Ivan Ivanovitch em abril de 1964
Para ser exato, Ivan, Ivanovitch Correia da Silva não morreu em 31 de março de 1964. Foi no dia seguinte, foi no 1º de abril de 1964 que ele abandonou o seu espírito. Para ser mais exato, ele não o abandonou. Ele foi abandonado, porque já antes Ivan perdera a vontade, e perder a vontade, parece, é o anúncio primeiro da morte. Digo, corrigindo: já antes de deixar de existir, Ivan já não mais existia.
Quero ser exato, preciso, claro, mas o reino de que me acerco repele tais exatidões. O que vi naquela tarde não se pega como um cão que se agarra e se pega, como uma ave que seguramos entre os dedos, como uma pedra de gelo que sentimos e pegamos. Talvez o melhor seja organizar Ivan à maneira do que organiza a memória, o sentimento, enfim, no que organiza o espírito.
Ivan era grande, largo, testa ampla – estranho, agora eu sei, só agora compreendo, ao escrever estas linhas agora compreendo: Ivan era largo e grande como a minha mãe. Ele foi, ou ele era, o melhor amigo que pode ter um adolescente de 13 anos. Escrevo essa generalização e estaco. Estaco porque essa tentativa de ser objetivo e imparcial só me faz escrever burras generalidades. Quero dizer, portanto, e não serei mais falso: Ivan foi o melhor amigo que tive na altura dos meus 13 anos.
Ivan, que só agora compreendo, não era um daqueles “meu tipo inesquecível” da tóxica revista Seleções. Ele era o amigo mais velho, e isso quer dizer: ele está sobre a cama, no 1º de abril de 1964, agitado, movendo-se de um lado para outro de seu leito de capim seco. E me diz, e geme:
– Tem umas cobrinhas subindo pelas minhas costas. – E bate com as mãos, para retirá-las. E mais se agita: – Eles vêm me pegar. Eles vão me levar.
– Eles quem, Ivan?
– Eles, eles – e eles se confundem às cobrinhas, que lhe sobem pelas costas.
Este Ivan não é Ivanovitch Correia da Silva. O Ivan de antes era um jovem de 19 anos, estudante de Química. Passava o dia todo a estudar, todos os dias. Com um método sui generis, como gostava de dizer. Entre uma fórmula e outra me recebia na única mesa da sua casa. E se punha a contar anedotas, a contar casos de meninos suburbanos, espertos, anárquicos, galhofeiros. E sorria, e ria, e gargalhava, porque ao contar ele era público e personagem, e de tanto narrar histórias de meninos moleques deixava na gente a impressão de ser um deles. Como um Chaplin que fosse Carlito. Se na vida da gente houver algo que nos perca, que mergulhe no abismo a natureza que já se acha perdida, ele contava, e contava a rir, a soltar altíssimas gargalhadas o caso que foi a sua perdição:
– Na greve dos estudantes de Direito, eu fui lá para prestar solidariedade aos colegas. Eu estava só no meio da massa, assistindo à manifestação. Aí chegou o fotógrafo da revista O Cruzeiro. Quando ele apontou o flash, eu me joguei na frente dos estudantes. Olha aqui a foto.
E mostrava uma página em que ele aparecia de braços abertos, destacado, em queda, como um jogador de futebol em um brilhante jogada, em voo sobre as palavras de ordem, viva Cuba, yankees go home, reforma agrária na lei ou na marra. Sorrindo em queda livre o meu amigo, na página da revista O Cruzeiro.
Por isso ele gargalha, por sair em edição nacional, por força do seu espírito moleque. Por isso ele se diz, esta é a lógica, dias depois:
– Tem umas cobrinhas… Eles vêm me pegar!
O meu amigo da foto é quem me resolve problemas de matemática que não consigo resolver. Num deles, um de fração, ele, esperto, me esclarece o que a ambiguidade do problema não deixava ver: existe uma fração de vara enterrada no leito do rio, o corpo dela não vai só até a parte submersa, o todo vai até abaixo da areia depositada sob a água. Bandidos, não deixaram claro, assim é fácil, eu lhe digo. E a minha revolta para ele é um justo motivo de gargalhada. Mas me consola:
– Na sua idade, eu também não resolvi esse problema.
Não sei se sou idealista, naquele mau sentido dos manuais simplificadores do marxismo, mas agora à distância eu percebo a dignificação que o espírito dá. O respeito que relações assim construídas funda. De passagem, lembro que fui amigo de indivíduos valentões, rápidos nos socos e de força, com quem jamais briguei. Ainda bem, considero. Mas o que eu destaco agora é que não havia espaço entre nós para a troca de insultos. Havia um respeito fundado nos objetivos a alcançar, ou melhor, a natureza das nossas relações não comportava um enfrentamento físico. Assim também com Ivan. Agora compreendo que em nossas relações ideais, ou idealizadas, ele me via como um menino precoce, como um menino de futuro.
