Um stand-up materialista histórico

Por João Alexandre Peschanski.

O materialismo histórico aspira, ambiciosamente, a explicar toda a trajetória da história humana, de suas formas de organização primitivas ao presente e futuro. A ambição é talvez apenas comparável à teoria da evolução, de Charles Darwin, que apresentou um mecanismo, o teorema da seleção natural, que fundamenta uma direção universal na evolução dos organismos vivos. Especialmente no “Prefácio” de Para a crítica da economia política, de 1859, Marx defendeu que a história não é meramente o resultado de eventos específicos e relativamente independentes, o que a historiografia dominante então e hoje afirma, mas estruturalmente dependente de processos sistêmicos, que determinam o desenvolvimento histórico. A historiografia dominante e, também, algumas correntes dentro do marxismo – vide, a boa, mesmo que parcial, revisão de literatura de Ellen Meiksins Wood, em As origens do capitalismo (Zahar, 2001)   – sugerem que a história como um todo não é um objeto teórico válido e legítimo: a evolução histórica das sociedades é dominada por acasos, contingências, acidentes etc. e, no máximo, se pode ter teorias de eventos na história, de mudanças específicas ou de contextos históricos concretos.

Há vários autores atuais na tradição marxista que contribuíram ou contribuem ao debate sobre a teoria da história, como Richard Miller (Analyzing Marx, 1984), Alex Callinicos (Making History, 1988) e o vencedor do importante Prêmio Isaac Deutscher em 2011 Jairus Banaji (Theory as History, 2010). No Brasil, um importante aporte a esse debate foi de Jacob Gorender, em vários artigos. O filósofo analítico canadense G. A. Cohen — falecido em 2009 –, cuja principal obra, Karl Marx’s Theory of History: A Defence, de 1978 (novamente editada em 2000), sem tradução para o português, apresenta uma das melhores exposições da teoria da história marxista, que se pode dividir em seis teses: (1) a tendência das forças produtivas de desenvolverem-se positivamente; (2) um nível de desenvolvimento das forças produtivas só é compatível com alguns tipos de estrutura econômica; (3) no geral, as forças produtivas vão desenvolver-se até o ponto em que entram em contradição com as relações de produção; (4) quando há um interesse objetivo para transformar as relações de produção para permitir ou acelerar o desenvolvimento das forças produtivas, surge a capacidade política para transformá-las; (5) a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção se resolve com a transformação das relações de produção; e (6) após o processo de transformação (transição), as relações de produção que emergem são as melhores para garantir o desenvolvimento das forças produtivas. Na edição 31 da revista Crítica Marxista, de 2010, há um dossiê especial sobre Cohen, coordenado por Angela Lazagna, que assina a apresentação, com textos do próprio Cohen, de Miller e de Grahame Lock (uma interessante comparação entre Cohen e Louis Althusser), que expõe de maneira consistente e mais detalhada do que este texto curto sua contribuição ao materialismo histórico.

A defesa do materialismo histórico de Cohen foi submetida a duras críticas, em especial por adeptos do que veio a ser chamado de marxismo da escolha racional e do pensamento habermasiano. Os marxistas da escolha racional, como Jon Elster (Making Sense of Marx, 1985 – cujo argumento de que marxismo e individualismo metodológico são compatíveis foi criticada por ninguém menos do que Ernest Mandel, em “How To Make No Sense of Marx”, em 1989) e John Roemer (A General Theory of Exploitation and Class, 1982), criticaram aspectos funcionalistas e teleológicos do pensamento de Cohen. O habermasiano Tony Smith (The Role of Ethics in Social Theory, 1991) sugeriu que Habermas e Cohen estavam em lados antagônicos dentro da tradição marxista: o primeiro, diz, pôs na estrutura da consciência moral-prática o centro do desenvolvimento histórico enquanto o segundo se fundamentou no determinismo tecnológico e numa visão restrita de racionalidade.

