O enigma do precariado e a nova temporalidade histórica do capital – Parte 1

Por Giovanni Alves.

Na medida em que incorpora o fetichismo da mercadoria, o capital como modo estranhado de controle do metabolismo social, permeia o mundo social com enigmas e mistificações que nos provocam. Por isso, a necessidade hoje, mais do que nunca, da consciência crítica capaz de apreender, com radicalidade dialética, processos sociais que surgem na nova temporalidade histórica do capital. Na verdade, no decorrer dos “trinta anos perversos” (1980-2010) de capitalismo global, o neopositivismo e o pós-modernismo debilitaram a consciência crítica dos intelectuais, principalmente nos países capitalistas mais desenvovidos, onde o poder da ideologia tendeu a ser maior, impedindo, deste modo, a percepção clara do significado radical de enigmas que permeiam o capitalismo global. Um deles é o enigma do precariado, a nova camada social da classe do proletariado que se manifesta hoje, com intensidade e amplitude, nos países capitalistas centrais.

Deve-se entender primeiro o precariado como sendo uma camada social da classe do proletariado tardio. Trata-se, portanto, de uma camada social e não de uma classe social, como alguns autores parecem sugerir (por exemplo, Guy Standing, autor de The precariat – The new dangerous class, Bloomsbury Academic, 2011). O surgimento e ampliação do precariado nos países capitalistas mais desenvolvidos (União Europeia, EUA e Japão), dá visibilidade à explicitação universal da condição de proletariedade como condição existencial de homens e mulheres que vivem sob a ordem burguesa tardia.

A “condição de proletariedade” designa a condição existencial objetiva historicamente constituída pelo modo de produção do capital e no interior da qual pode (ou não) se constituir o sujeito histórico de classe. A condição de proletariedade é uma categoria social descritiva dos atributos existenciais das individualidades pessoais de “classe” subsumidas ao modo de produção capitalista. A condição de proletariedade é constituida por uma série de atributos histórico-existenciais que se disseminam pela sociedade burguesa: subalternidade, acaso e contingência, insegurança e descontrole existencial, incomunicabilidade, corrosão do caráter, deriva pessoal e sofrimento. Podemos destacar ainda outros traços histórico-existenciais como risco e periculosidade, invisibilidade social, experimentação e manipulação, prosaísmo e desencantamento.

Estar imerso na condição existencial de proletariedade não significa necessariamente pertencer à classe social do proletariado, mas apenas ser proletário, ou seja, ser homem e mulher da “multidão” que pertence à “classe” do proletariado (com aspas). A “multidão” designa o contingente de individualidades pessoais imersas na condição de proletariedade. A “multidão” expressa o ser-aí (dasein) de homens e mulheres reduzidos objetivamente à condição de alienação/estranhamento social. A “multidão” se constitui como classe “em-si” ou “para si” quando se organiza, resiste e luta, em si e para si, como sujeito histórico de classe capaz de mudança social contra a condição de proletariedade. A constituição do “em-si” e “para-si” da classe percorre um longo (e complexo) continuum que vai da contingência à necessidade histórica.

Além de dar visibilidade candente à condição de proletariedade como condição existencial universal no mundo social do capital em sua fase de crise estrutural, o surgimento e ampliação do precariado expõe a verdadeira natureza da crise estrutural do capital, isto é, a contradição radical entre desenvolvimneto das forças produtivas e irrealização estrutural das promessas civilizatórias do capital. O que significa que o precariado é a expressão social suprema do fenomêno do “estranhamento” (na acepção de Lukács). Para o filosófo húngaro o “estranhamento” ocorre na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho, ou da capacidade humana em reduzir as barreiras naturais, não propiciam o desenvolvimento da personalidade humana, mas sim, pelo contrário, seu aviltamento e dilaceração em virtude da manipulação de alta intensidade e amplitude que caracteriza o capitalismo tardio.

