O sapo Gonzalo em: O lutador

Por Luiz Bernardo Pericás.

Outra manhã na praça Fellini, a mesma que sempre frequentava. Gonzalo sentia que, a qualquer momento, alguém se sentaria a seu lado e começaria a desfiar longas histórias. Como de costume. Afinal, seria pedir muito ficar só, em silêncio, apenas a olhar as crianças rechonchudas passeando com suas babás esclerosadas, os pombos tuberculosos bicando os grãos duros de milho no chão de concreto rachado e os pipoqueiros estropiados que rotineiramente circulavam por ali. Alguém teria que surgir como que por encantamento e incomodá-lo, mesmo naquele horário alvorar, logo após o nascer do sol.

O homem sem braço, que conversara com Gonzalucho por longos minutos, na semana anterior, nunca mais aparecera por lá. Mas algum novo personagem haveria de surgir… Enquanto isso, a pirose do caçote dava pontadas, queimava, corroía o esôfago. E seu velho problema na “fauna intestinal” também voltava a incomodá-lo…

Pois não é que o dendróbata esmeraldino mal terminava de tragar seu vigésimo cigarro desde que acordara quando percebeu que um troglodita barrigudo, de rosto deformado e lábios rasgados, vinha em sua direção. Olhou para o outro lado, tentando se esquivar, mas de nada adiantou. O indivíduo de nariz torto e feições desarmoniosas, uma espécie de Quasimodo moderno, sentou-se sem muita delicadeza justo a seu lado. E, como era de se esperar, queria trocar uma ideia. O nosso querido e pigarrento dicó argentino, coçando a virilha, sem querer discutir nem desapontar o forasteiro, meneou a cabecinha esverdeada, concordando.

“Meu caro sapo, não quero importuná-lo, mas gostaria de lhe pedir um cigarrinho desses, por favor”, disse o estranho, polidamente.

“Sim, claro…” , retrucou o anfíbio engelhado, deixando que o homem retirasse um Marlboro do maço.

O giboso puxou o fumo até o fundo da alma e depois soltou a fumaça lentamente, sem se mover do lugar.

“Belo dia, não acha?”

Gonzalo não estava entendendo onde o corcovado queria chegar. E se mantinha quieto. O indivíduo, contudo, parecia não se importar com o silêncio solene do batráquio. Continuou:

“Você gosta de esportes, colega?”

Da boca de Gonzalucho, nem um coaxar sequer.

“Olhe só aquele rapaz dando socos no ar”, apontou o gebo repugnante. “Ali em frente, do outro lado da praça. Conheço o jovem. Está treinando para o ‘Luva de Prata’ e o ‘Forja de Campeões’, os maiores certames de pugilismo aqui da cidade. Ele acha que será uma estrela dos ringues… Ah, quanta ilusão! Ser como Patterson, Frazier, Foreman, é para poucos… Pois vou lhe contar. Cruzei com muitos garotos como este, ao longo de toda minha vida. Mas havia um em especial que se deixou deslumbrar, mais do que os outros, pelos holofotes… E acabou na sarjeta! Quanto potencial despediçado! Era um galã… Parecia até o Paul Newman, veja você! E teve seu momento de glória… Agora nem as donas de casa de meia-idade o reconhecem. Mas em sua época, foi grande!”

“Conte mais”, retrucou Gonzalucho, sem demonstrar grande interesse por seu interlocutor, mas desconfiando, lá no fundo, que o homem iria narrar sua própria história. Como da outra vez, com o maneta, ídolo local do braço de ferro. Era o que sempre ocorria quando estava sentado, sem ter o que fazer, ali na praça Fellini, aparentemente o lugar mais agitado da cidade naquelas horas da manhã. Não tinha como escapar dos chatos…

“Pois vou lhe narrar, então, a saga deste lutador. E também seu drama…”

Foi desconectado deste mundo por alguns segundos. O violento direto de direita que levou no meio da testa sacudiu sua cabeça e deslocou o cérebro dentro de seu crânio. Os olhos estavam tão inchados que mal conseguia abri-los. O nariz, com o dobro de seu tamanho normal, sangrava. Na outra extremidade do ringue, o adversário esperava a contagem do juiz. Mas já comemorava a vitória.

