Paris, ah Paris…
As outras cidades que me desculpem, mas passei a Páscoa em Paris. Ah, Paris…
Paris é inesgotável. Não estou me referindo a turismo. Turismo é para quem gosta de ser peregrino sem religião: roteiros e nichos marcados, registrar o que já foi registrado de antemão, viver dentro do cartão postal. Tive uma experiência com o turismo: quis conhecer Versalhes por dentro. Eu e mais um milhão de pessoas ao mesmo tempo.
Impossível. Desisti, fui embora. Troquei a visita por um almoço num restaurante familiar próximo (e barato!).
Paris é para viajantes. Viajante é aquele que se transforma com a viagem, que vai atrás do inusitado, do desconhecido. Tenho dois modelos de viajantes. Um é o Erico Verissimo de Gato preto em campo de neve e México. O outro é o personagem Goldmund, de Narciso e Goldmund, o romance de Hermann Hesse.
No primeiro de seus grandes livros de viagem (Gato preto…), Erico vai aos Estados Unidos às vésperas da entrada desse país na Segunda Guerra Mundial. Dedica-se a um sem número de visitas a cidades e a entrevistas com grandes intelectuais do momento, como Thomas Mann, lá exilado. Na entrevista com Mann, encanta-se pela ideia de uma “social-democracia”. Não estou fazendo a apologia da social-democracia, mas sublinhando o fato de que Erico foi àquele país em busca de uma resposta íntima para grandes problemas do momento. A seu modo, encontrou.
No seu terceiro e penúltimo livro de viagem (México), um clássico do gênero, Erico vai a este país em busca de sua identidade. Ele estava em Washington, dirigindo o setor cultural da União Pan-Americana. Queria escrever a parte final de O tempo e o vento, O Arquipélago. Não conseguia. O excesso de ordem o sufocava, diria ele tempos depois em suas memórias (Solo de clarineta). Decide então ir ao México. Naquele tempo “América Latina” era um termo praticamente exclusivo para a hispânica. Erico foi para o México “apenas” brasileiro e voltou de lá “brasileiro e latino-americano”, assim, embrulhadamente. Seguia o dito do brilhante Alfonso Reyes, para quem todo intelectual latino-americano tinha duas pátrias: a sua e o México. Depois, nos anos 1960, seria necessário incluir Cuba. Naquela viagem Erico abriu uma senda que brasileiros e mais brasileiros passariam a percorrer.
Já Goldmund é o vaijante de um mundo (a Idade Média) que está perecendo, mas sem que se saiba ainda o que vai nascer. De certo modo corresponde a uma percepção de Hermann Hesse de seu país e de seu continente às vésperas da ascensão do nazismo e da Segunda Guerra Mundial. Goldmund entrega-se ao mundo e ao mundo de seus amores e sempre volta coberto de cicatrizes, por dentro e por fora, para os braços de seu amigo e professor Narciso, prior do convento onde estudou.
Mal comparando, é a sensação que uma visita por esses dias a Paris evoca. Há uma eleição no ar. Um reino – o de Sarkozy – estertora, a possível vitória de Hollande se aproxima. A esquerda, com Mélénchon, renasce das cinzas. Tudo é dúvida, numa Europa onde agora se queimam quadros num museu, em protesto pelos cortes das verbas públicas (aconteceu no sul da Itália).
A Europa de hoje era inimaginável uns tempos atrás. A Europa, como o mundo, está dividida em sul e norte. E tudo isso atravessa Paris de forma palpável e enigmática, ao mesmo tempo. Paris é intensamente multicolorida, étnica e culturalmente, talvez mais do que qualquer outra capital europeia. Num museu, dessa vez, fui visitar a cama onde Marcel Proust escreveu Em busca do tempo perdido. Ainda num cemitério, visitei o túmulo de Marie Alphonsine Duplessis. Quem é? A amante de Alexandre Dumas Filho que lhe inspirou a personagem conhecida como “A dama das camélias”. Tão forte foi essa passagem da vida real para a literatura que na relação de personalidades enterradas no cemitério (o de Montmartre) não consta nem Marie Alphonsine nem Duplessis, mas tão somente “La Dame aux Camélias”. Mas o que marca mesmo em Paris é seu eterno bulício de gente, e sua agitação permanente: Paris parece sempre estar pronta para rearmar as barricadas, as de 1789, de 1832, de 1848, de 1871, as do dia da libertação dos nazistas, em 1944, as de 1968… e esperemos agora um novo alevantamento das esquerdas tão combalidas neste continente em crise econômica, cultural, política e… ética.
Por tudo isso, e por causa das chamas da esperança, a imagem que melhor me ficou dessa Paris, inesgotável como ela, foi a dos enamorados, tão pequenos, mas tão marcantes, nas margens do Sena.
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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés. Ambos estão à venda na Livraria da Travessa e na Gato Sabido pela metade do preço dos livros impressos.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
O texto me emocionou! Sempre tento explicar isso pros meus amigos, mas nunca encontrei palavras… e muito menos tão lindas e bem empregadas palavras. Estou vivendo por um tempo aqui em Paris e me identifico com o que foi dito aqui. Lindo texto.
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Obrigado pelo comentário e a lembrança, Gisele. Ah, Paris… Flávio
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