O sapo Gonzalo em: Lonely are the brave

Por Luiz Bernardo Pericás.

A paciência de Gonzalo havia chegado ao limite. Após tomar quase um litro de Famous Grouse, sua língua estava afiada. “Esta é uma época de covardes”, pensava ele, lá com seus botões. “E de parvos também”. 

O fato é que o tossegoso caçote verdeal conversara por alguns minutos no Finnegan’s Pub com um professorzinho da Universidade de São Priápico, que se sentara casualmente a seu lado, ao balcão, já tarde da noite, e aquilo fora o suficiente para tirá-lo do sério. Tratava-se de um camundongo do tipo lattesiano, uma espécie que cada vez mais se proliferava na República dos Repolhos, a nação de filoxeras e micuins! E, por que não dizer também, dos proxenetas e rufiões.

O roedor em questão era um jovem estudioso da literatura tonganesa, apadrinhado de amigos poderosos e carreirista nato, amante das reuniões de departamento, de atas, papéis, documentos e carimbos. Aquele murídeo deslumbrado com cargos e posições, sempre de paletó e gravata, bigodes compridos impecavelmente aparados e orelhas largas, simbolicamente representava a maioria de seus colegas docentes e toda sua geração: seres fracos, moles, medíocres, oportunistas, totalmente enquadrados na lógica produtivista nefasta que havia sido criada e imposta verticalmente por outros (instâncias superiores, diziam), sonhando com “pontos” no currículo e com a obtenção de mais e mais “bolsas” e financiamentos para seus projetos “importantíssimos”. Mesmo com uma produção acadêmica pífia (representada basicamente por artiguetes requentados, sem qualquer pesquisa documental ou interpretação original), o catito, de peito inflado, se gabava de ser “o principal especialista na vida e obra do maior escritor de Tonga do século passado” (um romancista que ninguém conhecia), sobre o qual dava aulas semanalmente para seus alunos ruminantes. Sorridente, também adorava citar seu autor favorito, en passant, em conversas casuais com uma conhecida professora do curso de “antropofagia” (colega da mesma faculdade), quando os dois se encontravam em coquetéis, nas casas de editores, jornalistas e banqueiros, nos bairros chiques da cidade.

Seus assuntos eram variados. É claro que o arquipélago do Pacífico Sul, terra de “sua majestade”, o rei Tupou VI, era, sem dúvida, um dos temas favoritos do pequeno mamífero peludo. Mas ele gostava de discorrer também sobre moda, arte, culinária, comportamento, música e, por certo, política.  

“Sou de ‘esquerda’, mas temos de ser realistas, moderados”, falava o roedor. “Esses ‘comunistas’ de hoje são uns dinossauros, uns bichos estranhos, anacrônicos. Vivem em outro mundo. O mais importante agora é salvar a natureza, a camada de ozônio, os oceanos. O fundamental, minha querida, é a ‘sustentabilidade’! Temos de ser ‘ecologicamente’ corretos!”, continuava o topolino “socialista light”, dando risadinhas, enquanto movia seu rabinho despelado e segurava um coquetel de frutas na mão. 

Que monstruosidade! Só de lembrar do murganho, Gonzalucho tremia inteiro. Estava farto daquela gente… É verdade que a República do Repolho teve, ao longo das décadas, muitos homens de valor: Lima Barreto, Henfil, Graciliano e Abujamra. Sim, o velho Abu, o último dos moicanos, o nosso herói da resistência! Mas, infelizmente, sempre predominaram os ratos…

O fato é que o capitalismo consegue absorver, adaptar e incorporar todas as bandeiras de luta: “a luta pelos direitos civis e contra o racismo”; “pelo respeito às mulheres e contra o preconceito de gênero”; “para salvar a Amazônia e contra a destruição do planeta”. Importantes, sem dúvida. Mas limitadas.