Neste passo cabe dizer o que era o futuro em nossa condição. Ele era um dos seis filhos de seu Joaquim-da-carne-de-porco. Seu Joaquim, para se dignificar, dizia-se marchante, mas apenas vendia carne de porco no mercado público de Água Fria. Simpatizante do velho Partidão, pusera nos quatro primeiros filhos nomes russos, porque à época a Rússia era a pátria da revolução. Eles se chamavam Pedro, Ivanovitch, Serguei, Andrei, Abrahão e Isaac. Os dois últimos coincidiam com o declínio das convicções do velho comunista – ele passara da revolução na terra para a salvação da alma, embora continuasse a sobreviver da venda da carne de porco. Lembro que da sua casa, feia, sem janelas, com fachada de pobre ponto comercial, vinha um permanente cheiro de torresmo. Lembro do cheiro abusivo, enjoado, repugnante que dava aquela coisa gordurosa, fartura de uma coisa só. Entre as fumaças da casa e o box no mercado, seu Joaquim conservara do antigo ardor revolucionário a fé, a paixão da crença no livro, a crença na educação. O estudo que levantaria as massas passou a salvar pessoas. Daí que seus filhos teriam que ser gente, não simplesmente carne de porco e torresmo.
Naqueles anos de 64, um menino de futuro, naquele cheiro ativo de toucinho torrado, era um menino que gostava de ler, de perguntar, de argumentar, apesar de a sua imagem física não se assemelhar a qualquer futuro. Assim ele era porque o futuro eram os livros, e nos livros, era inquestionável, estava a força que erguera um povo das trevas, do feudalismo. Havia então um respeito mítico, místico, pelos livros. De futuro, até antes do golpe do 1º de abril, era também Ivanovitch. Dos seis filhos de seu Joaquim ele era o mais brilhante, porque, enquanto os demais eram “especialistas”, Ivanovitch era um universalista – gostava de matemática, de química, de física, de política, de filosofia, de romance, lia como um animal que tem fome de letras, e possuía um bom humor que era uma crítica ao mundo.
Por que as pessoas não são lineares? Por que os indivíduos que levam a vida a gargalhar tendem a terminá-la com amargura ou violência? Por que os indivíduos soturnos, sombrios, não são os que enfiam o cano na boca e estouram os próprios miolos? Não, o trágico quer os pletóricos, os plenos de verve e coração. Pois assim como o câncer, que dizem se alimentar da saúde vigorosa, o golpe de 1º de abril comeu o cérebro do meu amigo. E ele que era diurno, solar, tornou-se febril e noturno, naquele fim de tarde.
– Cadê Ivan? – perguntei, na volta da padaria. – Cadê Ivan? – perguntei, porque eu queria com ele conversar os últimos acontecimentos, queria que ele me explicasse os tanques na rua, se Arraes ainda era governo, se os comunistas haviam perdido a batalha. – Cadê Ivan?
– Vem ver o teu amigo. Veja como ele está. – E sua mãe me conduziu até o quarto, que era uma divisória de tabique sem porta, como um quarto de estúdio de cinema. E ela se pôs a chamá-lo, a dizer-lhe que eu estava ali, como se eu tivesse o dom de fazê-lo voltar à realidade, realidade que ela não sabia ser o pesadelo a se inaugurar. Chamava-o, “Ivan”, para torná-lo ao Ivan de 31 de março, ao rapaz que era a esperança daquela família de seu Joaquim-da-carne-de-porco.
Ele ouviu, hoje sei, ele ouviu porque respondeu, para explicar o seu tormento:
– As cobrinhas estão subindo em mim. Mãe, me tira essas cobrinhas.
Sei agora que naquele delírio Ivan não perdeu de todo a lógica, a razão. Será que enlouquecemos assim, num diálogo entre a desrazão e a razão? Vejam, e nesta manhã em que escrevo me chega a voz de Nat King Cole cantando como naqueles anos, na tela do Cine Olímpia, do Cinema Império, ouço Nat arremedando o espanhol “adios, mariquita linda”, vejam, agora percebo: ele diminuía o tamanho das serpentes, para ter miríades delas a subir-lhe pelas costas. Vejam, havia uma incompatibilidade de áreas físicas de suas costas para as serpentes normais, em grande número. E por isso ele as diminuía ao tamanho de se verem de microscópio, que lógica infernal, como eram micros só ele as via! Meu amigo delirava e, para ele, para mim, último consolo, perdia a razão, mas não perdia a inteligência.
Muitos anos depois eu o revi. Estava mais largo, obeso, imenso, com os gestos lentos de um drogado. A face, sem acusar reação, só olhos mortiços, distantes, que não me reconheceram. Ele passou ao largo de mim como um hipopótamo sem sombra, como um elefante sem orelhas, sem tromba, sem dentes passaria, só a grande massa de carne….
Em 16 de outubro de 2010, fiz a última atualização desta memória sobre meu amigo Ivan Ivanovitch:
“A realidade sempre é infinitamente mais cruel que o narrado. Recebi hoje na fila do supermercado a notícia de que Ivan falecera há um ano. Sem a consciência.”
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
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