De bar em bar XIII: Bosque de Viena

Paella no Bar Botequim

Por Mouzar Benedito.

O Bosque de Viena era um restaurante, mas não austríaco. A música era latino-americana, tocada por paraguaios. Mas não era um restaurante paraguaio também, nem mesmo latino-americano. Era espanhol, e localizado na rua Aurora ou dos Timbiras (não me lembro bem), em São Paulo, em plena “boca do lixo”, nome que davam à zona de prostituição…

A especialidade da casa era paella. Uma das melhores paellas que existiam em São Paulo, a um preço bem razoável, a ponto de gente dura como eu jantar lá pelo menos uma madrugada por semana. E a ponto, também, da música que a gente gostava ser conhecida pelo conjunto. Por exemplo: era só eu entrar que, mesmo tocando em outras mesas, o conjunto sapecava a Alma Llanera, um clássico da música popular venezuelana que eu sempre pedia. Tornaram-se meus amigos e também gostavam dessa música.

Um detalhe: na época, todo mundo pronunciava paelha, como os espanhóis, e não paeja, como a pronúncia argentina, imitada por muitos brasileiros. Até hoje me fere os ouvidos escutar alguém falar paeja. Aliás, na Espanha, era comum ironizar os argentinos por sua pronúncia, e já ouvi espanhol se referir a um argentino assim: “É aquele paeja”.

Uma das maiores atrações do Bosque de Viena era o garçom, Don António. Quando ele entrava no salão trazendo uma paella fumegante e o conjunto estava tocando alguma música que ele gostava, não tinha dúvida: parava ao lado e cantava junto. E a paella chegava à mesa não tão fumegante assim. Mas ninguém reclamava. Quem ia lá era meio alternativo, meio chegado a um tipo de vida mais de amizade e brincadeiras do que de brigas e reclamações. Eu encontrava lá todo tipo de gente, como Lourenço Diaféria, Zé do Caixão e pessoas “da noite” em geral.

Um dos amigos que frequentavam o restaurante na mesma época que eu era o Clóvis, jornalista e estudante de História, também conhecido como Penão. Ele adorava uma paella com vinho, e ia lá direto. O detalhe era que nessas ocasiões o Penão se considerava espanhol. Era neto ou bisneto de espanhol, mas gostava de se passar por espanhol legítimo, radical. Quando ia ao Bosque de Viena, uns cem metros antes de chegar lá (a gente só andava a pé ou de ônibus) ele só falava em castelhano. E lá dentro também.

O Bosque de Viena não vendia cigarros, mas em frente a ele, do outro lado da rua, tinha um bar que ficava aberto até de madrugada, e Don António comprava para os fregueses. Numa dessas, bêbado, ao atravessar a rua de madrugada, foi atropelado e morreu. O dono do restaurante — não me lembro do nome dele — entrou numa tristeza profunda e o fechou.

O Hino popular da Venezuela

A canção Alma Llanera é não é um hino nacional oficial, mas é considerada um “hino nacional popular” da Venezuela. O país viveu mais de cem anos sob ditaduras e nelas esta música chegou a ser proibida, por ser uma declaração de amor à liberdade. No Brasil, ela foi gravada por Ney Matogrosso, que a interpretou muito bem. Me deu vontade de mostrar a letra dela. Aí vai, com uma tradução “livre”:

Alma Llanera

Yo nasci en esta ribera     Eu nasci nesta margem
Del Arauca vibrador     Do vibrante [rio] Arauca
Soy hermano de la espuma,     Sou irmão da espuma,
De las garzas, de las rosas,     Das garças, das rosas,

Soy hermano de la espuma,     Sou irmão da espuma,
De las garzas, de las rosas     Das garças, das rosas,
Y del sol, y del sol…     E do sol, e do sol…

Me arrulló la viva diana     Me cortejou a intensa alvorada
De la brisa en el palmar     Da brisa nas palmeiras,
Y por eso tengo el alma,     E por isso tenho a alma,
Como el alma primorosa     Como a alma primorosa

Y por eso tengo el alma,     E por isso tenho a alma,
Como el alma primorosa     Como a alma primorosa
Del cristal, del cristal…     Do cristal, do cristal…

Amo, sueño, canto, rio     Amo, sonho, canto, rio
Com clavetes de pasión,     Com os cravos da paixão,
Com clavetes de pasión.     Com os cravos da paixão.

Para ornar las rubias crines,     Para ornar as loiras crinas,
Para ornar las rubias crines     Para ornar as loiras crinas
Del potro de mi amador.     Do potro da minha amada.

Eu nasci nesta margem     Eu nasci nesta margem
Do Arauca vibrador.     Do vibrante Arauca.
Soy hermano de la espuma     Sou irmão da espuma
De las garzas, de las rosas,     Das garças, das rosas,
Y del sol, y del sol.     E do sol, e do sol.

***

Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças. 

