O trabalho da memória

Por Ruy Braga.

“Como se sabe, era vedado aos judeus perscrutar o futuro. A Torá e a oração, em contrapartida, os iniciavam na rememoração. Essa lhes desencantava o futuro, ao qual sucumbiram os que buscavam informações junto aos adivinhos. Mas nem por isso tornou-se para os judeus um tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia entrar o Messias.”

Walter Benjamin, Teses sobre o conceito de história (1940)

Há duas semanas, momentos antes do início da primeira prova de meu curso de graduação na Universidade de São Paulo (USP), fui procurado por uma estudante visivelmente abalada, alegando não ser capaz de participar da avaliação. Perguntei-lhe qual o motivo da angústia? Prontamente, ela apresentou-me um documento que a intimava a defender-se no processo movido pela universidade contra os 73 estudantes presos pela Polícia Militar durante a última ocupação do prédio da reitoria. Havia acabado de ser notificada. Prontifiquei-me a testemunhar a seu favor naquele processo. Agora, ela corre o risco de ser eliminada do quadro discente da universidade, sem direito de retornar por meio de um novo vestibular. Uma punição tão draconiana e despropositada que somente poderia se apoiar em um regimento da época da ditadura militar.

Não causa espanto que um reitor que já recebeu a medalha de mérito Castello Branco da Associação Campineira de Oficiais da Reserva do Exército tenha decidido aplicar, em 2012, o regimento disciplinar dos anos de chumbo sobre os estudantes da USP. Afinal, ao contrário de seus vizinhos latino-americanos, o Brasil é um país que ainda não acertou contas com os atos de terrorismo de Estado praticados contra aqueles cujo único “crime” foi desafiar um regime político monstruoso e ilegítimo.

Confesso que minhas esperanças de, finalmente, assistir à punição exemplar dos responsáveis pelos crimes da ditadura militar evaporaram-se com o atual impasse sobre a Comissão da Verdade. Excessivamente ampla em seus objetivos e carente de recursos investigativos, desde o início pareceu-me uma iniciativa totalmente incapaz de fazer justiça às inúmeras vítimas do autoritarismo no país. Mas, se ao menos esta comissão fosse capaz de estabelecer por intermédio de investigações sérias as bases para um amplo debate entorno da necessidade de revisitarmos o passado a fim de varrer o entulho autoritário brasileiro, já teria valido a pena.

Nem isso… Se fosse arriscar uma previsão, diria que, mesmo dirigido por uma ex-presa política, o governo continuará acobertando, sob o pretexto da Lei da Anistia, aqueles crimes. Desgraçadamente, os sucessivos governos petistas não tomaram a necessária tarefa da punição dos terroristas de Estado à sério. Após desempenhar um papel progressista na luta contra a ditadura, a burocracia lulista enredou-se na função oposta, diretamente saída de sua incondicional capitulação ao Estado brasileiro: acobertar os crimes dos militares, impedindo que os arquivos da ditadura sejam abertos. Evidentemente, o atual governo cede à pressão das camarilhas reacionárias existentes dentro e fora das forças armadas por meio da esterilização da Comissão da Verdade.

Pois bem, se nem o governo de Dilma Rousseff mostrou-se seriamente comprometido em enfrentar o entulho autoritário brasileiro, é natural que um reitor que, em 1997, negou a participação do Estado na morte da estilista Zuzu Angel, sinta-se suficientemente confortável para apropriar-se de meios autoritários, como o estúpido regime disciplinar da universidade, a fim de perseguir estudantes e funcionários – ainda que, nesta última ocupação, estivessem politicamente equivocados. Na realidade, trata-se apenas de mais uma demonstração de que, apesar de relativos avanços nas últimas décadas, o Brasil continua sendo um verdadeiro exemplo de democracia para os ricos e uma autêntica ditadura para os subalternos.

O atual projeto de universidade pilotado pelo reitor João Grandino Rodas encaixa-se à perfeição num regime de produção de ciência engajado na reprodução deste autoritarismo: decisões tomadas à revelia da comunidade acadêmica, bloqueio de qualquer possibilidade de diálogo com as forças sociais democráticas, perseguição de sindicatos – inclusive com a recente tentativa de intimidação da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) –, demissão de funcionários, banimento de estudantes, “arapongagem” de assembleias… Este projeto ameaça algo de fundamentalmente valioso para qualquer universidade digna do nome: a capacidade reflexiva, sem a qual, estaremos sempre condenados à passividade.

Contra este projeto instrumental e autoritário de universidade, entendo que as forças democráticas da USP precisam rememorar as lutas passadas. Como diria Walter Benjamin, exatamente porque enraizada em uma série descontínua de eventos em que a reprodução do mecanismo da dominação foi desafiada, a tradição dos oprimidos exige esta rememoração. Isto supõe que não devamos aceitar o conveniente esquecimento dos sacrifícios daqueles que combateram um regime mostruoso e ilegítimo. No entanto, estou convencido de que a punição dos crimes da ditadura militar ocorrerá apesar das autoridades governistas – e não devido a elas. Ou seja, apenas por meio de uma ampla mobilização de forças progressistas e democráticas seremos capazes de desafiar o autoritarismo enraizado na estrutura social brasileira. Um autoritarismo tão resiliente que após quatro décadas ainda vertebra o código disciplinar da principal universidade brasileira.

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Dois livros organizados por Ruy Braga e publicados pela Boitempo já estão à venda em versão eletrônica (ebook): Infoproletários: degradação real do trabalho virtual (2009, em coorganização com Ricardo Antunes) e Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira (2010, em coorganização com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek). Ambos podem ser comprados na Livraria Cultura e Gato Sabido, pela metade do preço do livro impresso.

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (São Paulo, Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (São Paulo, Xamã, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

1 comentário em O trabalho da memória

  1. Na UNB sim tinham culhões, quando a ditadura perseguiu e fez demissões políticas de 15 docentes, outros 209 em vez de ficarem se cagando se demitiram em protesto.

    A universidade perdeu 79% do quadro docente !!! Só cagão da USP que não faz isso.

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