneo, tinha um balcão no meio e mesas nas laterais, era tudo meio apertado, Mas a comida era deliciosa e tinha espera às vezes. Quero tanto me lembrar do nome deste restaurante! Alguém sabe?

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  9. Walter J Gonçalves // 09/08/2024 às 7:47 pm // Responder

    60’s. Eram os “Anos Dourados”? Certamente! Acho que você está falando do Restaurante Giovani que ficava no subterrâneo em uma travessa curtinha que liga a Pça. da Republica à Av. São João. Me lembro deste nome, mas tinha outro igual na mesma rua ou na paralela (?). Especialidade em macarronada. Será esse? Eu ia nestes restaurantes, que me parece, tinham preços acessíveis. Giratório, Itá, Salada Paulista (Duas salsichas em volta do purê de batata com uma rodela de tomate em cima – ou era salada russa? – e um pãozinho. Eu trabalhava no Ed. Conde de Prates, na Líbero Badaró, era office-boy na Willys e ia a todos os restaurantes populares do lado do Mappin. Duas horas de almoço era sossegado…

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