No começo, era apenas o sonho. Nas revistas esportivas que comprava todas as semanas via as fotos de seus heróis de luvas. O sonho, propriamente dito, era se tornar um campeão de boxe como eles. Mas isso parecia impossível. Um físico pouco privilegiado, comentavam os amigos.

Na adolescência, era surrado diariamente pelos colegas na escola. As provocações, frequentes: anos de bullying e desrespeito…

Considerado um moleque estranho e solitário, se escondia sempre, nos intervalos das classes, num canto do pequeno jardim da escola, simulando, sozinho, combates ferozes com inimigos imaginários. Saltava, praticava o pêndulo e golpeava no vazio, para finalmente erguer os braços para os céus, se jactando de mais um grande triunfo no tablado. Depois disso tudo, chegavam os grandotes, que iam se divertir às suas custas. Por mais que fosse enxotado diariamente, não abandonava sua ambição. “Algum dia todos irão se arrepender dessas brincadeiras”, dizia para si mesmo.

Ao se formar no secundário, já se podia notar claramente a diferença dos anos anteriores. Ainda não havia iniciado sequer um treinamento formal, mas seus músculos começavam a aparecer. De vez em quando, colocava camisas apertadas para impressionar as meninas do colégio. Na maioria das ocasiões, entretanto, continuava sendo o mesmo tímido e recatado rapaz de sempre. Permanecia cheio de expectativas em relação a seu futuro promissor.

Em vez de tentar entrar numa faculdade, foi diretamente falar com um antigo amigo de seu pai, que lhe apresentou a um dos mais renomados preparadores técnicos da cidade. Como sua família tinha uma posição econômica confortável, pôde lhe pagar, sem qualquer dificuldade, os treinamentos custosos. A academia estava repleta de outros jovens de classe média como ele. Mas nenhum deles tinha a mesma estâmina, a mesma vontade de vencer, pensava o jovem. Derrotaria a todos.

Sua rotina era sempre igual: saía de casa pela manhã, ia para o ginásio em seu carro importado, entrava no vestiário, colocava as faixas nas mãos, enrolando as gazes metodicamente nas palmas abertas e entre os dedos finos, e então ia golpear o saco de areia. O treinador parecia gostar de seu progresso, e quando viu que derrubava frequentemente alguns sparrings na academia, percebeu que podia fazer dinheiro fácil com o discípulo.

Um ano depois de ingressar nos mistérios da nobre arte, sem nunca haver participado de uma luta oficial, já tinha um empresário, também chapa do progenitor, que garantiu ao velho bons lucros com as futuras pugnas do filho. Só precisavam de uns combates arranjados. E isso não seria difícil de conseguir.

Antes do primeiro desafio a ansiedade era grande. Sua mãe, uma matrona corpulenta que passava boa parte do dia conversando com as amigas ao telefone, estava desesperada. “Isso não é coisa de gente civilizada”, gritava, com as mãos nos cabelos. Acariciava de forma enlouquecida a face lisa do filho e temia pelo pior. Não queria que machucassem seu “menino”. Só a ideia de ver o rosto do filho desfigurado lhe causava arrepios. Chorou por duas semanas seguidas, todas as noites, ao pensar no que poderia acontecer com o jovem. Na grande noite do evento, ela sentou-se com o marido na primeira fila e gritou como um animal selvagem, pedindo que o “garoto” arrancasse a cabeça do oponente, certamente um ato de alguém que não conhecia as regras do belo esporte.

De qualquer forma, lá ia o jovem boxeador para o ginásio. Durante todo o trajeto parecia estar concentrado ao máximo, absorto em seus pensamentos mais íntimos. Seu treinador dirigia o automóvel de marca alemã, enquanto ele, no banco do passageiro, meditava de olhos fechados.