O precariado é a “multidão” da era do capitalismo pós-moderno que incomoda as classes dominantes do Primeiro Mundo. Sob a crise do capitalismo global, a “multidão” do precariado surge com mais intensidade e amplitude na semi-periferia do núcleo orgânico do sistema mundial do capital (por exemplo, Portugal, Espanha, Itália e Grécia, onde se explicitam com vigor as contradições mais candentes da ordem burguesa). Na verdade, poderiamos dizer que em países como Portugal e Espanha, encontramos os casos mais extremos de manifestação social do precariado na década de 2000. Por exemplo, a manifestação da “geração à rasca” ocorrida em Lisboa em 12 de março de 2011, reuniu cerca de 300.000 jovens, homens e mulheres protestando contra a precariedade social. A manifestação da “geração à rasca” nos idos de março de 2011 tornou-se um momento exemplar, fugaz e precioso, de desvelamento da “multidão” do precariado português. Assim, em Portugal, ao mesmo tempo em que aumentou, na década de 2000, o contingente de jovens altamente escolarizados, cresceu pari pasu, a camada social de trabalhadores precários (em 2010 cerca de 54, 6% dos trabalhadores assalariados na faixa etária dos 15 a 24 anos, possuíam vinculo laboral precário, isto é, contratos de trabalho a termo, trabalho temporário ou ainda “falsos” recibos verdes, uma modalidade de contratação laboral como “autônomo”, só que sem nenhum direito trabalhista). A “flexibilização” do emprego nestes países da semi-periferia europeia visa reduzir os custos do fator trabalho, o que é visivel nas diferenças de rendimento entre trabalhadores sob contrato permanente, não permanente e temporário. A crise financeira de 2008 e as políticas de austeridade neoliberal só aceleraram o declínio da “classe média” assalariada, expondo a proletariedade extrema de jovens-adultos homens e mulheres inseridos na nova precariedade salarial.

O precariado é constituído por jovens-adultos altamente escolarizados, desempregados ou possuindo vínculos de trabalho precários. Ele se distingue de outras camadas sociais da classe do proletariado como, por exemplo, a camada dos trabalhadores assalariados “estáveis”, em sua maioria organizado em sindicato ou organizações profissionais e que têm acesso a benefícios e direitos trabalhistas, além de perspectiva de carreira e consumo. O precariado se distingue também da camada social dos trabalhadores assalariados precários de baixa escolaridade e pouca qualificação profissional que caracterizou amplamente o proletariado industrial e de serviços no século XX. Finalmente, podemos dizer que o precariado se distingue também da camada social dos trabalhadores assalariados adultos com mais de 40 anos, com alta qualificação profissional, desempregados ou inseridos em vínculos de trabalho precários.

Deste modo, o precariado possui uma delimitação precisa, isto é, são constituidos por jovens-adultos – na faixa etária dos 20-40 anos – altamente escolarizados e “pobres” na acepção convencional, isto é, objetivamente inseridos em estatutos salariais precários. Portanto, eles são jovens-adultos, cultos e pobres: eis os traços distintivos dos homens e mulheres assalariados que constituem a camada social do precariado. Por serem jovens-adultos altamente escolarizados, eles possuem uma carga de expectativas, aspirações e sonhos de realização profissional e vida plena de sentido.

Preferimos utilizar o conceito de “precariado” ao invés do conceito de “infoproletários” para caracterizar a nova camada social do proletariado tardio que se amplia nas condições da precarização estrutural do trabalho que caracteriza o capitalismo global. Consideramos que o termo “infoproletários” possui viés tecnologista na medida em que tende a demarcar (pelo prefixo “info-”) a inserção de classe do novo (e precário) mundo do trabalho pela organização tecnológica do trabalho. Ao contrário, preferimos demarcar as novas camadas proletárias pelas relações de trabalho baseadas em contratos salariais precários. As novas relações de trabalho que surgem no capitalismo global sob a vigência do trabalho flexível, caracterizam-se por formas de contratos salariais precários, modos de remuneração e jornada de trabalho flexíveis que alteram o metabolismo social de homens-e-mulheres-que-trabalham. É o sociometabolismo do trabalho precário de cariz flexível que constitui a natureza da nova camada social do proletariado: o precariado.

