Crônicas de Berlim (14): Galícia, o poder brando e a diplomacia cultural

Por Flávio Aguiar.

Duas semanas atrás ( 7/8 de junho) fui à Galícia, para participar de um seminário sobre “Poder brando e deplomacia cultural”.

O seminário foi organizado pelo Conselho da Cultura Galega e o IGADI – Instituto Galego de Análise e Documentação Internacional. O presidente do primeiro é o sr. Ramón Villares e o diretor do segundo é o sr. Xulio Ríos. O programa do encontro está em anexo.

Ambos os conceitos do tema são conceitos complexos que se inserem na discussão sobre poder, hegemonia, contra-hegemonia e diplomacia atuais. Embora já presente em  práticas antigas, são conceitos introduzidos formalmente no estado da arte em épocas relativamente recentes.

Para ilustrar a sua natureza, e a dos problemas e temas conexos, cito alguns trechos de minha palestra, que abriu o encontro.

“Uma das perguntas inevitáveis ao se considerar o conceito de “poder blando”, ou “brando”, ou no original norte-americano “Soft Power”, conforme o termo cunhado/consagrado pelo prof. Joseph Nye, é se ele é uma alternativa, ou um complemento ao conceito de “Hard Power”, ou ambos.

O ex-secretário de Defesa dos Estados Unidos, Robert Gates, também ex-diretor da CIA, defendeu não faz muito que os Estados Unidos deveriam incrementar o uso do seu “Soft Power”. Gates, embora indicado pelo ex-presidente George Bush Filho, teve apoio supra-partidário. Tanto foi assim que o presidente Barack Obama o manteve inicialmente no cargo, e ele só o deixou por uma disposição de se aposentar. Com sua proposta, Gates queria dizer que os Estados Unidos deveriam buscar o uso mais intenso de seus “recursos civis” na política de segurança nacional: diplomacia, comunicações estratégica, ajuda ao estrangeiro, ação civil, reconstrução econômica e ajuda ao desenvolvimento”.

Essa posição não impediu, antes, ainda no tempo da administração de Ronald Reagan, que ele advogasse o uso até de bombardeios para depor o regime sandinista na Nicarágua, quando do caso “Irã-Contras”, em 1985/1986, mostrando o convívio entre esses dois lados da mesma moeda da busca de uma dominação hegemônica”.

(…)

“O exemplo mais dramático, nos últimos tempos, dos poderes “Hard” do “Soft Power”, talvez esteja na desorganização dos regimes comunistas no antigo LesteEuropeu, com a queda do Muro de Berlim e de todos os governos da região geopolítica, com a dissolução da União Soviética. Hoje podemos ver com clareza que essa desagregação dos regimes comunistas se deu, em grande e para mim na maior parte, devido às suas contradições internas, constando entre elas uma evidente falta de democracia, pois muitas dessas Repúblicas Socialistas, de República só tinham o nome.

Porém houve uma intensificação das  campanhas de propaganda, por rádio e outros meios, nesses países antes das quedas dos regimes. Nas discussões a respeito da eficácia do “Soft Power” se cita com constância o papel exercido pelo Papa João Paulo II em consonância com a política do presidente Ronald Reagan,  e não somente em relação à sua terra natal, a Polônia. Fizeram parte dessa atuação do Papa também a progressiva desautorização da Teologia da Libertação na América Latina e atitudes como a recusa em receber as Mães da Plaza de Mayo, na Argentina, ou os opositores ao regime do General Augusto Pinochet, no Chile. Ao contrário do atual Papa, Bento XVI, o Papa João Paulo II podia ser descrito como – sem me permitem o paradoxo – um “self made midia man”. Como nenhum outro papa na Igreja Católica ele soube se transformar num “midia globe trotter”, e exerceu sua extraordinária capacidade de comunicação no sentido de propagar sua ideologia conservadora, sua visão centralizadora da Igreja, sua convicção de que o fundamental na Igreja é a manutenção de sua unidade doutrinária  centralizada, e seu intenso proselitismo anti-comunista, aliando toda essa gama de atuação a atitudes políticas de grande impacto, como o pedido de desculpas ao povo judaico pelas perseguições cristãs, além de se apresentar também como um papa ecumênico no diálogo com outras instituições religiosas.