Agora seria para valer. Por anos imaginara aquele momento e ele havia chegado. Em alguns minutos, enfrentaria seu adversário: um enigma. Mas recebia constantemente a garantia do “professor” de que não haveria problema. O oponente era um garoto de origem humilde, com péssima técnica e pouca força física. Tinha queixo de vidro, garantia. Estava tudo arrumado: uma luta arranjada. Não havia nada com que se preocupar.

Entrou no vestiário, se despiu e em seguida colocou a proteção dos genitais, os calçados, as luvas e o short com cores brilhantes. Começou, então, o aquecimento…

Seu nome foi chamado em alto e bom som pelo alto-falante e dos bastidores, ele correu até o ringue distante, se escondendo no capuz do roupão cintilante. Os flashes espocavam; uma música agitada anunciava sua presença. Aquele era seu momento de apoteose. Tudo estava preparado para que ganhasse seu primeiro evento. Havia muito dinheiro em jogo; tinha de vencer.

Subiu no quadrilátero e cumprimentou o público. A multidão já o conhecia pelos cartazes e notícias publicitárias colocadas em destaque nos jornais. Era uma lenda sem nunca antes ter lutado profissionalmente em sua vida. Mas isso não era o mais importante. O mais importante era a imagem. E isso ele tinha. Jovem, delgado, músculos enrijecidos, com o nariz e lábios finos, era exatamente o que aquele público queria. Quando olhou para seu adversário, um negro raquítico, que havia sido colocado ali apenas para apanhar, deu um sorriso. A peleja estava no papo. Era só ter paciência, jabear um pouco e meter um gancho no queixo do famigerado. Sabia o que fazer. Planejou todo o transcurso da lide, cada pequeno detalhe, cada movimento. Acreditava que em no máximo dois assaltos estaria comemorando a vitória com a plateia.

Devia agradecer ao treinador e ao empresário por terem escolhido um oponente tão fácil. Seria o protagonista de um massacre.

Uma bela mulher, de corpo escultural, desfilou com uma grande placa dentro do cercado. Preparava-se para o primeiro round. Seu coração batia mais rápido; a respiração, ofegante.

Soou o gongo. Foi em direção do fraco lutador sem pestanejar. O rapaz afrodescendente tentava se defender, mas era difícil conter o bombardeio de socos.

O pugilista branco não se detinha; os jabs, ininterruptos. Em pouco tempo, o rival se abraçava a ele. Quase não conseguia se manter de pé. As pernas bambas tremiam; os braços finos “clinchavam” em volta de seu corpo. O frágil oponente tinha, no olhar, o medo de um animal acuado por um caçador: achava que se soltasse daquela posição, receberia uma saraivada de murros impossível de conter.

Enquanto isso, o boxeador de classe média lhe infligia pancadas poderosas no baço e no plexo. O juiz com alguma dificuldade separou os dois contendores, para logo ter de apartá-los de novo alguns segundos mais tarde, já que o mirrado lutador negro mais uma vez colava seu corpo junto ao de seu oponente.

Ao recomeçar a sova unilateral, o público entrou em estado de transe. A multidão delirava e pedia a cabeça do pobre coitado. Aquele rapaz branco, que havia sido um garoto sonhador anos antes e que admirava os pugilistas clássicos, agora iria satisfazer o público presente na pequena arena. Com um soco na mandíbula, acompanhado de seu cotovelo, finalmente conseguiu derrubar o oponente franzino.

O juiz começou a contagem. Ainda tonto, sem entender bem o que estava acontecendo, o negro conseguiu, com muito esforço, se levantar. Garantiu que poderia seguir adiante no combate. Sentia-se como se tivesse sido atropelado por um caminhão. No outro canto, o jovem “ariano” conversava descompromissadamente com o treinador e dava piscadinhas para as mulheres da audiência. Ainda teve tempo de acenar para o pai, dando a entender que ganharia a luta facilmente. O árbitro então mandou os dois recomeçaram o embate, mas o gongo soou, salvando a pele do adversário.

