De bar em bar XIV: Lugar de falar mal do governo

Por Mouzar Benedito.

Logo depois da ponte de Pinheiros para o Butantã, no final dos anos 1970, havia vários botecos do tipo sujinho. De vez em quando algum virava moda para os estudantes, sem motivo nenhum. A cerveja era gelada como nos botecos vizinhos, as cachaças eram as mesmas, os preços eram iguais e os tira-gostos também. E tinham um inconveniente: fechavam relativamente cedo, uns às onze da noite, outros à meia-noite e outros, pouco depois.

Foi num boteco desses que discuti certa vez com um grupo de paulistas — no meio dele, um carioca morando em São Paulo — que tinha inveja de uma coisa do Rio de Janeiro, fora as praias: as casas de sucos de frutas. No Rio, essas casas já eram comuns nos anos 1970, enquanto em São Paulo quase não existiam. Tomava-se, sim, suco de laranja (principalmente) em botecos comuns. Mas não casas com sucos naturais de goiaba, manga, caju, maracujá e muitas outras frutas, na época feitos da própria fruta mesmo e não de polpa congelada. Eu gostava de suco, mas tinha uma crítica às casas de suco: nelas não se falava mal do governo. O freguês entrava, tomava um suco e saía, quase sempre sem falar com ninguém.

— Falar mal do governo é tomando cachaça ou cerveja, em boteco — dizia eu. — Por isso, acho os botecos muito mais saudáveis do que as casas de suco de frutas.

Ninguém concordou comigo. Quando morei no Rio, repetia meus argumentos sobre o assunto e eles eram sempre repelidos como maluquices. Até que um dia o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crônica, acho que no Jornal do Brasil, falando exatamente as coisas que eu falava. Aí o argumento ganhou crédito e eu passei a ser visto como um plagiador do Drummond.

Mas, voltando aos botecos do Butantã, uma vez encontrei o Mendes num deles. Era um velho amigo piauiense que eu não via há tempos e tínhamos muita coisa pra conversar e muita sede pra beber. No tempo em que trabalhamos juntos eu dizia que ele era o cara mais feio do mundo e o comparava com coisas feias “tradicionais”, como mudança de pobre, rascunho do mapa do inferno, briga de foice no elevador, praga de mãe e briga de irmãos por causa de mistura, além de outras feiuras inventadas por mim. Ele dizia que o mais feio era eu. Em alguns meses, arrumei mais de trezentos de feiura para ele e ele arrumou outros tantos para mim. E admito: no final, ele venceu, dizendo que eu era mais feio do que resto de sarapatel. Caí na risada e me considerei derrotado!

Desta vez falávamos de outros assuntos. De repente, só estávamos nós no bar e o dono avisou que aquelas duas doses de cachaça e aquela cerveja seriam as últimas bebidas que nos serviria. Tinha que fechar. Bebemos e saímos procurando outro boteco. Achamos um que estava fechando também. Foi o tempo de tomar uma dose de pinga e uma cerveja. E fomos fechando todos os botecos. Parecia que não tinha mais nenhum aberto, era tarde, até o Rei das Batidas tinha fechado. Mas vimos depois dele, do outro lado da avenida, uma porta larga aberta, com o interior todo iluminado. Corremos para lá, cambaleando, pra chegar antes que ele fechasse também. Entramos correndo e o Mendes já gritando:

— Duas pingas e uma cerveja, por favor.

O rapaz de dentro do “balcão” respondeu com cara de espanto:

— Ô, moço, aqui nóis vende é passagem de ônibus — era o ponto de parada dos ônibus que iam para o sul do país.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

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