Do engajamento ao bestialógico, passando pelo “patrulhamento”

Por Emir Sader.

Especialmente desde a ditadura, a direita brasileira foi se sentindo cada vez mais complexada, com sentimento de inferioridade diante da esquerda. Não era apenas porque ela defendia soluções de força, violentas, tinha a figura de seus chefes em obtusos chefes militares, mas também porque artistas, intelectuais, todos os que se identificavam com a cultura e a inteligência, não eram de direita, mas de esquerda.

Bastou terminar a ditadura para que uma espécie de “liberou geral” se abater sobre alguns artistas e intelectuais, como se todos e tudo agora fossem iguais – liberais, democratas, ditadura, democracia. Alívio para alguns, que já não teriam que aparecer denunciando as ações da ditadura e poderiam se dedicar a compor, a escrever, sem nenhum compromisso com a realidade concreta. Como se todo o resto – exploração, dominação, discriminação etc. etc. – tivessem desaparecido da noite pro dia e estivéssemos na maior das democracias.

Já um pouco antes, houve quem começasse a decretar o fim do artista engajado. No Brasil, ganhou forma na expressão da revolta contra o que seria um “patrulhamento” das organizações de esquerda sobre artistas e intelectuais, o que supostamente lhes retiraria a liberdade de criação. Sob a caricatura de um alegado “stalinismo” dos partidos de esquerda, se manifestava uma primeira forma de descompromisso com a realidade concreta e com o povo, mediante expressões do individualismo e do egoísmo. O liberalismo assumia o lugar do socialismo na cabeça e no comportamento de muita gente

O fim da ditadura inaugurou assim a temporada da debandada do campo da esquerda por intelectuais e artistas que, livres de qualquer constrangimento moral, aderiram ao pensamento conservador, com os respectivos espaços com que a direita passou a retribuir-lhes o papel de clowns que passaram a desempenhar.

Escandalizar manifestando explicitamente o racismo, o machismo, o obscurantismo, passou a ser moda entre jornalistas, escritores, artistas, nos espaços da mídia monopolista, que pregou o golpe militar, apoiou a ditadura e se enriqueceu com ela.

Mais recentemente, passou a ser moda escrever livros sobre o politicamente incorreto, contanto que, com ajuda dos colegas da mídia, possa frequentar duas ou três semanas a lista dos mais vendidos – cujas denúncias sobre as fraudes na revista Veja foram objeto de artigos do Luis Nassif. Atacar aos que eles consideram “ícones” da esquerda: Chico Buarque, Antonio Candido, Marilena Chaui.

Um desses clowns, que se jactava de fazer esse papel, escritor fracassado, terminou abandonando tudo e fugindo do país, para nao acabar como o Paulo Francis – boquirroto como ele, que fez denúncia sem fundamento contra a Petrobras, e morreu angustiado porque iria à falência com a multa que teria que pagar.

Periodicamente saem livros que se pretendem engraçadinhos, supostamente para “desmistificar” as interpretações da esquerda sobre o Brasil ou a América Latina. Desparecem em poucas semanas, sem pena nem glória, ninguém nem se lembra do nome dos autores. Em geral, são empregados da velha mídia, que promove seus livros.

São bestialógicos, que revelam a ignorância sobre o Brasil e a América Latina, pessimamente escritos, por editoras desconhecidas, que desaparecem sem pena, nem glória. Não sabem distinguir Valparaiso de Guadalajara, Guayasamin de Botero, cueca de vallenato, montoneros de tupamaros (como confundiu recentemente um global recém ingressado à Academia Brasileira de Letras).

É que a realidade da história do Brasil e da America Latina os incomoda, por isso periodicamente se dedicam a “desmistificar” o Che, os que lutaram contra a ditadura, Cuba, Hugo Chávez, e tudo o que represente os ideais populares e que, para seu desespero, se projetam e se perpetuam no tempo, sem dar bola para os latidos desses cães da guarda dos seus patrões e da direita brasileira.

***

Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quartas.