Só há uma luta que o capitalismo não assimila: a luta de classes. Isso porque ela é a única que se propõe a destruí-lo. Se as outras são importantes pontualmente, não alteram o sistema, nem eliminam os detentores do dinheiro e do poder. As “minorias” ganham mais espaço, são “incluídas”; surgem novos autômatos para servir ao capital; ou novos consumidores para comprar o que lhes for imposto. Milhares de “estudantes” e “trabalhadores” de uma suposta “classe média” começam a aparecer e pipocar por todos os lados, despolitizados, despreparados culturalmente, loucos para “entrar no mercado” e se transformar em peças da engrenagem. Sonham em se tornar funcionários de alguma multinacional ou então, “concurseiros” e parasitas do serviço público, consumidores de celulares e video games. Cerveja, churrasco e futebol. Essa gente veste, então, com prazer e orgulho, a camisa das empresas ou repartições onde labutam, sentindo enorme orgulho em fazer parte daquele “time”, sem nunca questionar nada. Não pense! Não discuta! Trabalhe! Defenderiam seus patrões como cães de guarda, se fosse preciso. E matariam seus vizinhos para manter seus empregos. Buenas, buenas…

De qualquer forma, a “boa notícia” é que periodicamente continuam mandando ao Congresso Nacional, como sempre, os costumeiros bovinos que elegem de quatro em quatro anos. Políticos quadrúpedes que, por sinal, têm exatamente sua cara, inteligência e moral: estão bem representados…

Ninguém questiona a “máquina”, nem a possibilidade, mesmo que utópica e remota, de mudar tudo radicalmente. É como se a realidade já estivesse consolidada; só deveria ser “aperfeiçoada”. Assim, proliferam marchas e passeatas disto ou daquilo, promovidas pelos indivíduos mais esdrúxulos e estrambóticos imagináveis. Afinal, para os manifestantes “pós-modernos”, o que importa é a “multiplicidade” de pontos de vista: para eles, todas as opiniões se equivalem, têm o mesmo peso e valor. E marcham pelas bicicletas, golfinhos, baleias, fumetas, pernetas e ônibus elétricos! Pela adoção dos cachorrinhos abandonados! Pela cidadania! O colonialismo cultural chegou até aí, os “ativistas” se achando “antenados” com a “modernidade”, copiando modelos e bandeiras de luta de europeus e norte-americanos, e desfilando nas ruas com megafones, cartazes, carros de som e corpos pintados com tintas coloridas (alguns até mesmo usando máscaras ou narizes de palhaço), fazendo seu teatrinho e performances “vanguardistas” sem, entretanto, sequer abalar ou fazer um risco que seja no verniz do sistema.

No meio das manifestações, quando estão com sede, aproveitam para comprar umas latinhas de refrigerante e cerveja, vendidas por ambulantes miseráveis, estes sim, os verdadeiros representantes do “povo”. Welcome to the Monkey House! Já os manifestantes, aproveitam a birra gelada (fabricada por grandes corporações) durante as longas e cansativas passeatas…

Pois se querem imitar “propostas” estrangeiras, que imitem os bolcheviques na Rússia ou os líderes da revolução cubana! Esses, sim, propunham algo mais ousado: mudar o mundo!

Quando Gonzalo se lembrava de Lênin e de Fidel, seus olhos brilhavam. Dois homens nos quais se inspirar…

“É preferível estar sozinho do que ceder e se tornar um clone ou um boneco de plástico como todos os outros”, pensava o verdoso. Nosso batráquio argentino sentia-se mesmo um incompreendido, um solitário. Não importava…

Lonely are the brave. Foi isso que lhe veio à cabeça, subitamente, naquela hora, no meio da madrugada, quando caminhava melancólico pelos becos escuros da vizinhança. Ele se recordava do belíssimo filme dirigido por David Miller, com música de Jerry Goldsmith e escrito por Dalton Trumbo, o roteirista de Exodus e Spartacus, que anos antes havia sido colocado na lista negra macarthista de Hollywood, acusado de ser comunista. Uma película que você, leitor, deve assistir sem falta.

Aqui vale lembrar que Trumbo, de fato, foi membro do Partido Comunista dos Estados Unidos, de 1943 a 1948, e que ficou onze meses numa prisão federal em Ashland, Kentucky, por se recusar a delatar colegas de profissão para a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara de Representantes, a famosa HUAC (House Un-American Activities Committee), criada para averiguar uma “suposta” infiltração “vermelha” na indústria cinematográfica daquele país. Trumbo foi um dos mais íntegros e combativos escritores de Hollywood, autor de clássicos da literatura contemporânea, de livros de história do movimento operário dos Estados Unidos e de roteiros de cinema premiados. Por isso, ganhou algumas estatuetas do Oscar. Um dos grandes artistas de sua época.

