Capitalismo, uma definição

Detalhe da capa de “O enigma do capital”, de David Harvey (Boitempo, 2011)

Por João Alexandre Peschanski.

“O que é o capitalismo?” Foi o tema que uma quinzena de estudantes secundaristas me pediu para tratar com eles, faz mais de um ano, numa aula-livre de trinta minutos em meio à ocupação da sede do governo do Wisconsin, Estados Unidos (cf. texto de Ruy Braga sobre a ocupação, aqui no Blog da Boitempo, e meu, em coautoria com Erik Olin Wright, na revista Lutas Sociais, 25/26). A discussão fazia parte de um programa de atividades para os estudantes, cujos professores haviam paralisado as aulas para defender seus direitos sindicais. Sem referências bibliográficas e evitando jargões, defini com eles – talvez o público mais dinâmico, engajado, curioso e abertamente crítico com o qual já estive – o que entendo por capitalismo e transcrevo abaixo parte do resultado dessa discussão (entre parênteses e em itálico, alguns comentários e dicas de leitura para os leitores do blog).

1) O capitalismo é um modo de organizar a economia, isto é, a produção e a troca de bens e serviços. Uma economia capitalista reúne três elementos-chave, que a definem: a propriedade privada dos meios de produção, o mercado de trabalho e a troca de produtos num mercado visando ao lucro. Volto a esses três elementos a seguir.

2) Em vários momentos da história e até hoje, o capitalismo coexistiu com outras formas de organizar a economia. Em vários países o funcionamento de empresas capitalistas, cuja organização e prática se definem pelos três elementos que citei acima, depende das matérias-primas que lhes chegam de modos de produção não capitalistas, como a escravidão, um modo de organizar a economia em que não há mercado de trabalho. (Chico de Oliveira, em Crítica à razão dualista/O ornitorrinco [Boitempo, 2003], trata do casamento do capitalismo com formas econômicas arcaicas no Brasil, que contribuem para a reprodução do capitalismo. A tese do Chico de Oliveira sugere que modos de organizar a economia se atrelam, misturam e modificam, criando toda sorte de híbridos. Nessa perspectiva, pode-se falar de capitalismo apenas em teoria e no geral, já que formas historicamente específicas de capitalismo são modificadas pelas relações sociais e econômicas com as quais coexistem.) De certo modo, vivemos atualmente no capitalismo não porque este é o “único” modo de organizar a economia onde estamos, mas porque é o modo dominante. (Dominação se refere aqui tanto ao fato de o capitalismo ser o modo de organizar a economia mais comum quanto, e principalmente, ao fato de o capitalismo geralmente impor sua lógica sobre outros modos de organizar a economia, que em muitas vezes só continuam existindo porque são funcionais para a reprodução do capitalismo: as economias não capitalistas que continuam existindo hoje não são, em sua maioria, anticapitalistas.)

3) As empresas que organizam a produção e põem seus produtos no mercado são propriedades privadas no capitalismo. Acima, falei de meios de produção, que é costume definir como tudo aquilo que é usado na produção e não é humano, como as matérias-primas, edifícios, ferramentas, máquinas, infraestrutura etc. (Refiro-me a uma definição “costumeira”, pois há dentro da tradição marxista aqueles que afirmam que parte dos meios de produção são humanos, à medida que correspondem à materialização de trabalho humano, como é o caso de máquinas.) Os capitalistas detêm o controle privado dos meios de produção. Vale notar que esta não é a única forma de organizar a propriedade, que pode ser estatal e cooperativa. Ao proprietário privado está geralmente garantido o poder de decisão sobre como usar seus bens. Isso é um aspecto importante, pois lhe garante o controle sobre investimentos futuros – o capitalista decide, só, se quer investir mais na economia, em qual ramo da economia, com quais consequências – e decisões sobre investimentos afetam diretamente a sociedade, seu nível de desemprego, as condições básicas da vida.