Cohen ofereceu repostas elaboradas e sofisticadas a seus críticos, mas também uma resposta especial, menos conhecida: um stand-up em que opôs, numa luta de boxe, Habermas e Roemer. O stand-up foi filmado pelo sociólogo Erik Olin Wright, em Chicago, em outubro de 1991, durante o encontro do grupo do marxismo analítico; a transcrição traduzida e o vídeo vão abaixo (em breve, espero, conseguir colocar a legenda no vídeo; há alguns termos e nomes sobre os quais não tenho certeza, vão entre colchetes). Na luta descrita por Cohen, Habermas defende o cinturão contra o aspirante Roemer. Esse stand-up faz parte de uma série de vídeos cômicos — há quatro horas de gravação, no total — sobre filosofia, marxismo, política soviética, teologia, grandes personalidades históricas. Cohen se apresentava, na faceta comediante, regularmente a amigos; planejava e escrevia em detalhe suas apresentações. Perguntei a Wright o que achava do humor de Cohen: “Muito britânico, na tradição do Monty Python, mas com pitadas de tradição judaica e um conhecimento profundo dos aspectos irônicos da filosofia séria”. Em especial, há uma óbvia comparação entre o stand-up de Cohen e o clássico jogo de futebol entre filósofos gregos e alemães, filmado pelo Monty Python, em 1972. Cohen também usava a comédia para pensar e formular o debate em torno de seu trabalho, sublimando de certo modo suas inquietações e tensões intelectuais. Deixo-os então com G. A. Cohen, o gênio da piada. Toca o gongo!

Transcrição:

[Will Allen] (apresentador): Boa noite, senhoras e senhores. Aqui é [Will Allen] de dentro do Madison Square Garden, onde teremos o campeonato mundial de marxismo, onde o aspirante John “The Kid” Roemer, de Davis, na Califórnia, enfrentará o campeão Jürgen “Burgy” Habermas. O grande Jurgy-Burgy está lá, no ringue, falando com seu treinador Walt Benjamin. Também trocou umas palavras com seu empresário Ted Adorno sobre como enfrentar The Kid da economia de Davis. Aí está ele, no seu canto do ringue, com Paul Sweezy dando-lhe algumas última sugestões de como se manter na briga. E lá vamos para o ringue, onde [Johnny Addie] vai apresentar os lutadores.

[Johnny Addie] (locutor): Senhoras e senhores, antes de começarmos o principal evento da noite no Madison Square Garden, onde temos a honra de ter na audiência para a luta de hoje à noite alguns dos principais campeões e aspirantes do passado. Senhoras e senhores, por favor dêem uma rodada de aplausos para Karl “O Matador” Liebknecht. Liebknecht! Também, senhoras e senhores, está conosco na audiência hoje à noite a vencedora de luta-livre feminina de 1923, a senhora [???] Kollontai. A senhora Kollontai! Senhoras e senhores, este é o evento principal. São 15 rounds, na situação a seguir, para o campeonato mundial de marxismo. Neste canto, vestindo uma[Lederkombi] e uma camisa que não lhe cai muito bem, com um sorriso no rosto, com 400 livros e 718 artigos, em 46 idiomas reconhecidos pela ONU, está Jürgen “A brisa” Habermas. Habermas! Seu oponente, de Davis, Califórnia, vestindo uma paletó da Brooks Brothers, com o cabelo perfeitamente aparado e sapatos caros de [???], e uma sunga de natação em sua mochila para depois da luta, caso haja um jacuzzi na região do Madison Square Garden, John “The Kid” Roemer. São então 15 rounds, na situação a seguir. O árbitro é Leo Trotski. Acompanhando o tempo e o gongo, Tony Gramsci. Os juízes, “Big” Rosa Luxemburgo e Georgy “Porgie” Plekhanov.

[Will Allen] (apresentador): [Johnny Addie] apresentou os lutadores e agora vamos ouvir o que o árbitro Leo Trotski tem a dizer aos lutadores.

Leo Trotski (árbitro): Quero que isso que seja uma luta totalmente justa. Cuidado com o uso de dados burgueses ou formas de inferência características da lógica dialética, pois tudo tem de ser feito de acordo com a própria linha marxista. Se citarem a Gesamtausgabe, tenham o cuidado de usar a última versão de Berlim. E, por favor, nada de referências ao assassinato de David Ryazanov por Stalin, já que isso nos levou a discussão demais. Façam disso uma luta limpa e todo golpe abaixo da cintura tem de ser em nome da causa e comecem a lutar quando tocar o gongo.

[Will Allen] (apresentador): Os lutadores foram apresentados. Aqui toca a campainha, o gongo.

