O enigma da “nova classe média”
Na semana passada, a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE) aprovou a nova definição de “classe média” que orientará a criação das políticas públicas do governo federal para os próximos anos. Em suma, trata-se da simples determinação de algumas faixas de renda que localizam os novos grupos recém saídos do pauperismo em relação àqueles indivíduos extremamente pobres e em relação à chamada “classe alta”. Ao fim e ao cabo, para o governo federal, fariam parte da classe média brasileira todos aqueles que recebem uma renda mensal per capita entre R$ 291 e R$ 1.019,00, ou seja, aproximadamente, 54% da População Economicamente Ativa (PEA) do país. (Não deixa de ser curioso que um governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores tenha apagado conceitualmente a classe “trabalhadora” de seus assuntos estratégicos. Mas este não é o problema aqui…)
Sobre a teoria das classes, diria que, se nada mais soubessem, ainda assim os sociólogos saberiam que um debate minimamente sério a este respeito não pode se limitar a uma única variável, ainda que seja a “renda”. Exatamente porque as classes sociais são relações sociais multidimensionais e construídas historicamente, qualquer determinação unilateral deste fenômeno fatalmente criará mais desentendimentos do que esclarecimentos. Neste caso específico, argumentarão os mais crentes, o interesse do governo não é investigar cientificamente a realidade brasileira, mas apenas racionalizar suas políticas públicas. Trata-se de qualificar e atender carências específicas daquela faixa da população em termos de qualificação e educação financeira. Ok. Neste caso, vejamos então a relação entre as classes pobre, média e alta.
O Dieese calcula que o salário mínimo necessário para o trabalhador suprir despesas elementares de uma família de 4 pessoas deveria ser de R$ 2.349,26. Agora, imaginemos que um hipotético casal auferindo renda mensal per capita de R$ 642,00 (ou seja, o limite inferior da classe média “alta”, conforme a definição da SAE) resolva ter um filho. O governo entende que este casal, ao sair da maternidade, simplesmente passou para a classe média “baixa”. Para o Dieese, no entanto, eles acabaram de decair para o pauperismo. O curioso é que um fenômeno semelhante acontece com a tal “classe alta” – segundo a definição do governo. Se um casal da classe alta resolve ter um filho, bem, digamos que ele estará a uma distância de apenas 1 sandwiche de mortadela e dois refrigerantes a mais por dia da linha da pobreza… Bem, digamos que, atualmente, isto é o mais perto que o petismo consegue chegar da expropriação da burguesia. Ou seja, desconfio que, em breve, a “classe alta” também vai precisar dos programas de educação financeira que o governo anda planejando para a nova classe média…
Ironias à parte, a verdade é que o processo de desconcentração de renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho experimentado nos últimos nove anos preparou em certa medida o terreno para que noções ideologizadas sobre as classes sociais prosperassem no país. Ou seja, a despeito de seu raquitismo teórico, a definição de “nova classe média” da SAE encaixa-se perfeitamente bem em um debate cujo eixo gravita em torno do aprofundamento da financeirização do consumo popular. Ou seja, o que a secretaria realmente pretende é ensinar à população como poupar dinheiro para aproveitar as novas oportunidades criadas pelo recente barateamento do crédito. Para tanto, é importante reforçar a ideologia de que o Brasil transformou-se em um “país de classe média”.
Nadando contra a corrente deste debate, o novo livro do economista e presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Marcio Pochmann [Nova classe média? – leia o texto de orelha do livro, escrito pelo economista José Dari Krein, aqui no Blog da Boitempo], trouxe à luz um notável conjunto de dados e argumentos para desmistificar em definitivo esta noção. Recuando quarenta anos na história do Brasil a fim de identificar década após década o eixo da dinâmica econômica nacional em termos de repartição e composição da renda, o autor investigou o processo de mobilidade social existente na base da pirâmide social brasileira nos anos 2000. Assim, Pochmann demonstrou que o atual ciclo de crescimento econômico foi marcado por três fatores principais: 1) avanços efetivos na formalização do trabalho assalariado; 2) concentração do emprego em ocupações que pagam até 1,5 salário minimo; e 3) deslocamento da dinâmica da geração de postos de trabalho da indústria (décadas de 1970 e 1980) para a setor de serviços (anos 1990 e 2000).