Por outro lado, a União Soviética, antes de desaparecer, tentou de fato exercer algum tipo de “Soft Power” para se contrapor aos Estados Unidos. Fez parte desse esforço o confronto em Berlim, onde ambas as potências e ambos os regimes estavam face a face, como vitrinas de propaganda. É conhecida a frase de Nikita Khruschev, prevendo que a Guerra Fria seria decidida na então ex-capital alemã dividida. De certo modo, ele tinha razão, embora outros fatores tenham talvez pesado mais intensamente na derrota soviética, como o fracasso da intervenção no Afeganistão, que desmoralizou o Exército Vermelho e o colocou em crise. Não poucos analistas afirmam que o verdadeiro sustentáculo do regime comunista na União Soviética era o Exército Vermelho e não o Partido Comunista. Os fatos subseqüentes parecem confirmar essa visão, pois uma vez rarefeito o peso político da corporação militar o Partido, o Governo e o Regime se desagregaram rapida e dramaticamente. Em lugar do prometido novo homo sovieticus emergiram oligarcas e plutocratas ferozes, além de máfias por todos os lados nos antigos regimes comunistas, só “contidas”, digamos assim, se isso é possível, pelo estilo neoczarista de um egresso da antiga KGB, o atual presidente e homem forte do novo regime, Vladimir Putin.

Porém simbolicamente a derrota soviética e dos regimes comunistas foi desenhada de fato em Berlim, que vivia uma situação extremamente paradoxal. O escritor brasileiro Ignacio de Loyola Brandão, que morou na cidade ao tempo do Muro, disse num de seus textos sobre ela que a então ex-capital alemã era a única cidade ainda medieval do mundo, pois  tinha um muro que de fato funcionava.

Estranho muro. Vamos nos deter um pouco mais sobre ele, porque nessa imagem podemos ver melhor a atuação conjunta do “Soft” e do “Hard Power”.  Com tantos soldados de um lado e do outro, tantos blindados e controles, além de arames farpados, o Muro de Berlim era, em princípio, uma manifestação do “Hard Power”, do soviético e do oriental, que o construíram. Mas também tornou-se uma manifestação do “Hard Power” ocidental, como atesta o episódio de outubro de 1961, quando quase começou a Terceira Guerra Mundial. Refiro-me ao confronto armado entre blindados de ambos os lados depois que um diplomata norte-americano se recusou a ter seu carro revistado no posto de controle e passagem conhecido como Checkpoint Charlie. O comandante das forças norte-americanas era o que então se chamava um “falcão”, e pensou ver ali a oportunidade para começar a derrotar o inimigo em face, a União Soviética, ao invés da já derrotada Alemanha nazista. Como atesta o filme “O julgamento de Nuremberg”, na versão de 1961, dirigida por Stanley Kramer, e que valeu o Oscar de Melhor ator coadjuvante para  Maximilian Schell, além de receber o prêmio de melhor roteiro adaptado para o cinema.

Enviando tanques para o local, o assessor especial norte-americano para acompanhar a crise em Berlim, General Lucius D. Clay,  deu início a uma escalada cujos contornos eram imprevisíveis, pois os soviéticos também começaram a concentrar blindados do seu lado. Num certo momento 50 blindados estavam frente a frente de cada lado, vinte deles no Checkpoint Charlie, e o confronto só foi desarmado graças a contatos diretos diretos entre o premiê Nikita Khruschev e o presidente John Kennedy, inclusive por telefone.

Ainda que espetacular e revelador desse confronto “Hard Power”, outros aspectos parecem ser mais relevantes quando se examina o papel do Muro.  Seu desenho, na verdade uma larga forma mais ou menos elipsoidal, cercava Berlim Ocidental: essa era a “cidade medieval”, conforme Ignacio Loyola Brandão, encravada no meio da Alemanha Oriental. Quando o Muro caiu, pode-se dizer que Berlim Ocidental teria sido “libertada”. Mas não era essa a sensação generalizada, de um lado ou de outro do Muro: eram os berlinenses orientais os “detidos pelo Muro, impedidos de passar para o outro lado. Talvez nunca um instrumento de “Hard Power” tenha se revelado um  lado “Soft Power” tão adverso para quem o pôs de pé”.

