Rubens Paiva não estava lá

Por Mouzar Benedito.

Um dos assuntos que certamente a Comissão da Verdade deve apurar é o “desaparecimento” de Rubens Paiva. A versão da ditadura para o caso foi de que ele estava sendo transportado de um presídio para outro e foi resgatado por um comando “terrorista”. Segundo essa versão, houve um intenso tiroteio e um dos veículos usados pelos guerrilheiros se incendiou. Como prova, mostram a foto de um fusca queimado.

Jornalistas afinados com os militares aceitaram essa versão sem contestar, publicaram a foto nos jornais e contaram a história como a repressão lhes contou. Mas é uma versão totalmente falsa. Rubens Paiva não estava naquele fusca, nem foi resgatado por comando guerrilheiro nenhum.

A história do fusca queimado está no livro Ousar Lutar – Memórias da guerrilha que vivi, um depoimento que me deu José Roberto Rezende, militante do Colina (Comando de Libertação Nacional) e depois da VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares) e da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária).

Ele me contou que ficou surpreso ao ver a foto do carro no jornal, ilustrando uma matéria fantasiosa.  A VPR usava carros temporariamente expropriados (ela devolvia os carros aos donos – o próprio Zé Roberto ligava a eles dizendo onde estava, para ir buscar), mas tinha um fusca legalizado, para uso cotidiano, sem correr riscos. Esse fusca, considerado uma “companheira”, tinha o apelido de Natália. Seu “proprietário” era um militante da VPR que usava o nome de guerra Ângelo.

O problema é que para soltar o embaixador alemão, que havia sido sequestrado, e trocado por quarenta presos políticos, falhou o esquema do uso de uma kombi. O encarregado de levá-la ao local do cativeiro estacionou o veículo em local proibido e ela foi guinchada. Era ponto de honra para os guerrilheiros cumprir o trato de soltá-lo quando os presos libertados chegassem ao seu destino. E resolveram usar a Natália.

Aí baixou uma dúvida: e se o embaixador tivesse memorizado a placa do carro? Para resolver a situação, limaram a numeração do chassi e do motor do carro e o levaram para um local ermo, onde ele foi incendiado. E os militares aproveitaram o fusca queimado para montar uma farsa, engolida por parte da imprensa.

Até hoje, quando se fala do “desaparecimento” de Rubens Paiva, representantes da ditadura usam a matéria de jornal com foto do fusca como “prova” do resgate pelos guerrilheiros. E tem gente da esquerda que sabe que é uma fantasia, mas discute a questão. Já mandei o livro para pessoas que não conheciam a história real do fusca, mas o assunto continua sendo tratado como se ninguém soubesse dessa história. Não sei porque.

Quem matou Rubens Paiva, como o mataram e o que fizeram com o corpo, não é uma história esclarecida, ainda. Tomara que seja desvendada pela Comissão da Verdade. Mas uma coisa é certa: a história do fusca queimado é totalmente falsa. Quem quiser ler a história do jeito que me foi contada por José Roberto Rezende, ela está no livro citado, publicado pela Boitempo no ano 2000, com uma segunda edição em 2007.  [O livro está em promoção até amanhã, saiba mais clicando aqui.]

Há um capítulo sobre o sequestro do embaixador alemão e logo em seguida, a partir da página 65, vem “Natália e a farsa montada pela polícia sobre a ‘fuga’ de Rubens Paiva”. É só conferir.

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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

1 comentário em Rubens Paiva não estava lá

  1. Documento com registros e ficha sobre a prisão de Rubem Paiva foram encontrados em uma casa de coronel da reserva em Porto Alegre…Um dos papéis mais procurados de um período sombrio da história do Brasil foi encontrado no acervo do coronel da reserva do Exército assassinado em Porto Alegre. O documento comprova a prisão do político Rubens Paiva, desaparecido há 41 anos: https://zhora.co/UYLokr

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