Na medida em que os ditos “precários” são filhos da “classe média”, vindo, em sua maioria, de ambientes familiares cujos pais eram ou são trabalhadores assalariados estáveis do setor público ou privado, ativos ou aposentados; ou mesmo profissionais liberais e pequenos proprietários, o precariado expressa, em si e para si, a crise e decomposição da “classe média” considerada, outrora, lastro social e político do capitalismo social-democrata. Por outro lado, enquanto filhos da “classe média”, o precariado encontra-se “protegido” das intempéries da precariedade salarial, constituindo a “geração casinha dos pais”, como diz a canção “Parva Que Eu Sou”, dos Diolinda (“Se já tenho tudo, para que querer mais?”). O que significa que, muitos dos “precários” vivem até os 30 ou 40 anos na casa dos pais tendo em vista que, em sua maioria, não possuem autonomia financeira para terem sua casa própria e constituir familia (“Filhos, maridos, estou sempre a adiar”, como diz a canção). Ao serem amparados pelos pais, os ditos “precários” são beneficiários da dita “sociedade-providência”. Para o sociologo Boaventura de Sousa Santos, “sociedade-providência” é uma forma de capital relacional constituído pelas redes de relações de interconhecimento, de reconhecimento mútuo e de entreajuda baseadas em laços de parentesco e de vizinhança. Utilizando dados do European Social Survey de 2008, Boaventura de Sousa Santos observa que, de 110 inquiridos em Portugal que estavam desempregados e ativamente à procura de emprego, 62% tinham nos salários dos outros membros do agregado ou noutros rendimentos familiares a sua fonte de subsistência, contra 22% que viviam do subsídio de desemprego, 10% de pensões e 5% de outras prestações sociais.

Na medida em que são a “geração casinha dos pais”, os ditos “precários” não conseguem completar o ciclo de socialização da vida adulta tendo em vista que mantém laços de dependência familiares. A incompletude da socialização adulta dos “jovens-adultos flexíveis”, com o prolongamento do tempo de juventude, tende a ter implicações sociais, culturais e psicológicas sobre o modo de ser/estar “precário”. Na verdade, a perda da cidadania salarial fordista para amplos contingentes do mundo do trabalho sob o capitalismo global significou talvez a última etapa do processo de erosão do ideal de família burguesa constituído no pós-guerra. A erosão do ideal de familia “Papai Sabe Tudo” (Fathers Knows Best) – familia de “classe média” retratada na série homônima de TV norte-americana dos anos 1950, onde o homem era o provedor em torno do qual se organizava o núcleo familiar – começou efetivamente na década de 1960 com a entrada da mulher no mercado de trabalho. Ao tornar-se provedora, a mulher passou a disputar com o homem o papel hegemônico no espaço do lar. Mais tarde, com a expansão do precariado e a dificuldade de inserção no mercado de trabalho estável dos jovens-adultos filhos de “classe média”, aprofundou-se a crise do modelo familiar originário da civilização burguesa fordista.

Na medida em que são trabalhadores assalariados precários, isto é, não têm acesso a cidadania salarial, isto é, aos benefícios e direitos trabalhistas que caracterizaram o Estado de Bem-Estar Social do pós-guerra, os ditos “precários” encontram-se deslocados objetivamente – embora não subjetivamente – do horizonte de expectativas criado pela “miragem” social-democrata, isto é, a ideologia política sedimentada na ideia de conciliar capitalismo e bem-estar social. O precariado vive a experiencia do mal-estar da pós-modernidade (como diria Zygmunt Bauman).

Primeiro, a socialização pela educação como capital humano incutiu-lhe um horizonte de expectativas baseado na obtenção do diploma de curso superior, construção de carreira profissional a partir de emprego estável, com um rol de benefícios e direitos trabalhistas. Inclusive, a passagem para a vida adulta era alcançada com a obtenção do estatauto salarial formalizado pelo Estado social-democrata que garantia direitos trabalhistas e identidade de cidadania social e política. Portanto, a equação social que legitimava a democracia social burguesa no pós-guerra nos polos mais desenvolvidos do sistema mundial do capital era constituída pelo trinômio (1) educação superior (2) emprego/carreira profissional e, last but not the least, (3) consumo como ethos consumista.