(…)

“O senso comum associa o conceito de “diplomacia cultural” às práticas mais “soft” do “Soft Power”: intercâmbios de estudantes, cooperação cultural, viagens de orquestras, a diplomacia do Ping Pong nos anos 70 entre a China e os Estados Unidos, iniciativas como a de Edward Said e Daniel Barenboim fundando um coral/orquestra de palestinos e israelenses, a ação de institutos como o Goethe, o Cervantes ou o Camões, e o agora recém criado Machado de Assis, no Brasil, e outras coisas dessa ordem. Tudo em nome de promover a concórdia e a aproximação entre os povos. Entretanto um olhar mais acurado pode nos revelar outros lados, igualmente pertinentes e interessantes para análise desse conceito e das práticas que são desenvolvidas em seu nome. Emtermos macro-políticos, pode-se classificar como “diplomacia cultural” a ação desenvolvida pelos Estados Unidos na América Latina durante a Segunda Guerra Mundial, envolvendo até cineastas como Walt Disney.

Para efeitos práticos, por razões de conhecimento, examinarei mais de perto casos que dizem respeito ao Brasil, sua história, formação e desempenho atual.

Começo com algumas perguntas provocativas, referentes tanto ao Brasil quanto à todas as Américas. Os conquistadores submeteram ou destruíram manu militari inúmeros povos e culturas nesse continente, em nome de suas convicções. Como veríamos nesse contexto o trabalho de catequese dos jesuítas e outras ordens religiosas, que, sem dúvida, eram muitas vezes o braço intetectual da Conquista, e o melhor equipado antropologicamente, para usar um termo moderno? Seria um caso de “diplomacia cultural”? De “Soft Power”?”.

Acho que isso basta para ilustrar a complexidade do tema.

Vamos agora à Galícia.

Foi minha primeira visita. Cheguei a Santiago de Compostela  num fim de tarde. Saí a passear pelo Centro Histórico, para depois visitar a Catedral. Lugar de peregrinação, Santiago tem em suas ruas e na sua principal igreja todos os sinais da mistura de religiosidade autêntica e carolice santarrona que caracterizam esses lugares.

Na falta de alguma relíquia exposta do santo – no caso, o apóstolo Tiago, cujo túmulo está na cripta abaixo do altar – os fiéis realizam o “abraço do santo”. Caminham por detrás do altar até a enorme estátua do santo que o encima e ali dão um abraço – pelas costas – nela.

Confesso que me arrepio ao ver estas cenas, em que mesclam a dramaticidade com que as pessoas se jogam nestes gestos e o poder de convencimento – um “soft power” bem “hard”, para falar a verdade – da Igreja Católica, manipulando  esperanças para este e o outro mundo.

Valeu. Um lindo passeio.

No dia seguinte fomos – os participantes – para um par de ilhas onde se daria o encontro, um lugar extraordinariamente belo e acolhedor. As ilhas, a uma hora por estrada de Santiago de Compostela, são as de San Simón (a maior) e San Antonio (a menor). Tiveram vários papéis desde a Idade Média. Foram sede de conventos e igrejas. Mas no século XVIII se transformaram em lazaretos para doenças contagiosas. Em San Simón ficava o “lazareto limpo”. Em San Antonio, o “lazareto sujo”: os casos mais complicados, os sem esperança.

No século XIX os lazaretos transformaram-se em casas de quarentena para quem vinha de países tropicais ou com suspeita de portar alguma doença contagiosa.  Mas foi no século XX que o conjunto das duas ilhas atingiu sua dimensão mais trágica. O regime de Francisco Franco tansformou-as em presídio para os republicanos que, depois de derrotados, passaram a ser vistos como os “revoltosos” contra o governo “legítimo”.

Na ilha de San Simón ficava o quartel principal; na de San Antonio, a prisão. Milhares de prisioneiros ali ficaram durante anos a fio, e muitos pereceram de doenças, porque as masmorras era subterrâneas e durante as cheias da maré a água chegava-lhes à cintura. Na década de 50, outra tragédia, parecendo castigo. As ilhas tinham sido transformadas em sede da guarda especial do regime franquista na região. 41 “guardias civiles”, depois de se embebedarem, arriscaram a travessia até a terra firme. O barco virou, e todos morreram afogados – nas águas e na bebedeira. Como se diz, Deus não joga mas fiscaliza.

