Crônicas de Berlim (13): Berlim, os vivos e os mortos

Treptower Park: sete mil soldados soviéticos ali jazem

Por Flávio Aguiar.

A semana passada foi uma semana de comemorações.

A primeira foi no dia 8. Tema: o fim da Segunda Guerra Mundial.

O conflito final e o futuro.

Um alto oficial alemão (Gen. Alfred Jodl) assinou, na cidade francesa de Reims, no dia 7 de maio de 1945, às duas e meia da madrugada, uma capitulação perante oficiais norte-americanos, britânicos, franceses e um soviético, vindo especialmente do front oriental para a ocasião. Mas os soviéticos não aceitaram essa assinatura como a definitiva. Curiosamente, houve unidades alemãs que também não aceitaram, ou tiveram uma interpretação própria, dizendo que o exército alemão se rendera apenas para os aliados ocidentais, não para os soviéticos. Unidades alemãs em Praga, por exemplo, lutaram até o dia 11 de maio. Alguns bolsões lutaram até o dia 12. A última unidade se rendeu apenas no dia 16 de maio. O motivo alegado era que oficiais e soldados queriam se render para os norte-americanos, não para os soviéticos ou guerrilheiros locais, temendo vingança.

Uma segunda cerimônia de rendição foi acertada então para Berlim. Esta ocorreu numa casa no bairro berlinense de Karlshorst, que ainda está de pé hoje, e abriga o Museu Teuto-Russo sobre a Segunda Guerra. Foi perto da meia noite, e estavam presentes o Marechal Wilhelm Keitel, pelo exército alemão (além de representantes das outras armas), o General Giorgi Zhukov, pelo Exército Vermelho, e representates norte-americanos, britânicos e franceses.

Talvez sem saber na ocasião, os oficiais presentes nessas diferentes cerimônias estavam já começando a Guerra Fria.

Há fontes que dizem ter o Mal. Keitel retardado a assinatura do documento a pedido de alguns companheiros de armas que queriam furar o cerco soviético em Berlim e procurar unidades norte-americanas ou britânicas para se render. Houve de fato esforços nesse sentido: poucos conseguiram de fato furar o cerco; a maioria ou morreu na tentativa ou foi detida pelos soviéticos.

Os últimos dias.

No dia 28 de abril Benito Mussolini foi morto na Itália tentando fugir para a Suíça, com sua companheira Clara Petacci e outros fascistas, que também foram mortos na ocasião. No dia 30 Adolf Hitler e sua esposa (desde alguns dias) Eva Braun se suicidaram no Bunker sob a Chancelaria berlinense, na esquina das hoje Vossstrasse e Wilhelmstrasse. Uma placa é tudo o que resta de visível, hoje, nessa esquina, assinalando a tragédia e o fim do Reich que deveria durar mil anos. No dia seguinte, no mesmo local, haveria a horrenda tragédia da família Goebbels. Joseph Goebbels e sua esposa Magda assassinaram os seis filhos antes de se suicidarem. Não podiam suportar a ideia de sua descendência viver num mundo sem o Reich.

Além dos aspectos terríveis de toda a guerra, do holocausto, do extermínio de romas, homossexuais, comunistas, outros opositores e tudo o mais – não há etcétera que possa conter esses acontecimentos – a consciência do que sucedeu nesses últimos dias em Berlim é patética.

80 mil soldados soviéticos pereceram em todo o processo da tomada de Berlim, com 100 mil alemães, pelo menos. Mas nos últimos vinte ou quinze dias, quando a luta já se dava casa a casa, em alguns momentos quarto a quarto, dentro de Berlim, pereceram 22 mil soldados soviéticos, 30 mil alemães e uns tantos outros 30 mil civis.

É célebre a foto dos soldados soviéticos desfraldando a bandeira vermelha sobre o Reichstag destruído. Pois a cerca de 500 metros do hoje reconstruído Reichstag estão enterrados os corpos de cerca de 2.200 soldados soviéticos que pereceram na tomada desses últimos redutos nazistas em torno do portão de Brandemburgo, hoje um cartão postal da cidade. Um monumento, sempre cheio de flores e visitantes, marca o local, no Tiergarten, antes parque de caça dos reis prussianos, e jé desde antes do fim da monarquia um parque público, uma das maiores áreas verdes urbanas da Alemanha e da Europa. Pois bem, quando a guerra terminou, não havia uma única árvore no parque: as que não foram destruídas ou queimadas nos bomabardeios foram derrubadas pela população para servir de lenha nesse estertor do 3º Reich.

Por esses dias fui visitar de novo o impressionante cemitério do parque de Treptow – Treptower Park, em alemão. Sete mil corpos estão ali enterrados: é o segundo maior cemitério russo (ex-soviético) fora da Rússia, só superado pelo da Geórgia (onde nascera Stalin), que hoje é uma república independente. É esmagador. Tudo é muito monumental, mas mais monumental é a lembrança da ferocidade nazista que provocou tudo isso.

Mal passada a comemoração do 8 de maio, veio outra: 10 de maio. Nesse dia, há 79 anos, em 1933, fez-se a sinistra e célebre queima de livros de Berlim. Aconteceu na hoje Bebelplatz, em homenagem a um dos autores cujos livros ali foram incinerados, o militante revolucionário August Bebel. A queima ceifou 25 mil livros perante 40 mil pessoas, na maioria jovens estudantes. Essa praça onde ela se deu fica entre a Ópera de Berlim e a Faculdade de Direito, tendo do outro lado da rua a sede da Universidade Humboldt. Consta que quem começou a loucura foi o próprio diretor da Faculdade, que trouxe uma braçada de livros “decadentes” tirados da biblioteca para a fogueira. Presente, o ministro da Propaganda, aquele mesmo sinistro Joseph Goebbels, fez o elogio do novo homem alemão que deveria nascer daquelas cinzas, livre do “intelectualismo judaico” (sic).

Todos os anos, nesse dia, se organiza uma leitura de livros (quem o faz é o Partido A Linke) no local. Neste ano a abertura foi feita por uma senhora de 101 anos que testemunhou a loucura daqueles dias.

No centro da praça há um monumento, planejado pelo artista israelense Misha Ullmann, que consiste numa placa de vidro transparente colocada no chão. Sob ela veem-se estantes brancas e vazias. Ao lado, uma frase em bronze do poeta alemão Heinrich Heine, que também teve seus livros ali queimados:

Das war ein Vorspiel nur, dort
wo man Bücher verbrennt,
verbrennt man am Ende auch Menschen.

A frase pode ser resumida como:

Ali onde se queimam livros
Se termina por queimar também seres humanos.

Uma frase profética.

Depois disso, caras leitoras e caros leitores, façamos um brinde à vida, aos livros, à inteligência, e aos bravos (inclusive, com certeza, os alemães) resistentes que ajudaram a extirpar o nazismo. Embora, como um vampiro, ele não tenha de todo morrido.

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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés. Ambos estão à venda na Livraria da Travessa e na Gato Sabido pela metade do preço dos livros impressos.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o  Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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