[Don Dodgeville] (locutor): Obrigado [Will Allen] e boa a noite a todos. Há uma sequência de fintas da parte de Habermas, que pergunta a Roemer se leu o último livro de Adorno. Roemer diz que obviamente não leu nenhum Adorno. Os árbitros anotam, anotam: “Ele não leu nenhum Adorno”. Roemer pergunta a Habermas se este pode recitar sem vacilos o argumento da tendência de queda da taxa de lucro e Habermas começa com a teoria do valor-trabalho. Mas ele confunde, ele confunde trabalho materializado (tempo de trabalho gasto na produção de uma mercadoria) e trabalho contrafactual (tempo de trabalho necessário para produzir uma mercadoria). E aqui chegamos ao fim do round. E isso foi um belo round

[Will Allen] (apresentador): É, Don, isso foi um belo round. Foi incrível como Habermas chegou lá e procurou o ponto-fraco. Ele sabia que Roemer não tinha como ter lido nada escrito por Adorno. Roemer não lê nada que não esteja em inglês, então óbvio que não leu o Adorno em alemão e também não lê nada que tenha sido traduzido do alemão para o inglês. Mas foi maravilhoso como Roemer respondeu exigindo uma prova da tendência de queda da taxa de lucro. Achávamos que o Habermas poderia, de certo modo, encontrar uma solução, mas ele falhou logo no início, confundindo-se com trabalho materializado e contrafactual. Ele não conseguiu nem expor os fundamentos da teoria do valor-trabalho. Aqui vai a campainha, e vamos para o próximo round.

[Don Dodgeville] (locutor): Round 2. Habermas está fazendo uma reviravolta dialética. Está começando o round de modo dramático, com uma reviravolta dialética. Ele está argumentando que quanto mais a classe trabalhadora se enriquece, mais ela é atraída pelo sistema e, por conta disso, quanto pior o sistema, maior a possibilidade de se revoltarem contra ele. Ele diz que, com base na dialética, quanto menos miserável é a classe trabalhadora, maior é a probabilidade de ela derrubar o sistema. E isso sem falar do poder que conseguem… E ele está até argumentando que ele está tão dialético hoje que ela vai se unir com a burguesia para derrubar o sistema. Roemer pega o seu apito marxista analítico e o uso pela primeira vez na luta. E ele apita, apita! Ele apita contra a dialética. Ele diz que a dialética está acabada, apagada, é passado, um [resíduo], [???]. Habermas chora, chora, e Trotski lhe oferece um lenço. Roemer não para. Ele diz que não só a dialética acabou, mas também acabou a teoria do valor-trabalho. Até a classe trabalhadora acabou! Habermas não consegue acreditar. Ele está rasgando seu [chapéu]. Toca a gongo.

[Will Allen] (apresentador): Isso foi realmente impressionante. Habermas começou com uma reviravolta dialética, conseguindo uma formulação racional tão coesa, contorcendo-a, fazendo uma maravilhosa espiral no estilo de Foucault e Derrida. Foi criativo, pós-moderno, combinou todos os nossos conhecimentos, contatos, emoções. Mas Roemer…

[Don Dodgeville] (locutor): É Roemer foi ótimo ao puxar seu apito nessa questão. Ele só tem direito a três apitos marxistas analíticos nessa luta, mas decidiu usar aí e foi um ótimo momento.

[Will Allen] (apresentador): É. Foi maravilhoso. Aqui vai a campainha. Gongo!

[Don Dodgeville] (locutor): E lá vem Roemer para o ataque. Ele desafia Habermas a explicar com precisão o que há de errado com a teoria do equilíbrio geral de Kenneth Arrow e Gérard Debreu, o que a teoria do valor-trabalho faz que não faz a teoria do equilíbrio geral de Arrow e Debreu não faz. Habermas diz que ele já ouviu falar de Arrow, mas nunca ouviu falar de Debreu. Ele já ouviu falar de Arrow, mas não de Debreu. Ele contesta se Debreu tem uma contribuição de fato, já que ele não é tão conhecido quanto Arrow, então como é possível que Roemer cite os dois juntos. O assunto vai para Trotski. E Trotski decide a favor da contestação. Trotski está a favor da contestação! Habermas diz que está cada vez mais alienado em relação às perguntas de Roemer. Ele diz que está alienado demais e não pode continuar. Sim! Ele está assumindo alienação total! Alienação total! Trotski decide a favor de Habermas. É um nocaute técnico no terceiro round! Alienação total e vitória do campeão. Roemer vai nadar, derrotado. 

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João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

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