O sapo Gonzalo em: O campeão

Por Luiz Bernardo Pericás.

Vivemos num mundo estranho…

O sapo Gonzalo estava sentado num banco de praça com as pernas esticadas, vendo os pombos cinzentos ciscando perto de seus pés. Já havia tomado meio litro de café arábico numa padaria das redondezas e agora fumava, tranquilamente, cinco cigarros simultaneamente. Inchava.

Tudo parecia calmo naquela manhã. Algumas crianças brincando, correndo atrás dos ratos de asas; vendedores de pipocas empurrando suas carrocinhas; transeuntes caminhando a passos largos, atrasados para o trabalho. De repente, Gonzalucho, de óculos escuros, notou que um sujeito encardido, com as pupilas dilatadas e forte bafo de álcool, se aproximava. O homem enigmático acomodou-se justo a seu lado: dava para perceber a manga direita de seu paletó quase toda dobrada para cima, presa na linha do ombro por um pequeno alfinete enferrujado. No começo, o maltrapilho não disse nada; depois de alguns minutos, contudo, virou o rosto para o caçote e falou:

“Quero te contar uma história, coleguinha”.

Com a única mão que lhe restava, gesticulava mais do que um cocainômano italiano. Gonzalo certamente achou aquilo inusitado. Não tinha a menor vontade de conversar naquela hora do dia, até porque esperava que os dois sacos de sal de fruta que tomara havia pouco começassem a fazer efeito em seu esôfago, que queimava mais do que a estação antártica da República do Repolho. Mas o indivíduo, ainda assim, insistiu, com um leve tom de amargura e decepção na voz:

“Olhe aqui, preciso desabafar, falar com alguém… Você tem de me escutar”.

O enfastiado cururu alviceleste, com suas olheiras características e a cara de desânimo de sempre, se manteve em silêncio, achando que desta forma o forasteiro perderia o interesse e partiria dali. Que nada! O homem repelente, cheirando a cerveja e suor, apenas continuou, com a voz embargada:

“Veja bem, mesmo não querendo, você vai me ouvir… Vou lhe contar a história de um amigo. Sim, de um amigo íntimo, um grande campeão, um ídolo desta cidade! Depois de escutar, talvez você pense que sou louco, ou, quem sabe, que estou mentindo. Mas é a mais pura verdade. Vou lhe contar tudo… Aí vai…”

Colocou o cotovelo em cima da mesa, esticou o antebraço e apertou a palma da mão do adversário. Aquela seria mais uma vitória fácil.

Ele era a sensação do bar, uma espécie de celebridade local. Todas as noites fazia seu show particular, desafiava fregueses e desconhecidos, exibia seus músculos, competia no braço de ferro. Achava que isso o tornava famoso e, em consequência, atraente para as mulheres.

De fato, sempre que se sentava à mesa para vencer seus oponentes, era cercado por uma pequena multidão de bêbados e senhoritas impressionáveis, que o adulavam e pediam mais entretenimento. Plexo em dia, caixa toráxica invejável, bíceps petrificados! Tudo isso e um pouco mais: a cabeleira escura, lambida pela brilhantina da marca mais cara; a camisa aberta até o umbigo, mostrando o peitoral peludo e grisalho; a calça apertada, socada até o limite; e nos dentes, jaquetas de porcelana que cintilavam quando sorria. A cada semana, trazia uma pequena mudança no visual, para dar ao público cativo algo de novo. Essa, a magia do espetáculo.

É bem verdade que era conhecido apenas naquele boteco e nas imediações; ainda assim, era a sensação do momento, o maior expoente da queda de braço do bairro. As noites eram longas e entediantes, e só alguém como ele poderia trazer um pouco de diversão aos clientes do bar. Não recebia um tostão por suas exibições, apenas uma dose de uísque barato, de vez em quando. Mas continuava a desafiar a todos naquele “nobre” esporte. Por vezes achava que era o próprio John Brzenk, o maior “arm wrestler” de todos os tempos!

Precisava sentir-se admirado. Desprezado na infância, o garoto mirrado que sempre apanhava na escola crescera e se tornara um touro! Era um vencedor! Quando terminava de estraçalhar um oponente em poucos segundos, recebia tapinhas nas costas dos ébrios de plantão e cumprimentos de policiais militares que trabalhavam por lá como seguranças nas horas vagas.

O pequeno séquito de aduladores era fundamental para que ele continuasse com sua performance diária. Muitos no outro dia sequer se recordavam do que havia ocorrido na noite anterior. Com as bebedeiras e as ressacas constantes, pouco ficava na memória daqueles sujeitos que faziam do frege seu escritório. Mas o “campeão”, ainda assim, tinha plena convicção de que era lembrado e idolatrado por todos ali.

Até que, certo dia, ao atravessar uma rua mal iluminada, foi atropelado por um automóvel em alta velocidade, que arrancou seu braço, quase na altura do ombro. Levado às pressas para a setor de emergência de um hospital qualquer, ficou internado por várias semanas, semiconsciente. Apesar de se recuperar fisicamente num tempo relativamente curto, durante meses após receber alta isolou-se, deprimido, melancólico, sentindo a falta do membro, que nunca foi encontrado. Os motivos para tal acontecimento não haviam sido esclarecidos: alguns diziam que haviam visto um cão perto de onde tudo ocorrera, e que o animal provavelmente teria levado o braço para um beco escuro, devorado sua carne e lambido até o osso; outros afirmavam que teria sido roubado por algum estudante de medicina ou um colecionador de objetos exóticos desocupado. O fato é que sem seu poderoso “instrumento de trabalho”, o grande “campeão” anabolizado já não se sentia mais a personalidade esportiva do momento nem tampouco a sensação atlética do apreciado botequim.