Interessa-nos salientar como um aspecto importante da consciência social do precariado, a subjetivação de vínculo mercantil. Eles representam, em si e para si, a condição de “sujeitos monetários sem dinheiro”. O que significa que, no plano da consciência de classe contingente, a “multidão” do precariado tende a possuir uma consciência liberal – à esquerda ou à direita. Um detalhe: segmentos minoritários da camada social do precariado podem tornar-se, nas condições da crise estrutural do capital, esteios do “fascismo social”.

Na medida em que a “multidão” do precariado, em si e para si, encontra dificuldades objetivas para constituir o em-si da classe, tendo em vista que falta-lhes organização sindical capaz de representá-los nas instâncias políticas do sistema, diluindo portanto seu poder de barganha no plano corporativo, a própria classe social do proleteriado tende a se enfraquecer no plano social da luta de classes. Nas condições da metrópole capitalista, as dificuldades de passagem da “multidão” para “classe social” tornam-se candentes. Portanto, a ampliação da camada social do precariado nos países do capitalismo mais desenvolvido hoje, é sintoma do debilitamento radical da classe social do proletariado como sujeito histórico capaz de “negação da negação”. Por isso, a organização social e política do precariado constitui hoje tarefa fundamental para a formação da classe e luta de classes nas condições de crise do capitalismo global em seus polos mais desenvolvidos.

O caráter de subjetivação mercantil que caracteriza a camada social do precariado, com seus vínculos atávicos com a formação ideológica da “classe média” e sua “consciência tranquila” (como diria Marcuse), permite-lhes serem considerados efetivamente “sujeitos monetários sem dinheiro”. Por um lado têm a perspectiva da boa vida, que só o dinheiro pode permitir; por outro lado, não possuem capacidade aquisitiva suficiente capaz para realizar o ethos consumista disseminado na sociedade burguesa. Portanto, são demasiadamente suscetíveis à frustração com todas as implicações que isso possa acarretar. A “consciência tranquila” que caracterizou a “classe média” assalariada ou pequeno-burguesa do capitalismo fordista-keynesiano, interverte-se, no caso do precariado, na “consciência intranquila” de jovens-adultos frustrados com o sistema social da ordem burguesa neoliberal que não os reconhece como “cidadãos salariais”.

Na verdade, o crescimento da camada social do precariado nas condições da crise estrutural do capital expõe, de modo particular, a crise de reprodução social do capitalismo global no seu polo mais desenvolvido. É importante salientar que a crise estrutural do capital não se reduz à crise do modo de produção/acumulação de capital, mas significa também – e principalmente – crise estrutural do modo de controle estranhado do metabolismo social do capital, isto é, crise de sociabilidade que expõe os rompimentos dos laços de socialização constituído em cima das expectativas e sentidos da ação dos indivíduos sociais.

Portanto, o que a ampliação da camada social do precariado nos países capitalistas mais desenvolvidos explicita com vigor é que a crise capitalista é uma crise do capitalismo como horizonte de reprodução social, ou ainda, crise dos valores-fetiches que constituíram a ordem burguesa fordista-keunesiana. A ampliação da camada social do precariado expõe, deste modo, rupturas na estrutura ideológica (e política) de reprodução social da ordem burguesa. Constitui-se um horizonte de percepção crítica da ordem do capital que abala a coesão social que caracterizou as sociedades do Welfare State. O precariado como a “classe perigosa” que inquieta a ordem burguesa, expõe a seu modo, o horror da proletariedade que caracterizou outrora o surgimento do capitalismo industrial (com a diferença de que, por exemplo, o proletariado industrial de origem agrária que viveu a Primeira Revolução Industrial, não expressava sentimento de frustração ou indignação diante do “moinho satânico” do capitalismo industrial com seu factory system – o que ocorre hoje com o precariado).

Entretanto, por outro lado, o surgimento da camada social do precariado, a “classe perigosa” na acepção de Guy Standing, repõem, noutro patamar sociometabólico, a efetividade do fetichismo da mercadoria. No plano contingente, o precariado possui afinidades eletivas com a nova ordem do capitalismo manipulatório. Diante das rupturas (ou rachaduras) do metabolismo social da ordem burguesa tardia, surgem novos mecanismos de manipulação e reposição de “experiências expectantes” e valores-fetiches capazes de permitir a reprodução do capital em escala global. Ora, a crise de reprodução social é momento histórico de afirmação de novos valores-fetiches, sonhos e expectativas de mercado capazes de resignificar o controle estranhado do metabolismo social do capital. Deste modo, sob o capitalismo manipulatório com sua “sociedade em rede”, dissemina, numa proporção inaudita na história humana, o tráfico de sonhos e expectativas de mercados capazes de criar um novo horizonte de realização pessoal estranhado.