Baseado no romance The Brave Cowboy, de Edward Abbey, este épico do cinema teve como ator principal Kirk Douglas, interpretando John W. “Jack” Burns, assim como as participações memoráveis de Gena Rowland (Jerri Bondi) e Walter Matthau (Sheriff Johnson). Um elenco escolhido a dedo pelo próprio “ragman’s son”. Filmado nas montanhas Sandia e Manzano, no cânion Tijeras e na base aérea de Kirtland, em Albuquerque, Novo México, produzido pela Joel Productions e distribuído pela Universal, Lonely are the Brave é o filme favorito de Douglas. E também o de muita gente, desde a época que foi exibido pela primeira vez, em 24 de maio de 1962, em Houston, Texas. 

Esta é a história de Jack Burns, um caubói idealista que sequer carregava documentos no bolso: não precisava de uma carteira de identidade para saber quem era. Detestava as fronteiras, as cercas, as placas de aviso que proibiam tudo. Um tipo romântico, deslocado, que nunca abandonava seu cavalo Whisky.

Jack dá um jeito de ser preso só para poder libertar o amigo Paul Bondi, detido por ajudar imigrantes ilegais mexicanos a entrar nos Estados Unidos. Numa cela da penintenciária local, finalmente encontra o colega, que não aceita a proposta de escape. O protagonista, então, resignado por não conseguir tirá-lo dali, decide fugir. E dá no pé. A partir daquele momento, começará uma perseguição implacável da polícia, que fará de tudo para capturar Burns, que, por sua vez, tenta desesperadamente cruzar a fronteira ao sul do Rio Grande montado em seu fiel equino. Até chegar a um final dramático…

Jack Burns é o herói solitário, o homem comum, sonhador e livre lutando contra todo um sistema podre e opressor. Um diálogo entre Jack e Jerri Bondi (esposa de Paul) resume bem a “filosofia” do protagonista. 

“You say you’re going to hide for a few days—what does that mean? What then? Where will you go?”

Burns ate heartily; a touch of egg adorned his beard. “I can go north, west or south. Winters comin so I guess I’ll go south: Chihuahua or maybe Sonora, dependin on how things look.”

“What will you do down there?”

“I dunno. Just live, I guess.” He swabbed his plate with a piece of bread. “I like Mexico—it’s a good clean honest sorta country. I have friends there.”

“But Jack—“ Jerry hesitated. “You’ll be back, won’t you?”

“Sure. When I’m nothin but a face on the postoffice wall I’ll come a-sneakin back. You’ll see me comin down across the mesa out there some evening when things are peaceful.”

“Don’t talk to me like that. You know you can’t go on like this—you’re in the Twentieth Century now.”

“I don’t tune my life to the numbers on a calendar.”

“That’s ridiculous, Jack. You’re a social animal, whether you like it or not. You’ve got to make some concessions—or they’ll hunt you down like a… like a… What do people hunt down nowadays?”

“Coyotes,” Burns said. “With cyanide guns.” He finished his coffee and wiped his mouth. “I better get a move on.” 

Temos de resistir. Mesmo que sejamos poucos e estejamos sozinhos. Lonely are the brave. Depois de se lembrar do filme, de Trumbo e de Douglas, o anfíbio esverdeado esboçou um leve sorriso. O camundongo acadêmico agora era apenas passado. Gonzalo, então, com a mão trêmula, acendeu um popular amassado que tirou do bolso. E continuou caminhando noite adentro… 

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o lançamento ficcional Cansaço, a longa estação. Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

2 comentários em O sapo Gonzalo em: Lonely are the brave

  1. Maria Adélia de Souza // 26/06/2012 às 11:33 am // Responder

    Meu caro Prefeito,
    Não pude deixar de pensar nas suas circunstancias, como me ensinou Simone de Beauvoir em suas aulas há décadas atrás. Se puder leia este belo texto, raridades desta contemporaneidade.
    Abraço forte,
    Maria Adélia

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  2. Maria Adélia de Souza // 26/06/2012 às 11:37 am // Responder

    Markun,
    Em em meio ao sufoco em que estamos, vale a pena ler um belo texto em todos os sentidos. Lonely is the word.
    Abração,
    Maria Adélia
    PS. atrevidamente enviei ao Prefeito.

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