Um detalhe curioso: existe um culto nas ilhas ao Capitão Nemo – sim aquele das Vinte mil léguas submarinas, de Júlio Verne, interpretado, na versão cinematográfica produzida por Walt Disney em 1958, pelo ator britânico James Mason, coadjuvado, entre outros, por Kirk Douglas e Peter Lorre. O motivo começa com o afundamento pela armada francesa séculos atrás de alguns galeões espanhóis na baía que abriga as ilhas. Segundo a lenda, haveria muito ouro a bordo das naus afundadas. Julio Verne, que andou pela região, faz Nemo, no seu romance, buscar esse ouro para financiar seu submarino e suas aventuras pelos sete mares.

Depois dessa visão do cenário, passemos à cena de fundo. A Galícia, Galizia, Galiza, ou outras variantes, é um enclave da lusofonia ilhada entre um oceano castelhano a leste e o rochedo português a oeste. Ali vivem cerca de 2,7 milhões de pessoas que têm como  língua materna o galego, do ramo lusófono mas sem se confundir com o português, embora haja quem afirme que sim. Talvez o melhor seja considerá-los, o português e o galego, como duas variantes de uma ur-língua comum, o galaico-português, nascido ao tempo da dominação árabe na península Ibérica. Pelo mundo, há mais outro tanto de emigrantes de origem galega, dispersos, entre outros lugares, pela Argentina, Uruguai, Brasil, Venezuela e outros países de outros continentes.

No encontro, que contou com cerc de 30 participantes ao todo, havia gente de instituições públicas (como as já citadas) e privadas (como da excelente editora Kalandraka, especializada em livros infantis e de alcance internacional, em várias línguas. Havia também participantes da Catalunha e membros da Unesco. Predominava uma sensação geral de que, em tempos de crise como a européia e a espanhola em particular, culturas  e línguas como as da Galícia estão a perigo. Uma das dimensões do encontro foi conceitual, discutindo a pertinência do “soft power” e da diplomacia cultural; outra foi mais prática, abordando o temas em torno de “como promover a cultura e a língua galegas” no mundo virtualizado e recoberto por “marcas” e “rótulos” culturais, como o nosso.  Havia uma preocupação acentuada sobre como definir, por exemplo, ou melhor, reconhecer uma “marca Galícia” no cenário internacional. Seria algo próximo da editora Kalandraka? Ou da loja de moda Zara, com sede em Arteixo, A Coruña, Galícia, mas que no entanto não se identifica nem é iodentificada internacionalmente como galega, isto é, uma “marca invisível”.

Duas sugestões originais ficaram lá depositadas. Partindo da idéia de que, assim como é necessário levar a Galícia ao mundo, é preciso também levar o mundo à Galícia, sugeriu-se a criação de um Fórum Mundial específico que fosse reconhecido como galego. Algo como o “Fórum Social Mundial”, que é conhecido também como o “Fórum de Porto Alegre”, cidade que foi seu berço. Mesmo quando realizado em outro lugar, muita gente o chama de “o Forum de Porto Alegre” nesse lugar, em Mumbai, em Caracas, em Nairobi, etc.

Dois temas concretos foram sugeridos: um Forum Mundial sobre “Diplomacia Cultural”, tema sobre o qual já há um acúmulo na Galícia; e outro sobre “Espiritualidade(s)”, já que a região comporta historicamente o Caminho de Santiago, aquele da peregrinação cristã. Mas é claro que um Forum dessa natureza deveria comportar e contemplar todas as espiritualidades. O tema decididamente nada tem de esotérico ou exótico. Pelo contrário, é algo que esta Europa avassalada pelos movimentos xenófobos da extrema direita precisa desesperamente debater e aprofundar.

Esperemos que dêem  certo.

De resto, a acolhida foi extremamente gentil e proveitosa, também do ponto de vista gastronômico. Trago boas lembranças de lulas e carnes de panela, queijos e vinhos saborosos.

Saúde, longa vida à Galícia!

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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés (finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012). Ambos estão à venda na Livraria da Travessa e na Gato Sabido pela metade do preço dos livros impressos.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o  Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em Crônicas de Berlim (14): Galícia, o poder brando e a diplomacia cultural

  1. airas nunes // 19/07/2012 às 7:48 pm // Responder

    com efeito, a atual Galiza (antiga Gallaecia) é o berço da língua portuguesa. O português atual poderia chamar-se galego tanto como o galego poderia denominar-se português. São as questões sempre conflitivas das identidades, e os orgulhos, as que dificultam politicamente o fato que a Linguística constata. Deliciosa a crônica.

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