Sentou-se em seu corner e recebeu algumas instruções do treinador. Na verdade, não estava ouvido o que seu mentor dizia. Naquele momento, ele observava a beleza feminina de biquini que caminhava com a placa levantada sobre a cabeça. O segundo assalto logo começaria, mas estava tranquilo.

Os assistentes colocaram um pouco de água em sua boca, a qual bochechou e cuspiu. Apesar da intensidade do primeiro assalto, não aparentava cansaço. Olhou de viés para fora do quadrilátero e viu sua mãe gorducha gargalhando com uma velha amiga: dizia que seu filho era o tal. Já o pai, orgulhoso do pimpolho, explicava a um espectador, com dedo em riste, as qualidades técnicas do primogênito. Então se escutou novamente o sinal.

Desta vez teria de acabar logo com o combate. Saltou como uma fera em cima do oponente, jogando agressivamente seu punho na face de traços duros, rasgando o supercílio direito. O corte, o sangue transbordando e o inchaço mal permitiam que o coitado abrisse a pálpebra. Ainda assim, o médico, em pé numa das esquinas, pôde detectar algo estranho no olho coagulado, que tempos mais tarde se comprovou ser um descolamento de retina. Mas não fez nada para parar a derriça. Havia muito dinheiro em jogo naquela noite.

Bateu com tanta força na cara do adversário negro, explodindo o punho petrificado em sua boca, que produziu um edema descomunal em seus lábios. Queria massacrar aquele garoto. Até que conseguiu encaixar um violento golpe lateral no fígado. No momento em que o adversário se contorceu, aplicou o gancho de direita no queixo, como havia planejado. Mais uma vez, o magrizel foi à lona. Só que desta vez não conseguiu se levantar.

Vencera a luta em apenas dois assaltos. Seu primeiro duelo como profissional havia sido um sucesso. Pulou nas cordas e bateu as luvas no peito. Quando voltou para o centro do tablado, para ter seu braço levantado pelo juiz, estava exultante. Os fotógrafos logo chegaram, e junto com eles, vários repórteres esportivos. Seria como seus ídolos do passado: também teria seus retratos estampados nas revistas especializadas! Já o pobre negro foi esquecido em seu canto junto com sua equipe. Saiu do palco sem atenção nem interesse de ninguém…

O boxeador branco, com sua luta armada, sentia que dali em diante teria uma carreira de êxito. Percebeu que algumas mulheres do público haviam subido ao ringue e agora o adulavam. Descalçado das luvas vermelhas, abraçou uma loira falsificada, que não se queixou. Os dedos finos apertavam a carne macia da moça oxigenada, que se entusiasmava ao ser tocada por um campeão. Pegou o telefone da jovem e ficou de sair com ela outro dia. Tantos anos solitário, considerado um animal estranho pelos colegas da escola, ele agora sentia-se triunfante!

Apesar da jornada daquela noite, foi jantar com sua família num restaurante caro. O pai ria sozinho ao exibir o maço de dinheiro em sua mão. O boxeur, por sua vez, sem uma cicatriz sequer no rosto, não conseguia parar de pensar na moça que abraçara pouco tempo antes no ringue… Alguns dias depois, sairia com a rapariga pela primeira vez, e a partir daí, começaria um romance de fachada com ela…

Como seu combate inicial havia sido fácil, diminuiu a intensidade dos treinamentos, talvez por excesso de confiança em si mesmo e nas tramóias de seu empresário. Recebeu a garantia de que seu próximo oponente seria do mesmo calibre do primeiro. Por isso, não ligou para suas noitadas e novo estilo de vida.