12 comentários em De bar em bar XIII: Bosque de Viena

  1. Bonito texto! Interpretação deslumbrante de Ney, muito bem acompanhado pelo saudoso Rafael Rabello. O agudo que Ney dá no final é arrepiante!

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  2. Bacana! Salivei diante da imagem da paella (aqui no PR se conhece mais por paeja mesmo). Bela música…
    mas que pena esse triste fim do Bosque de Viena.

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  3. Clovis Pacheco F. // 11/06/2012 às 4:01 pm // Responder

    Mouzar, o Penão acabou de ler! Pura verdade! O Bosque era tudo isso, e algo mais! Tempo bom, aquele!E sobre tudo o que falaste sobre mim é verdade, a não ser aquela história do Oswaldinho, que é a mais crassa mentira que já vi! Pior que todas as que os governos tucanos, petistas e militares contam e contaram, juntos!

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  4. Clovis Pacheco F. // 11/06/2012 às 4:05 pm // Responder

    Agora, bem que poderias postar o Alma llanera com o Plácido Domingo, e não com o Matogrosso! Isso é música para macho, tche! Não é hit para parada guêi!

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  5. Clovis Pacheco F. // 10/07/2012 às 3:52 am // Responder

    Mouzar, meu velho, veja só, no endereço abaixo, como é o Alma Llanera cantada com voz de macho, pelo Jorge Negrete, um tenor mexicano que tinha formação de cantor de ópera, e não essa bichonilda do Ney Matogrosso, que está encarando música que não é para ele! Eu nunca ouvi nenhuma interpretação feminina do Alma llanera, mas tenho certeza que será melhor que a do Matogrosso!

    Abraços do Penão!

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  6. Maria Inês Pereira // 15/06/2013 às 3:13 pm // Responder

    Olá,Mouzar, sou a Maria Inês que se casou com o Ricardinho Isidório, lembra-se? Procurando pelo restaurante Bosque de Viena, onde tantas vezes saboreamos uma deliciosa paella, ao som de “Alma llanera” e outros boleros inesquecíveis, deparei-me com seu depoimento sobre o “Bosque de Viena” . Perfeito! Era exatamente assim! Pena que fechou e por um motivo tão triste…Grande Abraço!
    Antonio

    assim…adorava ir lá! Pena que fechou e por um motivo tão triste: a morte

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  7. Maria Aparecida Genies // 27/07/2014 às 11:07 pm // Responder

    Olá, Mouzar, parabéns pela belíssima matéria. Que saudades deu ver essa paelha e lembrar de velhos tempos, belas músicas e excelentes amigos.
    Uma pena que fechou… fica a lembrança de uma época muito feliz que não volta mais.

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  8. José Alvarez Vázquez // 05/12/2015 às 4:52 pm // Responder

    Sr. Mouzar Benedito: eu estive no antigo restaurante Bosque de Viena muitas vezes durante a minha infância e naquela época ele já estava no BRás, que era onde moravam os seus donos, Alejandro e Maruja, e sua filha Maria Teresa, que eram amigos dos meus pais, pois, somos todos espanhóis galegos. Eles se mudaram uns 40 anos atrás de volta para a Espanha e abriram restaurante novamente, mas poucos anos depois ele e depois ela faleceram. Sua filha Maritere, que hoje deve ter 65 anos, se casou com o cantor Dario, um dos tres componentes do conjunto paraguayo Los Tres Soles, que eram os acompanhantes do cantor Altemar Dutra, e vivem atualmente na Espanha.

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  9. Mouzar…frequentei por alguns anos o Bosque De Viena (entre 1976 e 1983)…ficava precisamente na Rua dos Timbiras quase esquina com a Av. Rio Branco. Na entrada era um Bar antigo e estreito e ao fundo ficava o Salão (na realidade um quintal coberto e improvisado). A descrição que você deu sobre a atmosfera do ambiente foi perfeita e me fez voltar no tempo e sentir muitas saudades. Forte Abraço. Orázio

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  10. Cheguei varias vezes no restaurante. Um grande amigo
    Me levou! Bons tempos

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  11. MARIA LUIZA SARNO // 13/09/2018 às 3:03 am // Responder

    Que saudade desse restaurante…dessa época…dessa música…

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  12. Sonia Regina Cardoso Cervera // 29/11/2023 às 1:19 am // Responder

    Quanta saudade! Ficava na Rua dos Timbiras. Na década de 70 , eu, meu marido e seis ou sete casais de amigos, saíamos do teatro ou do cinema e terminavamos a noite dos sábados no Bosque de Viena. Eramos os últimos a sair. Quanto mais o adiantado da hora, mais animado ficava pq os artistas terminavam seus espetáculos e também iam para lá. Virava uma grande família e todos cantavam, pediam musicas e era “Tudo de Bom” . Ninguem tinha medo de sair pelas ruas no final da madrugada!!! Bons tempos…

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