Nos últimos “trinta anos perversos” de capitalismo global, sob a nova temporalidade histórica do capital, ocorreu a troca espúria dos sonhos coletivos e utopias sociais que caracterizaram o movimento juvenil da contracultura nos anos 1960 no período de crise do fordismo-taylorismo, pelas utopias pessoais, expectativas e valores-fetiches de mercado disseminados pela ordem burguesa neoliberal. Nos locais de trabalho, a ideologia do taylorismo-fordismo deu lugar ao espírito do toyotismo como nova implicação subjetiva da manipulação do capital (manipulação de cariz efetivamente moral tendo em vista que se trata de elaborar implicações consensuais mediada por valores – os valores-fetiches).

Nas condições do capitalismo global, a garantia do emprego interverteu-se na mera empregabilidade. O precariado vive na era do neodarwinismo, ideologia tardo-burguesa que instiga, no plano social, o espírito de concorrência individual. A palavra de ordem no mundo neoliberal é competitividade. É pela concorrência no mercado que o homem burguês tardio, como autoempreendedor, se afirma como individualidade pessoal de classe.

Entretanto, o surgimento e afirmação dos valores-fetiches de mercado, que ocorreu sob o capitalismo global, com a hegemonia social do espírito do toyotismo, não derivou apenas do débacle do movimento social e político da contracultura com suas utopias coletivas ou derrota dos movimentos radicais de contestação da ordem burguesa nas lutas de classes dos anos 1960 e 1970, mas sim da crise estrutural do capital com a falência do modelo fordista-keynesiano de desenvolvimento capitalista e a erosão das promessas de realização pessoal das individualidades de classe por meio da equação educação-como-capital-humano, emprego-como-carreira-profissional e consumo-como-ethos-consumista.

Com a crise profunda da civilização burguesa fordista-keynesiana, colocou-se a necessidade sistêmica, no plano ideológico, de restaurar a eficácia do fetichismo da mercadoria. Deste modo, ocorreu a reposição do fetichismo da mercadoria e seu segredo. O espírito do toyotismo – que dissecamos no livro Trabalho e Subjetividade (Boitempo Editorial, 2011) – tornou-se hegemônico nos corações e mentes da geração do precariado. A geração Y tendeu a incorporar, em sua maioria, os valores-fetiches do individualismo liberal.

O poder da ideologia assumiu proporções inauditas na ordem burguesa tardia, operando principalmente no espectro moral-intelectual. É na frequência da moralidade (Sittlichkeit) que o capital como modo de controle do metabolismo social estranhado opera os consentimentos espúrios à ordem burguesa global (o que não significa que não haja reações contra-hegemônicas como, por exemplo, os movimentos sociais do precariado que, mesmo com seus limites ideológicos irremediáveis, buscam criticar, de modo coletivo, a ordem da precariedade salarial).

Nas condições da reposição do fetiche salarial, o discurso da empregabilidade e competitividade é disseminado. Na medida em que, no plano da consciência social contingente, a “geração precária” possui uma consciência liberal, tendo em vista que são plenamente “sujeitos monetários” que habitam a metrópole com seus templos de consumismo, a manipulação intensiva e extensiva na “sociedade em rede” e a própria condição salarial com seus vínculos empregatícios intermitentes, tornam-se obstáculos à formação em-si e para-si, da classe social do proletariado.