6 comentários em Do engajamento ao bestialógico, passando pelo “patrulhamento”

  1. Caro Emir,

    infelizmente estes bestialógicos não desaparecem em poucas semanas. Desde que essa merda de coleção do politicamente incorreto apareceu, seus livros não saem das prateleiras e, principalmente, das listas de mais vendidos. Numa época de tamanho desenvolvimento do mercado editorial brasileiro – publicação maciça de inúmeros autores brasileiros ou mesmo as atuais reedições a partir dos originais de Marx – o grosso da população que compra livros (sabemos que não é o grosso da população, infelizmente) fica atrelada a esses autores direitistas. É necessária uma revisão da orientação das editoras progressistas. Porque, ao passo que a política econômica neoliberal já foi pro espaço, o desmonte da formação cultural e ideológica fomentada pelos liberais ainda é bastante sentido, especialmente no que tange à criminalização de movimentos sociais, da organização partidária e entidades de classe. Hoje, da mesma forma que há um amplo entendimento pela população de que todo político é corrupto, também reflete em que sindicalistas, militantes, funcionários públicos e outros sejam vistos como vagabundos, desocupados etal. E aí se galga cada vez mais espaço para essa vanguarda esquizofrênica que se considera acima da moral e da ética para divulgar essa verborragia toda contra os trabalhadores e a maior parte da sociedade e defender uma elite que hoje mal se sustenta e os interesses do capital.

    Curtir

  2. Geraldo Pontes // 01/06/2012 às 2:39 pm // Responder

    Caro Emir, entendo sua crítica à falta de engajamento de artistas. Na condição de professor de literatura me espanto com declarações de autores brasileiros que se dizem completamente descomprometidos com a realidade quando alguns estereotipam a realidade e são traduzidos e procurados lá fora na eterna sede de se querer ler, por lá, um Brasil traduzido por fórmulas (pois nossa realidade é complexíssima para eles), e de quebra exótico. Ainda mais estranho nossos contemporâneos quando, dos anos 30 aos 60, nossos escritores tinham um projeto e muito bem pensavam a nação. Coisa que historiadores do porte de S.Santiago e Walnice N. Galvão mostram, para dar uma referência, como mudou a partir da década de 70, mais ou menos – mesmo que não tomem um partido contra isso, notadamente Santiago. Mas há que se ressaltar igualmente a desconfiança de alguns intelectuais, já na ditadura, com a esquerda brasileira, o histórico de comprometimentos do PCZão com os latifundiários e as oligarquias, contanto que o ataque político se fizesse ao imperialismo, esquecendo-se do povo. Não estou falando isso sem me calçar em Schwarz, por exemplo. De forma que seu histórico pode-se enriquecer com alguma relativização, ainda que concorde com sua ideia quanto ao presente, pelo motivo expresso nas linhas em que iniciei este comentário.

    Curtir

  3. Emir: lavou minha alma!
    Não sabe a raiva que sinto ao ver esses livros, “[…] pessimamente escritos, por editoras desconhecidas, que desaparecem sem pena, nem glória” figurarem nas listas (fraudulentas) que existem por aí.
    Parabéns!
    Abraços!

    Curtir

  4. Geraldo Pontes // 02/06/2012 às 9:44 pm // Responder

    Uma correção em meu comentário: o comprometimento das esquerdas referido por Schwarz, diferentemente do que afirmei, exclui o latifúndio, o lado mais arcaico do Brasil que apoiava as forças imperialistas. Estava sim do lado das forças progressistas, mas que não estavam ligadas à condição social brasileira, de tomada de consciência do povo, visando tão somente opor-se à expansão econômica americana oriunda do plano Marshall, na defesa de interesses próprios, mesmo que pudessem, em outra dimensão, ser importantes para a classe trabalhadora a longo prazo, completemos. Daí, acrescente-se, a importância política que vem tendo o legado de Lula e seus aliados, para o Brasil, entre os quais aliados uma parcela muito crítica da Universidade e da Igreja progressista porque sua liderança sindical abriu esta dimensão entre classes sociais, fazendo o que as alianças da esquerda tradicional não tinham sido capazes de fazer. Voltando a 64, no panorama de Schwarz, as forças do Brasil arcaico, em contrapartida, forjavam inclusive o apoio a algo que se depura em seu texto como uma influência norte-americana não condizente, já que campanha reaça família-tradição-propriedade, que seria de cunho nacionalista – nacionalismo tapado, diga-se de passagem – era contraditória nesse bojo.

    Curtir

  5. Emir,

    Tenho um Sebo junto com minha família e ter que vender esse livro sabendo da seu conteúdo, é triste. E vejo que muitos jovens e adolescentes levam a sério esse monte de conversa… percebo que a cultura da direita vem ficando cada vez mais forte, já que esse monte de politicamente incorreto vende, e principalmente para a massa que não sabe nem a versão da esquerda.

    Curtir

Deixe um comentário