Crônicas de Berlim (12): Crônica de uma pancadaria anunciada

Manifestações em Berlim durante o 1º de maio (foto de Fabrizio Bensch/Reuters)

Por Flávio Aguiar.

Em Berlim, 1º. de maio é dia de passeata, festa, muita cerveja… e pancadaria para encerrar o dia.

As comemorações começam relativamente cedo. Às nove da manhã a Central Sindical Alemã, Deutscher Gewerkschaftsbund (DGB) Bundesvorstand, começa sua concentração. Essa se realiza sempre em frente a um dos prédios da Central na capital. Neste 1º. de maio de 2012 ela ocorreu na Hackescher Markt, um dos bairros antigamente de concentração de judeus e de trabalhadores. É um dos espaços privilegiados no romance Berlin, Alexanderplatz, de Alfred Döblin, de leitura obrigatória. Publicado em 1929, o romance teve duas versões cinematográficas, uma de Piel Jutzi, de 1931, e outra, hoje mais famosa, de Werner Fassbinder, feita primeiro para uma série de TV, em 1980, e que tem 15 horas de duração.

De lá, como sempre, ela seguiu em passeata para o Brandenburger Tor, onde já a esperava uma coorte de barracas de cervejas e acepipes, com sua corte de cultuadores que cortaram caminho e foram direto para a festa. Segundo organizadores, 10 mil pessoas participaram do festejo.

Esta é a manifestação tradicional, bem comportada e que teve, como palavra de ordem deste ano, “bons empregos para a Europa”, com “salários justos” e “segurança social”. Sinal dos tempos: a Organização Internacional do Trabalho, em seu relatório de 2012, publicado dias antes do 1º de maio, denuncia que, junto com o Oriente Médio e a África, a Europa é hoje um dos lugares de maior insegurança para os empregos dos trabalhadores no mundo, ao contrário da América Latina, apontada como um bom exemplo. O tempora, o mores…

Lá vão sindicatos tradicionais, como o IG Metall (o dos metalúrgicos), e a manifestação tem um ar geral social-democrata. Muitas crianças, muitos idosos, alguns comunistas de velha cepa, e por aí vai.

À tarde, enquanto prossegue a festa social-democrata em frente ao portão-símbolo de Berlim, começa outra manifestação, desta vez uma festa alternativa no bairro de Kreuzberg, tradicional ponto de concentração dos imigrantres turcos. Talmbém há muita festa, muita cerveja, muita Wurst (salsicha), pratos turcos, árabes, muita caipirinha brasileira rolando. Quando vim para Berlim pela primeira vez, além de raríssima em restaurantes e bares, uma caipirinha podia custar mais de 20 marcos – hoje mais de 10 euros, pelo valor de troca estabelecido pelo Banco Central Europeu. Contudo, hoje elas estão em toda a parte. Antes de ontem, na festa, a gente podia comprar duas por 5 euros, mais ou menos R$ 12,50, ou seja, o preço de uma em muito bar e restaurante de São Paulo, pelo menos. E se a gente quiser tomar uma no aeroporto, nem é bom falar… Vá lá: as capirinhas daqui são mais aguadas, as que se espremem por aqui não se espremem como lá. Mas têm padrão de qualidade: a prática germânica, por exemplo, não admite outros ingrediantes que não sejam a pinga brasileira, e os limões taiti (aqui ditos Limetten) importados do Brasil. Limões amarelos (os Zitronen), rum, vodka, kiwi, nem pensar…

Esta é a festa dos alternativos. A esmagadora maioria dos presentes é composta por jovens, bicho-grilos, punks, é orelha e beiço furados para todo lado, tatuagens as mais loucas, cabelos verdes, vermelhos, roxos, e milhares e milhares de gentes. É impossível calcular o número: falam em 50 mil. Pode ser, ou mais, porque a festa se espalha pelo bairro inteiro.

O olho treinado logo percebe também, às ocultas, os milhares de policiais que guarnecem a festa. Por quê? Porque tradicionalmente, também, ela se encerra com uma passeata – a do “1º de maio revolucionário”, que, invariavelmente, termina em pancadaria. Invariavelmente? Invariavelmente. Todo mundo já sabe, os da passeata, os assistentes, a polícia.

Normalmente, a passeata se organiza a partir da estação de metrô de Kottbusser Tor, bem na “entrada” do bairro, se é que bairro tem entrada. Dessa vez, no entanto, anunciaram um outro ponto de concentração, a Lausitzerplatz, mais adiante, seguindo a linha do metrô. Só depois fui entender o porquê. Por quê? Porque o novo lugar era de todo mais inconveniente para uma concentração: praça mais atravancada, ruas mais estreitas, enfim, se eu fosse organizar uma concentração, como nos velhos e idos tempos de 1968, jamais escolheria um lugar como aquele.

Mas enfim, lá pelo começo do fim da tarde, como de costume, principiou a concentração. Havia um ar de irritação geral no ar, talvez provocada pela quantidade de cigarros fumados de parte a parte. Os policiais fardados não fumavam, mas os em civil sim. A linha de frente da passeata que se ia formando também era uma chaminé em plena atividade. Entre ambas as linhas – os policiais à paisana que parlamentavam e a linha de frente da passeata – corria uma chusma de “go-betweens”, que falavam sem parar com uns e outros. A gente via que algo estava sendo combinado, ou pelo menos mensagens corriam de um lado para o outro continuamente.