Próximo do novo prélio, entretanto, começou a se preocupar. Talvez devesse levar mais a sério sua carreira. A namorada, sempre vista com ele em todos os eventos sociais importantes da cidade, dizia que o parceiro era o maior e que venceria com facilidade qualquer adversário. Isso o tranquilizava em certa medida. Até chegar a hora do gládio…

Entrou no ringue tão ou mais confiante do que da primeira vez, mesmo sabendo que não estava bem preparado. O rival, conhecido como “Tanque”, um rapaz de sua academia e que morava, coincidentemente, em seu bairro, era mais forte que o anterior e disposto a brigar. A luta parecia difícil… Mas então se lembrava das palavras confortadoras de seu empresário, que lhe assegurara mais uma vitória fácil.

O ginásio estava lotado, desta vez por muitos curiosos, querendo conhecer a sensação do momento. Ao se dar conta da adulação do público, começou a saltitar e a bater as luvas, como se estivesse se aquecendo. Em realidade, se exibia.

A parceira, sentada ao lado de sua mãe, acenava euforicamente. Seu nome, peso e cartel foram anunciados com exagero pelo apresentador no centro do ringue. A multidão, influenciada por todo o esquema publicitário construído ao longo dos meses em torno do pugilista, parecia estar diante de um ídolo musical. Nas revistas de entretenimento, descreviam-no como um artista, criando a imagem de um astro pop. Logo as menininhas impressionáveis tinham seu pôster nas paredes de seus quartos e seu retrato nas carteiras.

Uma das queixas do treinador era que o pupilo perdia muito tempo nos estúdios, em sessões de fotos demoradas. Quando começou a tomar esteróides, acreditava que melhoraria a aparência (afinal, havia algum tempo que, ao se olhar no espelho, sentia que ainda lhe faltava massa muscular). Seu mestre discordou da decisão, mas ao tentar dissuadir o rapaz, foi repreendido de tal forma que não abriu mais a boca sobre esse assunto. O discípulo pretendia ficar bonito para suas fãs, e acreditava que tal atitude não comprometeria sua performance no quadrilátero.

“Tanque” queria tirar tudo isso do inimigo. E ansiava, ele próprio, se tornar a estrela da nova geração do boxe local. Aquela seria sua quinta luta, após uma derrota, uma vitória por pontos e duas por nocaute. Deixaria para trás o tropeção da primeira contenda, que para ele fora um erro: simplesmente não tivera tempo suficiente para se preparar; abrira a guarda e levara uma sequência de golpes duríssimos no rosto. Mas aos poucos havia se recuperado, planejado melhor sua estratégia e conseguido vencer os outros desafios. Os dois nocautes recentes haviam sido resultado de um treinamento intenso. Agora estava pronto para acabar com a “sensação” do momento. Aquele combate garantiria sua ascensão ao estrelato. Também se achava garboso e acreditava que poderia ser convidado a participar de algum filme nacional em breve: era só questão de saber como manipular a mídia. Seu empresário se encarregaria do resto…

A rinha começou. Nosso protagonista agora percebia que havia se metido numa encrenca. Durante os dois primeiros rounds, apenas se estudaram, medindo distância e somente desferindo alguns jabs sem grande potência. Queriam conhecer a técnica e o encaixe um do outro; os clinchs, frequentes. Tinham receio de se expor demasiadamente numa luta franca e acabar levando um golpe inesperado. Para o público, aquilo estava parecendo um acordo de cavalheiros. Queriam sangue, mas presenciavam um espetáculo entediante.

No sexto assalto, o novo ídolo jovem conseguiu acertar uma boa sequência na facha adiposa de “Tanque”, que cambaleou como se fosse desabar: conseguiu se equilibrar rapidamente e continuar o combate. Esse talvez tenha sido o único momento de maior emoção da noite. Em seguida, o tédio voltou a reinar. Parte da audiência começou a vaiar os dois, enquanto outros espectadores, desapontados, se levantavam e partiam.

