O politeísmo de valores, segundo Max Weber

Por Ricardo Musse.

Parte da multifacetada obra de Max Weber debruça-se sobre as especificidades do racionalismo ocidental, sobretudo em sua vertente moderna. Busca delinear o sentido da racionalização, característico do Ocidente, nos âmbitos distintos do desenvolvimento científico, artístico, político e econômico. Acompanharemos aqui um desses âmbitos, a ciência.

Em A Ciência como Vocação, originalmente uma conferência, Max Weber pressupõe, como interlocutores, jovens subjetivamente vocacionados, que pretendem devotar-se à pesquisa por amor à ciência. O diálogo implícito compõe o texto como uma recorrente desmitificação dessa visão idealizada, mas também da presunção juvenil e da pose irracionalista então em voga.

Nesse movimento, mesclado com o pathos nietzscheano e sua plataforma de “combate a todas as ilusões”, é possível identificar o propósito construtivo dos fundadores da sociologia, preocupados em comprovar a eficácia da explicação sociológica nos vários campos da vida social, em especial o que dá conta de fenômenos considerados próprios da subjetividade.

A novidade da compreensão sociológica weberiana assenta-se numa espécie de giro que transplanta a reflexão da mera detecção de objetividades sociais para uma determinação de sua gênese e significado. A vocação para a ciência decorre, assim, de um processo de “desencantamento do mundo”, de uma racionalização própria que opõe – na sociedade moderna, caracterizada pelo politeísmo de valores – religião, ciência, arte, política e ética como potências ou “vocações” antagônicas.

As páginas iniciais de A Ciência como Vocação examinam – de forma convencional, um pouco à maneira como o primeiro Durkheim pensa os fatos sociais, mas nem por isso com menor acuidade – as condições materiais que enquadram a vocação universitária.

Contrapondo as ilusões subjetivas à objetividade da prática social, Weber destaca uma série de dilemas da ocupação científica universitária (que para ele não se restringe ao âmbito das ciências naturais), numa descrição espantosamente atual: a dificuldade de conciliar duas capacidades distintas, a de professor e a de pesquisador; a necessidade de conjugar a inspiração, mais afeita ao diletante, com o rigor disciplinado do especialista; o anseio de criar algo duradouro num terreno sujeito, por definição, às leis do progresso; a distinção pelo mérito numa atividade em que o ingresso e a ascensão profissional encontram-se sujeitos às injustiças do acaso.

Segundo Weber, o futuro da universidade alemã assentava-se em uma lógica burocrática que apontava para a substituição do padrão europeu, aristocratizante (seja pela dificuldade de ingresso na carreira de quem não dispõe de fortuna pessoal, seja pelo prestígio inerente à cátedra), pelo modelo americano de assalariamento, mais adequado à lógica capitalista.

O abandono das origens medievais, do modelo de corporações de ofícios, aproxima os professores da condição proletária, em três de suas acepções mais fortes: como trabalhador destituído dos meios de produção, como funcionários em permanente conflito com os administradores e como categoria socialmente fragilizada. Acrescente-se a isso, o fato de o empreendimento universitário envolver grandes montantes de dinheiro. Com isso, preenchem-se as condições para conceber a universidade como uma empresa capitalista.

O exame das condições materiais da ciência como vocação, ou melhor como profissão no âmbito da vida universitária, [1] destaca, além do espaço onde essa vocação tende a se desenvolver (a empresa capitalista, no caso estatal), sua especificidade na sociedade moderna. No mundo contemporâneo, para Weber, a ciência exige a especialização, o que contribui para afastar o profissional dos modelos anteriores do diletante ou mesmo da figura do artista. Cada vez mais a ciência dispensa o cultivo da personalidade e da experiência pessoal, ressaltado por Simmel, em uma tradição que remonta a Goethe. [2]

O sentido da ciência, portanto, a ser buscado em seu funcionamento como esfera própria e autônoma, remete ao processo de racionalização. Esse processo, do qual o progresso científico constitui, segundo Weber, o fragmento mais importante, não se confunde “a um conhecimento geral crescente acerca das condições em que vivemos”. Antes,

“significam que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando que o quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo. Para nós não mais se trata, como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Tal é o significado essencial da racionalização.” (Max Weber, A Ciência como Vocação, p. 30-31).

Esse processo de desencantamento do mundo, no entanto, não nos fornece uma resposta para nossa indagação acerca de seu significado. Com isso, a questão do sentido e do valor da ciência no contexto da vida humana permanece insolúvel. As respostas historicamente fornecidas a essa questão são, para Weber, insuficientes, seja a teoria platônica de que o objetivo da ciência é conhecer o ser verdadeiro, seja a renascentista, que afirma que a ciência é a chave da compreensão da natureza, seja a protestante/puritana, de que ela é o caminho que conduz a deus, ou mesmo a positivista, que a coloca como o caminho que conduz à felicidade humana.

Qual é, afinal, nesses termos, o sentido da ciência enquanto vocação, se estão destruídas todas as ilusões que nela divisavam o caminho que conduz ao “ser verdadeiro”, à “verdadeira arte”, à “verdadeira natureza”, ao “verdadeiro Deus”, à “verdadeira felicidade”? Tolstói dá a essa pergunta a mais simples das respostas, dizendo: ela não tem sentido, pois que não possibilita responder à indagação que realmente nos importa –“Que devemos fazer? Como devemos viver?” (Max Weber, A Ciência como Vocação, p. 35-36). [3]

Isso não significa, ao contrário, que não possamos aferir a utilidade da ciência para a vida ou mesmo seus pressupostos lógicos e metodológicos. O paradoxo, ressaltado por Weber, consiste no fato de que a ciência, apesar de todas as suas aplicações práticas, mostra-se incapaz de explicar seu sentido e até mesmo de justificar sua existência.