De passagem para a frente da passeata, cujo começo, como de tradição, eu queria ver, observei que não havia, nas ruas, policiais tradicionais, que se vestem sempre de verde. Dessa vez não. Havia praticamente apenas uniformes pretos, da tropa de choque. E disfarçados por ruelas e vegetação, meu Deus, havia policial que não acabava mais!

Do lado dos manifestantes, os mesmos rituais de sempre. Vestidos de preto, a maioria com capuzes do tipo chapeuzinho vermelho, óculos escuros desses que nada deixam ver, alguns já de lenço no rosto ou no queixo, a maioria afeta um ar nervoso de grandes decisões. Olhares fixos, daqueles que antecedem as grandes batalhas. Uma enorme faixa, à frente, cobre-lhes os corpos e nos mais das vezes os rostos. Tudo muito elétrico.

Havia razão de ser para tanta eletricidade. Na noite anterior, 30 de abril, conhecida como “A Noite de Walpurgis”, um ensaio de pancadaria geral ocorrera no bairro de Wedding, durante uma concentração contra o aumento do preço dos aluguéis em Berlim. Houve confronto com a polícia, quebra-quebra, pedradas e bombas de gás lacrimogênio, essas coisas.

Além disso, nas convocações pela internet, as várias organizações promotoras anunciavam que dessa vez pretendiam chegar ao Reichstag, ou seja, à chamada Regierungs Platz – a Praça do Governo. Sei de antemão que muitas dessas organizações pequenas sonham em invadir o Reichstag. Cá com meus botões sempre penso que a única vez em que o Reichstag foi invadido foi em 1945, e pelo glorioso Exército Vermelho, ao custo de uma Segunda Guerra Mundial, um Holocausto e outros milhões de mortos de parte a parte. Mas enfim, vamos em frente.

Essa lembrança só me serviu para dar a certeza de que a manifestação jamais chegaria lá. Seria detida no meio do caminho. Mas onde? E como? E por quê?

Eis que no meio das minhas cogitações, a passeata começou! Foi de repente, no meio de um discurso que alguém fazia. E a turma se foi, faixa à frente, aos gritos de “anti-capitalista”, “anti-fascista”, “internacional”, e outros mais. Saíram caminhando sob a linha do metrô, que nessa altura é de superfície.

Como já sei o que vai se passar, como D. João VI fiz uma retirada estratégica para o alto do metrô, depois de caminhar até outra estação. Não sem antes ver que, num edifício em reforma ao lado da linha, alguns manifestantes que lá tinham subido jogavam fogos de artifício. Um deles colocara uma luminária de fumaça a pleno vapor e dois outros agitavam bandeiras vermelhas. Era tudo igual à famosa foto da tomada do Reichstag! Que, portanto, afinal fora retomado, depois de invadido!

Mas deslizando pelo alto do metrô em movimento, descortinei porque a concentração fora deslocada para outro local: é que dessa vez quem se concentrara, aos milhares, em Kottbusser Tor fora a polícia de choque! “É aqui”, pensei, “que a manifestação vai ser detida”.

Como? Ora, depois de caminharem ao longo da linha de metrô, ao chegarem em Kottbusser Tor, alguns manifestantes investiram a pedradas contra uma agência de banco, quebrando-lhes os vidros da frente. Foi a senha: os policiais de desataram, investiram, voaram coquetéis molotov, bombas de gás, pedras, vidros se estilhaçaram e a manifestação se dissolveu algum tempo depois. Poucas prisões, alguns feridos (poucos, felizmente), nenhum óbito.

Então eu compreendi. Para não seguir adiante, a manifestação tinha de ser detida em Kottbusser Tor. Seria o que passaria naquelas conversas nervosas, movidas a fumaça de cigarro, na linha de frente pré-passeata? Haveria alguma infiltração que estimulasse o grupo das pedras a investir contra a agência de banco na Kottbusser Tor, onde estava a massa dos policias? Segundo a mídia, havia 10 mil manifestantes na passeata e sete mil policiais: um número equilibrado, pensei.

Não tenho muita simpatia pelos movimento desses jovens que acorrem a esse tipo de passeata em que o confronto já está previsto e organizado de antemão. Minha expectativa é a de que daqui a alguns anos um grande número deles esteja à frente de grandes empresas – ou atrás – lembrando os doces anos da juventude, quando faziam estrepolias.

Além disso, não posso refutar o sentimento de que, olhando os arranjo dos acontecimentos a posteriori, fora tudo germanicamente cronometrado demais. É impossível que os organizadores não soubessem que a massa dos policiais estava onde de fato estava. E era impossível que essa massa fosse ali concentrada sem a expectativa de que ali algo aconteceria, que jutificasse a intervenção.

Enquanto seguia para casa, ia pensando: “neste ano, no entanto, os danos e confrontos foram menores. Essa é uma tendência. A cada ano, eles diminuem um pouco”.

Mas depois pensei, diante do arranjo que se fizera, proposital ou por acaso: “Mas o confronto jamais terminará. Se um dia os organizadores cancelarem essa passeata, ou impedirem o quebra-quebra, a polícia certamente mandará prendê-los. Por violação das tradições, desacato à autoridade e ameaça à ordem constituída”.

E fui pra casa.

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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés. Ambos estão à venda na Livraria da Travessa e na Gato Sabido pela metade do preço dos livros impressos.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o  Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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