O fato é que “Tanque” era um adversário mais difícil do que havia imaginado. Já pensava em se queixar com o manager por ter mentido a respeito do rival. Mesmo com todas as dificuldades, percebia que estava sendo filmado e preocupava-se em se colocar no melhor ângulo para as câmeras, desferindo cada soco com uma plasticidade proposital. Tentava imaginar como ficariam suas fotos nos jornais desportivos.

A namorada perdia paulatinamente o interesse na luta e conversava com um homem obeso a seu lado, provavelmente um apostador frequente do local. Nesse momento, entretanto, nosso protagonista não percebia nem se interessava por isso: só queria que aquele suplício acabasse logo. Havia muito tempo que não se sentia tão cansado.

Ao terminar o décimo segundo round, foi proclamado vencedor por pontos, o que para ele era mais do que o suficiente. Se o próximo adversário fosse tão difícil, demitiria seu empresário.

“Tanque” não partiu sem antes reclamar de que aquele combate havia sido forjado. Tinha certeza que lutara melhor. Mas os golpes que quase o haviam derrubado foram a desculpa para lhe tirar a vitória. Seu futuro já não parecia tão promissor. Saiu do ringue desconsolado e dizendo que havia sido roubado. Iria denunciar aquela armação na imprensa. Depois de uma semana, ninguém mais queria entrevistá-lo e em pouco tempo, ele e aquela pugna foram esquecidos.

Agora o sonhador de classe média pensava numa volta triunfal. Sua intenção era a de planejar melhor as lutas seguintes, para restabelecer sua imagem de ídolo e calar a boca dos críticos. Deveria vencer de maneira arrasadora, em eventos transmitidos ao vivo, com ampla publicidade. Em poucos anos, poderia se dedicar a outras atividades e desfrutar da fama. Queria ser cantor. Neste caso, o mais importante não seria cantar, considerando que não tinha boa voz e era desafinado. Sabia que no show business o que mais importa é a aparência. Conseguiria músicos para acompanhá-lo e diretores competentes para seus video clips. Depois que gravasse suas canções, não teria mais com que se preocupar. Afinal de contas, seria só questão de colocar um play back e tudo estaria resolvido. Também queria ser ator de telenovelas. Mas estes eram projetos para o futuro. Primeiro teria de se consolidar como grande campeão de boxe, seu sonho de infância. Depois se dedicaria ao resto.

Decidiu colocar o pai para cuidar de seus assuntos, juntamente com o manager, para ter certeza de que seu próximo adversário seria fácil. Continuou, mesmo assim, a sair rotineiramente com a consorte platinada, participando de eventos sociais e bebendo mais do que devia. Acreditava que isso era parte do negócio.

Suas próximas contendas foram fáceis. Combateu o argentino “Huracán” González e o mexicano “Charro” Ramírez, dois boxeadores de segunda, vencendo a ambos sem problema. Mas não modificou sua rotina de farras e álcool. Sabia se promover e divulgava seus “grandes” feitos para o público seleto que frequentava as casas noturnas da moda. Nos pôsteres encomendados pelo empresário, sua fotografia era estilizada e seu nome, escrito em letras garrafais. As lutas com estrangeiros desconhecidos eram difundidas como atrações internacionais. É claro que muitos comentaristas sabiam que tudo aquilo era arrumado com antecedência e que o jovem pugilista era uma farsa, mas se calavam quando recebiam as notas gordas na mão. Como lutava em organizações de boxe de pouco prestígio, a mentira ainda passava despercebida entre os aficionados e amantes do esporte, com exceção de alguns fanáticos mais atentos. Caso chegasse em algum momento a lutar com prize fighters de nível superior, as coisas certamente mudariam de figura. Mas como se considerava, antes de tudo, um entertainer, um showman, o boxe em si não era algo tão importante.

Os anabolizantes e o treinamento relapso começaram a fazer efeito, e em pouco tempo, ganhava uma barriga flácida e espinhas na cara. A namorada se queixava, mas não o abandonava por saber que se tratava de alguém com potencial para o estrelato. Era vista, contudo, com outros homens que conhecia na noite, de alguma forma conseguindo esconder os amantes do companheiro, que muitas vezes estava excessivamente bêbado para perceber o que se passava à sua volta.