4) No capitalismo, a produção visa ao lucro, isto é, à venda no mercado. Em outros modos de organizar a economia, a produção não visa necessariamente ao lucro, mas saciar necessidades básicas dos produtores e membros da comunidade ou simplesmente disponibilizar gratuitamente bens e serviços. A obtenção do lucro faz parte de um ciclo: os capitalistas começam com uma certa quantia de dinheiro, que usam para comprar meios de produção e contratar trabalhadores, com o intuito de produzir alguma mercadoria a ser vendida. Na venda, os capitalistas esperam conseguir de volta o dinheiro que investiram no início do ciclo e algum excedente – o lucro –, que podem utilizar para conseguir ainda mais lucro, recomeçando o ciclo. (Há inúmeros livros sobre esse elemento do capitalismo, objeto-chave da economia política marxista. Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro, de Marx [Expressão Popular, 2006], é uma obra clássica sobre o tema, além de acessível e curta. Também sugiro a leitura de dois importantes manuais de economia política, Iniciação à teoria econômica marxista, de Ernest Mandel [Antidoto, 1978], e Teoria do desenvolvimento capitalista, de Paul Sweezy [Zahar, 1976].)

5) As pessoas que trabalham nas empresas capitalistas são contratadas num mercado de trabalho. Não são elas mesmas as proprietárias das empresas. Na consolidação do capitalismo como forma dominante de organizar a economia, houve um processo de concentração dos meios de produção por algumas famílias e, mais tarde, corporações – o que significou uma contínua expropriação da maioria da população daquilo que tradicionalmente usavam para garantir sua sobrevivência, especialmente pequenas parcelas de terra. (Um dos principais estudiosos desse processo de expropriação é o geógrafo David Harvey. Vale conferir seus dois artigos na revista Lutas Sociais, disponíveis aqui e aqui.) Não restou à maioria da população outra alternativa além de trabalhar para os donos dos meios de produção. Irônico, Marx se referiu a esse elemento do capitalismo como a dupla liberdade dos trabalhadores: estão livres da propriedade dos meios de produção e estão livres para trabalhar para o capitalista ou morrer de fome.

6) Porque não tem outra forma de garantir sua sobrevivência, o trabalhador é obrigado a trabalhar para o capitalista. Os donos dos meios de produção exploram o trabalhador, pois recolhem benefícios materiais de sua atividade. Há um componente moral forte no uso do termo “exploração”, mas, aqui, pensemos simplesmente na relação entre o capitalista e o trabalhador que o termo descreve: o dono dos meios de produção usurpa o trabalhador, pois toma para si, para seu lucro, parte do que este produz. A outra parte é usada para pagar o salário, geralmente o que é necessário para o trabalhador sobreviver e, no dia seguinte, estar pronto para ser explorado mais uma vez. (Há uma vastíssima literatura sobre a exploração no capitalismo, que marca fundamentalmente a escola de pensamento de Ricardo Antunes, que coordena duas coleções sobre esse tema: Mundo do Trabalho [Boitempo, 38 livros até 2011] e Trabalho e Emancipação [Expressão Popular, 18 títulos até 2011].)

7) A relação entre o capitalista e o trabalhador é interdependente. O trabalhador, sobre quem pesa a dupla liberdade enunciada por Marx, precisa do capitalista para ter um salário. Mas para garantir e aumentar seu lucro o capitalista também precisa do trabalhador, ou mais especificamente precisa que o trabalhador aceite trabalhar e também que se entregue com intensidade máxima a sua atividade produtiva. Quanto mais o capitalista precisa do trabalhador, mais o poder do trabalhador aumenta: poder para reivindicar aumentos de salário, melhores condições de trabalho, políticas sociais mais justas. Ao capitalista o poder do trabalhador aparece, geralmente, como um entrave para a obtenção de lucro. Os donos dos meios de produção desenvolvem formas de conter o poder do trabalhador, como a organização da produção de tal modo que iniba reivindicações de empregados, a repressão, a realização de acordos com governos para que coíbam a organização dos trabalhadores, a ameaça de deslocar as fábricas etc. (Ainda pouco conhecido no Brasil, o sociólogo Michael Burawoy é um dos principais expoentes do estudo da relação entre capitalistas e trabalhadores no espaço mesmo da produção. Em especial, conferir seu Manufacturing Consent [Produzindo o consentimento], um livro clássico, possivelmente publicado pela Xamã em 2012.)