Todas as ciências da natureza nos dão uma resposta à pergunta: que deveremos fazer, se quisermos ser tecnicamente senhores da vida. Quanto a indagações, como “isso tem, no fundo e afinal de contas, algum sentido”, “devemos e queremos ser tecnicamente senhores da vida?”, aquelas ciências nos deixam em suspenso (Max Weber, A Ciência como Vocação, p. 37).

Uma conseqüência dessa linha de raciocínio seria, na perspectiva de Weber, a impossibilidade de validar cientificamente “tomadas de posições”, o que acarreta uma separação radical entre juízos científicos e juízos de valor.

Não se pode demonstrar a ninguém aquilo em que consiste o dever de um professor universitário. Dele nunca se poderá exigir mais que probidade intelectual ou, em outras palavras, a obrigação de reconhecer que constituem dois tipos de problemas heterogêneos, de uma parte, o estabelecimento de fatos, a determinação das realidades matemáticas e lógicas ou a identificação das estruturas intrínsecas dos valores culturais e, de outra parte, a resposta a questões concernentes ao valor da cultura e de seus conteúdos particulares ou a questões relativas à maneira como se deveria agir na cidade e em meio a agrupamentos políticos (Max Weber, A Ciência como Vocação, p. 39).

A distinção entre o estabelecimento de fatos científicos e as questões concernentes ao conteúdo e ao valor da cultura circunscreve, por assim dizer, o território da ciência. Esta consiste, portanto, em uma vocação (ou profissão), “alicerçada na especialização e posta a serviço de uma tomada de consciência de nós mesmos e do conhecimento das relações objetivas” (p. 47).

No que tange à sua contribuição para a vida prática e pessoal, Weber destaca que a ciência coloca “à nossa disposição certo número de conhecimentos que nos permitem dominar tecnicamente a vida por meio da previsão, tanto no que se refere à esfera das coisas exteriores como ao campo da atividade do homem” (p. 45).

Na medida em que a ciência nos fornece, além de conhecimentos que nos permitem “dominar tecnicamente a vida por meio da previsão”, “métodos de pensamento, isto é, os instrumentos e uma disciplina”, ela “contribui para a clareza” (p. 45). O conceito de clareza, tal como definido por Weber, não se refere propriamente a “idéias claras e distintas”, cuja delimitação foi considerada por Descartes decisiva para o bom andamento do método científico, mas antes a um instrumento auxiliar da ação.

Isto significa que a ciência, em termos da ação individual, consiste em uma forma de saber essencial para a superação da conduta tradicional e do comportamento afetivo, ou melhor, de um conhecimento indispensável para que a ação social possa ser determinada, seja de modo racional referente a fins, seja de modo racional referente a valores. [4]

Quando se adota esta ou aquela posição, será preciso, de acordo com o procedimento científico, aplicar tais ou quais meios para conduzir o projeto a bom termo. Poderá ocorrer que, em certo momento, os métodos apresentem um caráter que nos obrigue a recusá-los. Nesse caso, será preciso escolher entre o fim e os meios inevitáveis que esse fim exige. O fim justifica ou não justifica os meios? […] Os cientistas podem –e devem– mostrar que tal ou qual posição deriva, logicamente e com toda certeza, quanto ao sentido, de tal ou qual visão última e básica do mundo. Uma tomada de posição pode derivar de uma visão única do mundo ou de várias, diferentes entre si. Dessa forma, o cientista pode esclarecer que determinada posição deriva de uma e não de outra concepção (Max Weber, A Ciência como Vocação, p. 45).

A ciência, portanto, ao identificar a visão de mundo inscrita em determinada ação, contribui para orientar a escolha. Nos termos de Weber, os juízos científicos tornam-se fontes auxiliares para o estabelecimento de condutas determinadas, em última instância, segundo valores.

Desse modo, Weber, por um lado, nos alerta – retomando o pathos kantiano e girando-o para a ação social – para os limites do saber científico, na medida em que procura determinar claramente o âmbito segundo o qual ainda é possível orientar-se por juízos científicos. Tal delimitação não deixou de contribuir para a crítica – posteriormente desenvolvida pelos sociólogos da Escola de Frankfurt – dos perigos da determinação pela ciência da ação humana, desencadeados pelo predomínio do positivismo iluminista, determinação essa que não exclui sequer a esfera da vida cotidiana.

Por outro lado, a delimitação do território da ciência insere-se no esforço weberiano de caracterizar as ações no mundo moderno como determinadas por um politeísmo de valores:

A ciência mostrará que, adotando tal posição, certa pessoa estará a serviço de tal deus e ofendendo tal outro e que, se se desejar manter fiel a si mesma, chegará, certamente, a determinadas conseqüências íntimas, últimas e significativas. Eis o que a ciência pode proporcionar, ao menos em princípio (Max Weber, A Ciência como Vocação, p. 46).

[1] O termo alemão Beruf contempla as duas acepções.

[2] Cf. SIMMEL, Georg. “A Metrópole e a Vida Mental”.

[3] Note-se que essas questões estão formuladas –para utilizar uma terminologia cristalizada na filosofia– em uma linguagem mais próxima do território da ética do que da metafísica.

[4] A tipologia weberiana das modalidades de ação social encontra-se delineada no segundo item do capítulo inicial de Economia e Sociedade.

Sugestões de leitura

Georg Simmel, “A Metrópole e a Vida Mental”. In: Gilberto Velho (org.), O Fenômeno Urbano, pp. 13-28.,Rio de Janeiro, Zahar, 1963.

Max Weber,  A Ciência como Vocação. In: Max Weber, Ciência e Política – Duas Vocações. São Paulo, Cultrix, 1972.

***

Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas.

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