O rapaz assinou contrato para participar de uma telenovela na época que mais tarde considerou ser o auge de sua carreira como boxeador profissional. Tinha a aparência que os diretores queriam. Era jovem, de pele clara e contornos suaves: dava a impressão de ser o garoto da esquina, o filho que todas as mães gostariam de ter. Só que precisaria dar um jeito de se livrar da barriga proeminente e da acne, que infestava sua cara. Os donos da emissora sabiam que fotografava bem, e que poderiam fazer milagres com maquiagem e truques da câmera. Mas acreditavam que ele, mesmo assim, tinha de ficar com o corpo atlético e o rosto limpo: era um produto, e para ser vendido, deveria se adaptar. Queriam passar a imagem de saúde e juventude ao grande público, e fariam o que fosse necessário para atingir esse objetivo.

Aquele era seu ápice. Havia vencido quinze combates, quase todos por nocaute nos primeiros rounds. As pessoas o reconheciam nas ruas e algumas chegavam a lhe pedir autógrafos. Até mesmo um fã-clube foi criado para homenageá-lo. Era o ídolo das menininhas adolescentes. Tudo isso para alguém que nunca demonstrara qualquer qualidade técnica no ringue. A curta carreira não deveria ser o suficiente para que conseguisse tanto em tão pouco tempo. Mas com a influência da família e os esquemas promocionais, conseguira acelerar sua chegada aos caminhos da fama.

O folhetim da “tela de prata” começaria a ser gravado em um mês. Assim, teria de voltar a ficar em forma o quanto antes. Discutiu com o treinador um plano de exercícios e começou sua dura rotina. Tinha apenas mais uma luta programada antes das filmagens. Provavelmente seria como todas as outras. Depois, colheria os frutos da glória.

Em pouco tempo, sua flacidez desapareceu e seu rosto voltava a ser liso. Descobriu que sua namorada tinha casos com outros homens, mas não se importou e justo antes de seu próximo duelo, pediu a loira falsificada em casamento. Ela, como se pode imaginar, aceitou. O enorme anel de ouro e diamantes que ganhou foi a recompensa por ter aturado aquele chato por tanto tempo. Sua conta bancária estava inchada, seu cartel de lutador, melhorando ao longo dos meses, e sua carreira de ator, pronta para deslanchar. Tudo parecia estar indo de vento em popa: chegava ao sucesso que tanto almejara na infância. Tinha de cumprir apenas mais um compromisso antes de estrear na carreira de ator. E acreditava que aquela seria mais uma vitória tranquila.

Entrou no ringue e viu do outro lado um homem de sua altura, mas com um físico exageradamente desenvolvido para sua categoria. Diziam que o indivíduo se chamava Tonhão. Era escuro, retinto como petróleo, com olhos amarelados e lábios descomunais: tinha ódio no olhar. Quase não se movia: estava parado, estático, olhando furiosamente para ele.

Naquele momento, pensou que o embate poderia ser duro. Mas seria seu último em muito tempo. Depois disso, a fama na televisão. Como o empresário sempre conseguia adversários fáceis, imaginou que aquele boxeur assustador fosse apenas mais um carregador de sacos de cebola numa feira qualquer, que fazia um bico no pugilismo para ganhar alguns trocados a mais.

Antes de soar o gongo, lhe solicitaram uma entrevista. Deu declarações para os jornalistas presentes, explicando os detalhes de seu recente contrato com a emissora e desmentindo que tivesse um caso com uma atriz famosa. Depois disso, colocou a proteção na boca, foi ao centro do tablado receber as instruções do juiz e voltou ao seu corner. E então, finalmente, começou o combate.