8) Uma característica fundamental para a dominação do capitalismo sobre outras formas de organizar a economia é que conseguiu manter-se relativamente estável, apesar de grandes mudanças tecnológicas, disputas políticas de amplitude mundial, graves crises econômicas. Para entender a capacidade do capitalismo de sobreviver e reproduzir-se, é preciso analisar como cada um dos três elementos que o definem – a propriedade privada dos meios de produção, a troca de produtos no mercado e o mercado laboral – se sustenta no tempo. Para entender a possibilidade de formas socialmente mais justas de organizar a economia serem criadas, é preciso desenvolver uma alternativa econômica, cuja organização da propriedade – incluindo sua dissolução –, da troca de produtos e da produção seja tão ou mais robusta e eficiente do que a economia capitalista e, além disso, garanta uma vida social digna e sustentável. (Sobre alternativas ao capitalismo, conferir o dossiê “Novas perspectivas do socialismo”, Margem Esquerda, número 17.)

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Estão disponíveis em ebook dois livros de autores mencionados nesta coluna: Crítica à razão dualista/O ornitorrinco, de Francisco de Oliveira, e O enigma do capital, de David Harvey. Clique nos títulos para adquiri-los com até 50% de desconto em relação ao preço dos livros impressos!

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João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

8 comentários em Capitalismo, uma definição

  1. A Guerra Fria não terminou no triunfo do capitalismo sobre o comunismo. Em países como o Brasil, acabamos com capitalismo para os ricos, e socialismo para os pobres. O rico tem poder de consumo. Pode escolher o plano de saúde da sua família, a escola do seu filho, pode ter acesso a crédito barato, além de poder ser dono das suas coisas – da sua fonte de renda, da sua casa, do seu meio de transporte, dos termos dos seus contratos de trabalho. Já o pobre fica à mercê da propriedade socializada, do hospital sem remédios, da escola sem reprovação, das mercadorias supertributadas, do transporte coletivo, da legislação trabalhista não negociável. O pobre brasileiro passa a vida dependendo de favores do estado, e saber manipular essa dependência é a habilidade de todo político de sucesso. Dar capitalismo para os pobres é capacitá-lo a produzir, empreender, comercializar e consumir com padrões

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    • VC é doido?”BRUNO”,vê se para de fazer propaganda capitalista,qualquer pessoa inteligente sabe que esse discurso que VC acabou de escrever,até eu já vi em dezenas de sites,VC é apenas uma das milhares de pessoas que os capitalistas pagam pra fazer essa propaganda mentirosa na internet,se os pobres tivessem socialismo aqui o Brasil seria o melhor lugar do mundo pra se viver.Arruma um trabalho de verdade(uma cooperativa seria ótimo).

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  2. O capitalismo é o sistema que melhor proporciona liberdade para que qualquer pessoa que esteja em baixo se sobressair e ter melhores condições de vida. Bom texto.

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  3. Quero que me deem exemplos de pelo menos 1 lugar que o socialismo deu certo. Mas como ele só existe no mundo das ideias, exemplos práticos não há.

    Além de onde tentou ser implementado, só deu problema ai invés de solução pro povo.

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  4. Penso o mesmo que o amigo acima, o capitalismo pelo menos dá liberdade pras pessoas correrem atrás.

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  5. É uma questão delicada eim, não sei o que opinar pra ser sincera.

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  6. Na minha opinião o capitalismo não é a solução perfeita mas é a melhor, na ausência de um sistema que melhor atende o povo o capitalismo sem dúvida é a melhor. Já o socialismo/comunismo não deu certo em lugar nenhum do mundo.

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  7. Anos se passaram e continuo Pensando o mesmo.

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