Tendo em vista a combinação destes movimentos, percebemos que o modelo de desenvolvimento brasileiro neste século absorveu o excedente populacional produzido na década anterior, mas às custas de baixa remuneração (94% das vagas abertas em 2000 tinham remuneração de até 1,5 salário mínimo) e do aumento da taxa global de rotatividade do trabalho (36,9%). Ou seja, às custas da reprodução de um regime de acumulação que insiste em precarizar o trabalho subalterno. Além disso, este modelo foi capaz de integrar grandes contingentes de mulheres e de não brancos, mas quase sempre em ocupações alienadas que não requerem qualificações especiais. Sinteticamente, acompanhando a dinâmica das ocupações na base da pirâmide social do país somos obrigados a refletir sobre os alcances e os limites do atual modelo de desenvolvimento pós-fordista.
Uma reflexão que nos obriga a encarar o atual ciclo de crescimento econômico do ponto de vista do alargamento da superpopulação relativa (precariado brasileiro, proletariado precarizado…). Por um lado, é possível perceber claramente os avanços em relação à decada anterior: a política de valorização do salário mínimo permitiu que um enorme contingente de trabalhadores, especialmente concentrado nas regiões mais carentes, conquistassem um padrão de consumo relativamente inédito na história nacional. Com a formalização do emprego, estes trabalhadores ascenderam a um patamar menos inseguro socialmente, o que tende a elevar a satisfação individual. E a percepção destes em relação ao futuro tornou-se mais positiva.
Por outro lado, a promessa da superação da pobreza e do subdesenvolvimento esbarra na incapacidade do modelo em gerar postos de trabalho mais qualificados, superar a barreira do salário mínimo e bloquear a rotatividade do trabalho. Afinal, como poderia ser diferente se o atual regime de acumulação concentrou-se entorno das atividades de mineração, de petróleo, dos agronegócios e da indústria da construção civil? Precisamos lembrar que o atual modelo reproduz a trilha aberta pela hegemonia tucana de trocar a indústria de transformação por setores que utilizam largamente trabalho não qualificado? Ou seja, trata-se de um movimento que tende a reforçar a insatisfação coletiva.
Estudando a atual dinâmica do trabalho doméstico para famílias, do trabalho nas atividades autônomas e primárias, além do trabalho terceirizado, Pochmann esmiuçou o avesso do atual regime de acumulação. Ao fazê-lo, ele demonstrou que a hegemonia lulista apoia-se em um consistente alargamento da base salarial da pirâmide ocupacional brasileira. Ao mesmo tempo, Pochmann adverte-nos a respeito dos riscos inerentes a um modelo de desenvolvimento que apresenta sérias dificuldades em promover um ciclo de ascensão social consistente com mais e melhores salários. Do choque entre a satisfação individual e os germes da insatisfação coletiva avolumam-se tensões no atual regime hegemônico.
Sem mencionar outras importantes greves nacionais ocorridas em 2011, como a dos bancários e a dos trabalhadores dos correios, por exemplo, o impulso grevista de 2011 permanece ativo este ano: em Belo Monte, cerca de 7 mil trabalhadores espalhados por todas as frentes de trabalho da usina hidrelétrica cruzaram os braços por 12 dias; no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), localizado em Itaboraí (RJ), pelo menos 15 mil trabalhadores entraram em greve no dia 9 de abril, permanecendo 31 dias parados; ainda no início do ano, foram registrados 10 dias de greve em Jirau e na plataforma da Petrobras em São Roquedo Paraguaçu (BA); além de novas paralizações em Suape, greves em várias obras dos estádios da Copa do Mundo de futebol etc… Tudo somado, talvez Francisco Weffort tivesse mesmo razão quando, quase cinco décadas atrás, afirmou que, no Brasil, “a vitória individual traz em germe a frustração social”.
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Dois livros organizados por Ruy Braga e publicados pela Boitempo já estão à venda em versão eletrônica (ebook): Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (2009, em coorganização com Ricardo Antunes) e Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira (2010, em coorganização com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek). Ambos podem ser comprados na Livraria Cultura e Gato Sabido, pela metade do preço do livro impresso.
O livro de Marcio Pochmann citado neste artigo, Nova classe média?, também está à venda em ebook, na Gato Sabido e Livraria da Travessa.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu próximo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista, a ser lançado pela editora no segundo semestre de 2012. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
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