Casa paterna
Tenho em casa uma fotografia amarelada pelo tempo. É o mais antigo registro da secular família do meu avô paterno. No verso, numa caligrafia bonita, ele anotou uma dedicatória ao parente distante. No final, registra o ano da pose fotográfica: 1937.
Ali está a família reunida na véspera de uma festa. Reconheço em sérios semblantes algumas tias já adultas e dois tios, ainda crianças. Um quadro incompleto. A maioria estava longe, muitos haviam sumido em busca de seus destinos pelo mundo.
Sinto a falta, entre as mulheres, de tia Nanã, que há pouco realizara seu casamento. O pai, o mais velho dos homens, já vivia pelas minas do Mimoso, à procura de cristal de rocha e pedras preciosas. O tio Preto, assim apelidado devido a coloração mais escura de sua pele, também seguira as mesmas trilhas do garimpo, mas contam que infernizava a todos pelo vício nos jogos de azar. Na mesma época, o tio Olegário já havia partido para o Rio de Janeiro, fascinado pelo futuro na então Capital Federal, e para onde seguiria, depois, também o tio Deco. A velha foto mostra que, pouco a pouco, a família ia se fragmentando, com cada filho criando asas após a fase adulta.
Um relatório do Eurostat, o instituto de estatísticas da União Europeia, revelou há algum tempo o que vem mudando em relação à família. Os jovens europeus relutam em deixar o colo da mamma. Segundo o escritor italiano, Piero Citati, eles pertencem a uma geração de eternos adolescentes, que não têm pressa nem interesse em crescer e, ao contrário de seus avós, não querem se tornar adultos tão cedo. Na verdade, retardam o mais que podem o abandono da casa paterna e o casamento.
Os italianos são campeões no chamado mammismo. Em 1987, 60% dos rapazes e moças continuavam a viver – na maioria dos casos, economicamente independentes – na casa dos pais. Oito anos depois, em 1995, aquela porcentagem havia crescido bastante: 71% dos jovens italianos passaram a considerar desnecessário e pouco interessante viver por conta própria, ou seja, longe da saia da mãe.
Também no Brasil, a casa dos pais virou refúgio seguro. Antes, sair de casa aos vinte anos era obrigação. Hoje, seja pela acomodação da juventude ou pelo funil cada vez mais estreito no mercado de trabalho, mudou a situação.
A primeira vez que deixei a casa paterna tinha quinze anos. Por um longo ano, morei no Rio de Janeiro. Desempregado a maior parte do tempo, foi difícil a distância do lar. No retorno, minha mãe chorou ao ver filho magro com cara de faminto. Realmente abatido, por dois meses caminhei solitário pelas margens do rio Aipim, tentando resgatar a tranquilidade perdida.
A partir daí, chegou o medo. Embora sentisse necessidade de romper os laços com a casa paterna, vinha o receio de encontrar os mesmos obstáculos da primeira viagem. Sofria. Quando imaginava a visão da cidade grande, sentia calafrios e vinha o temor de desistir nos primeiros dias.
Em 1970, depois de dar baixa do Exército em Salvador, finalmente decidi viajar para São Paulo. No ônibus, nos caminhos de Minas e Bahia, sentia temores e tremores. Muitos anos depois, sou capaz de concordar com os jovens. Já superei a casa dos sessenta anos, mas ainda mantenho a intuição de um adolescente de quinze que adora raspar os fragmentos do doce de leite preparado pela mãe numa panela de cobre, no calor fumegante do fogão a lenha.
***
Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, Minas Gerais, em 1949. Vive em São Paulo desde 1970. Entre outros livros, publicou Sabor de química (Prêmio Escrita de Literatura 1976); Crônicas da vida operária (finalista do Prêmio Casa das Américas 1978); O pavão misterioso (finalista do Prêmio Jabuti 2000); Paragens (edidado pela Boitempo, finalista do Prêmio Jabuti 2005); O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e Contos Antológicos (2009). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
Bela crônica.
CurtirCurtir