Quando voltou a frequentar o local que considerava sua casa, foi desprezado pela maioria dos clientes, “bartenders” e garçons. Canalhas! Tentava puxar conversa com alguns velhos colegas borrachos. Nem estes lhe davam mais atenção: sem seu braço musculoso, não era ninguém.

Antes bebia pouco, apenas para esquentar o corpo e impressionar algumas mulheres. Agora estava próximo de se tornar um verdadeiro alcoólatra…

A tristeza certamente havia afetado seus relacionamentos. Tornara-se mais tímido, introspectivo, isolado. Qualquer pessoa que entrava na taberna podia vê-lo num canto escuro, sozinho, virando copos e mais copos, sem falar com ninguém. Na verdade, nenhum dos fregueses tinha a menor intenção de perder seu tempo com o antigo “campeão”. De vez em quando ele dava voltas dentro da chafrica, tentava entabular conversa, mostrar que ainda era o tal. Até que começava a lembrar dos seus grandes feitos e glórias. Contava detalhes de cada uma de suas vitórias, de como havia sido bom no passado. As pessoas logo se entediavam e saíam de perto rapidamente. Ele então retornava à sua mesa, no canto mais escuro do local. Assim continuou por meses…

As noitadas pareciam-se umas às outras, o tédio imperava e ele já havia se resignado a ir ao bar cotidianamente tomar seus tragos sozinho, sem imaginar que fosse ocorrer algo de novo ou inusitado por ali. Até que, ao entrar na baiuca, em mais uma noite aparentemente como outra qualquer, notou que havia algo de diferente no ambiente, uma estranha agitação, uma nervosa movimentação de clientes e funcionários. Uma pequena multidão se aglomerava para ver a mais uma disputa de braço de ferro. Alguém aparentemente havia ocupado seu lugar como astro local e agora era a nova sensação da clientela, que, enlouquecida, gritava entusiasmada ao presenciar um evento tão espetacular. Não sabia quem estava na disputa, mas mesmo assim sentiu uma ponta de inveja. Haviam roubado seu lugar.

Lentamente, foi se aproximando da aglomeração, um pouco hesitante, preocupado, curioso para saber quem era a nova estrela do bar. Teve dificuldade em se aproximar, já que eram muitas as pessoas que se amassavam em volta dos contendores, querendo ver qual seria o resultado da emocionante disputa. Até que, quando finalmente conseguiu chegar bem perto da mesa, viu, assombrado, no meio de dezenas de espectadores, algo que nunca poderia esperar. Era seu braço, solitário, suado, musculoso, que ganhava mais uma batalha contra um adversário qualquer, enquanto era adulado pelos bêbados e acariciado por belas mulheres de roupas apertadas, que tentavam seduzi-lo como podiam. Seu braço!

O sapo deu um pulo no mesmo lugar, seus olhos mais arregalados do que nunca. Mas manteve a postura. Tinha a sensação que o indigente, na verdade, falava de si mesmo! “Vivemos mesmo num mundo estranho! Não dá para acreditar!”, pensou. “Cada um que me aparece…” Já o manita ressacado apenas terminou de contar sua história, levantou-se e partiu, ainda cambaleante, em completo silêncio, sem dizer mais uma palavra sequer.

E quando passaram na praça, conversando animadamente, o homem de três cabeças, a mulher barbada e o gigante mapuche, Gonzalo nem ligou… É que tudo parecia possível agora…

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Já estão à venda em versão eletrônica (ebook) os livros de Luiz Bernardo Pericás publicados pela Boitempo Editorial: o premiado Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, e o lançamento ficcional Cansaço, a longa estação. Ambos estão disponíveis na Gato Sabido, Livraria Cultura e diversas outras lojas, custando até metade do preço do livro impresso.

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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

4 comentários em O sapo Gonzalo em: O campeão

  1. Tirso W. Sáenz // 23/03/2012 às 3:24 pm // Responder

    Gostei. Muito imaginativo e da para pensar.

    Abraços

    Tirso

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  2. Boa história. Todos só se importam com o membro mesmo.

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  3. Oi Luiz:
    Muito legal esta estória do sapo. Sua imaginação é fértil. Felicidades e
    um grande abraço da Zilda.

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    • Assoc. func. Apos. Pens. BB de B H - AFa-BH (Antonio Carlos Dias) // 26/08/2013 às 12:43 pm // Responder

      Por favor, precisamos contatar a Sra. Zilda Nasclério Homem, que estava no navio Ciudad de Assuncion, naufragado em 1963, no rio da Prata. Seria essa senhora, que enviou a mensagem acima ao Luiz?
      Por favor, nosso e-mail é: afa.bh@bol.com.br (Associação dos Funcionários Aposentados e Pensionistas do Banco do Brasil de Belo Horizonte – AFA-BH)
      Grato,
      Antônio Carlos Dias, pres. da AFA-BH

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