Deste modo, o precariado torna-se alvo privilegiado da manipulação insana e sutil que visa reciclar expectativas frustradas de carreira profissional. Na verdade, os trabalhadores precários de “classe média”, a “multidão” do precariado, é tendencialmente mais suscetíveis à manipulação do espírito do toyotismo. Eles nasceram na era da globalização neoliberal incorporando como horizonte de conduta moral, os valores da concorrência de mercado. Na medida em que são “sujeitos-mercadoria” da sociedade de serviços – o que explica a ideologia do autoempreendedorismo – e não propriamente “sujeitos-que-produzem-mercadorias”, no sentido dos proletários das sociedades industriais clássicas, o fetiche da mercadoria tende a aderir contingência de classe contingente. O homo precarius como “sujeitos monetários” tem aderido a si o fetiche da mercadoria com toda sua carga de intransparência social. Na ótica da “multidão” do precariado, o ideal da boa vida, que expressa o carecimento íntimo de vida plena de sentido, aparece não como projeto social de construção política, mas sim como construção individualista.

Portanto, eis um primeiro elemento do enigma do precariado: ele expõe o apodrecimento da ordem burguesa social-democrata. Com a crise estrutural do capital, o movimento de fetichização da ordem burguesa assumiu dimensões qualitativamente novas. Na medida em que surgem “rachaduras” no edifício da ordem burguesa, coloca-se com vigor, ao mesmo tempo, novos modos de implicação manipulatório no interior da própria subjetivação de cariz mercantil que caracterizou a formação do homem burguês. Nessas condições de socialização mercantil complexa, como salientamos acima, o poder da ideologia torna-se efetivamente voraz.

A crise da forma-mercadoria é, ao mesmo tempo, a necessidade da sua (re)afirmação como forma social no interior da qual ocorre, não apenas o desenvolvimento da produção/acumulação do capital, mas também o desenvolvimento do próprio metabolismo social como horizonte de possibilidades efetivas da práxis humana (a reafirmação da forma-mercadoria que ocorre a partir de sua crise estrutural, reforça, por exemplo, a ideologia liberal da presentificação histórica do capitalismo, isto é, na perspectiva da economia política do homem burguês, não existe nada para além – ou antes – do capitalismo; inclusive na ótica liberal, capitalismo tende a ser identificado com a ideia de mercado e, por derivação simbólica, com os ideias de liberdade individual).

Na ótica liberal, não existe nada para além do capitalismo, a não ser o próprio capital em sua forma arcaica (as experiências pós-capitalistas do século XX). No princípio, era o homem burguês – eis o diz o livro dos Gênesis do capital. Esta é a perspectiva epistemológica e moral da economia política tão criticada por Marx. A presentificação histórica do capitalismo tal como operava a economia política é a versão clássica (e elegante) da presentificação crônica que entorpece o precariado sob o capitalismo manipulatório.

No caso dos ditos “precários”, a percepção estranhada de perda do futuro os projeta, no plano da contingência, na “presentificação crônica” do metabolismo social do capital. Ideologicamente, na sua consciência contingente, incorporam a presentificação histórica do capitalismo posta pela consciência liberal.

Na verdade, nas condições do poder da ideologia e da constituição da “multiudão” do precariado, coloca-se hoje, mais do que nunca, a necessidade radical da luta ideológica que, num mundo social do trabalho precário, torna-se mais candente tendo em vista a exacerbação da manipulação como modo de afirmação do capital como sociometabolismo estranhado.

A “carência de futuridade” expressa por muitos jovens-adultos “precários” no documentário Precários Inflexivéis (praxis video, 2012) [veja o trailer abaixo], expõe, com vigor, um elemento de desefetivação do ser genérico do homem, ou seja, uma das principais características do fenômeno do estranhamento. Nossa hipótese é que, sob a nova ordem burguesa tardia, diminuiu a composição organica do ser genérico do homem na mesma medida em que aumentou a composição orgânica do capital. Este é um aspecto candente do sociometaboismo da barbárie que tratamos em artigos anteriores. É o que trataremos no próximo artigo, buscando desvelar as dimensões do enigma do precariado e a nova temporalidade histórica do capital.

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O livro mais recente de Giovanni Alves, Trabalho e subjetividade (Boitempo, 2011) já está à venda também em formato eletrônico (ebook) nas lojas da Gato Sabido e Livraria Cultura.

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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

Em 2012, dirigiu o curta-metragem Precários inflexíveis. Confira abaixo uma prévia do filme:

1 comentário em O enigma do precariado e a nova temporalidade histórica do capital – Parte 1

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    O desvelamento do enigma do precariado por Giovanni Alves. Terceira parte.

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