Já no início, percebeu que aquela seria uma peleja complicada. Tonhão atacava com uma agressividade que nunca havia visto, seus golpes, desferidos com uma velocidade impressionante: era difícil se defender de tamanha quantidade de socos. Em poucos minutos, corria de sua boca o fluido vital…

Foi castigado em seguida na linha de cintura, uma sequência feroz na zona hepática. Após receber upper cut, upper cut, upper cut, cambaleou desequilibrado para as cordas e teve de “clinchar” o adversário. Separado de Tonhão pelo juiz, continuou a sentir o impacto da mão pesada do desafiante negro. Sua mucosa bucal estava em frangalhos. Um murro mais forte e então ouviu um estranho ruído: seu maxilar acabava de quebrar. Queria que tocasse o sinal, que pudesse ir descansar em seu corner, mas o tempo parecia lento, e os minutos, intermináveis. Até que visitou as zonas arqueológicas pela primeira vez… Foi à lona! Conseguiu levantar-se com dificuldade, quando o juiz terminava a contagem. Cambaleando, agarrou-se a Tonhão o suficiente para que acendesse a luz âmbar. Estava salvo, ainda que provisoriamente.

Pensou em abandonar a batalha, mas seu técnico insistiu que continuasse. Como sempre, havia muito dinheiro em jogo; todos os amigos e parentes haviam apostado nele. Tinha de continuar…

O próprio treinador afirmou que não jogaria a toalha, que não pediria para parar a contenda. E depois, ele tinha de pensar na novela… Mas seu rosto agora estava tão desfigurado que dificilmente poderia ser um leading man de uma trama televisiva. Era como se Tonhão espancasse propositadamente seu rosto para que perdesse seus traços finos, suaves, tão apreciados pelo público feminino.

Estava apreensivo em voltar ao centro da arena para o segundo round, mas quando soou o gongo, correu para cima do adversário como que por instinto. Só que Tonhão agora batia com mais força e aumentava o ritmo.

Sua visão estava turva, a cabeça rodava, não conseguia ficar de pé. E então percebeu quem era seu adversário. Estava diante de seu primeiro oponente, aquele negro frágil e franzino, que para ele nunca tivera nome nem importância, que ele tanto castigara em seu combate inaugural e que saíra do ringue desprezado por todos. Seus olhos subitamente se abriram mais do que o normal e miraram fixamente para o rosto do rival. Tonhão se deu conta de que seu grande inimigo o havia reconhecido. E decidiu puni-lo ainda mais.

A partir daquele momento, golpeava com prazer. O sangue cobria todo o rosto do jovem galã, que, àquela altura, já não era tão galã quanto gostaria… O bom senso diria que a luta deveria ser interrompida. Mas ninguém mexeu um dedo para acabar com o combate. Até que finalmente veio o golpe de misericórdia.

Foi desconectado deste mundo por alguns segundos. O violento direto de direita que recebeu no meio da testa sacudiu sua cabeça e deslocou o cérebro dentro de seu crânio. Os olhos estavam tão inchados que mal conseguia abri-los. O nariz, com o dobro de seu tamanho normal, sangrava. Sua carreira na televisão e no boxe já não era tão promissora. Ao que tudo indicava, precisaria de um longo tempo para voltar ao normal. Estava irreconhecível. Os golpes que recebera haviam desfigurado seu rosto, coberto de cicatrizes. Só queria ir embora dali. E a multidão aplaudia… 

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o lançamento ficcional Cansaço, a longa estação. Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

3 comentários em O sapo Gonzalo em: O lutador

  1. Tirso W. Sáenz // 26/05/2012 às 12:33 am // Responder

    Estimado Luiz: Ótimo relato. Goistei muito dele. Parabénx outra vez. Abraços. Tirso

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  2. Está saindo pela Biblioteca24H dois livros de minha autoria:

    O reino Marinho e o livro O Príncipe do Futebol
    Aventuras juvenis cheias de ações e de mensagens em favor da ecologia.

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  3. Renata Seleme // 26/05/2012 às 5:56 pm // Responder

    Muito bom texto.
    Estou aguardando o próximo do Sapo.

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