Claramente a favor do aborto

“Sem título (Seu corpo é um campo de batalha)”, de Barbara Kruger (1989)

Por Vladimir Safatle.*

Há algum tempo, a política brasileira tem sido periodicamente chantageada pela questão do aborto. Tal chantagem demonstra a força de certos grupos religiosos na determinação do ordenamento jurídico brasileiro, o que evidencia como a separação entre Igreja e Estado está longe de ser uma realidade efetiva entre nós. Uma das expressões mais claras dessa força encontra-se no fato de mesmo os defensores do aborto não terem coragem de dizer isso com todas as letras.

Sempre somos obrigados a ouvir afirmações envergonhadas do tipo: “Eu, pessoalmente, sou contra, afinal, como alguém pode ser a favor do aborto? Mas esta é uma questão de saúde pública, devemos analisá-la de maneira desapaixonada…”

Talvez tenha chegado o momento de dizermos: somos sim absolutamente a favor do aborto. Há aqui uma razão fundamental: não há Estado que tenha o direito de legislar sobre o uso que uma mulher deve fazer de seu próprio corpo. É estranho ver algumas peculiaridades brasileiras. Por exemplo, o Brasil deve ser um dos poucos países onde os autoproclamados liberais e defensores da liberdade do indivíduo acham normal que o Estado se arrogue o direito de intervir em questões vinculadas à maneira como uma mulher dispõe de seu próprio corpo.

Há duas décadas, a artista norte-americana Barbara Kruger concebera um cartaz onde se via um rosto feminino e a frase: “Seu corpo é um campo de batalha” [ilustração acima]. Não poderia haver frase mais justa a respeito da maneira com que o poder na contemporaneidade se mostra em sua verdadeira natureza quando aparece como modo de administração dos corpos e de regulação da vida. Esta é a função mais elementar do poder: fazer com que sua presença seja percebida sempre que o indivíduo olhar o próprio corpo.

Nesse sentido, não deixa de ser irônico notar como alguns setores do cristianismo, como o catolicismo e algumas seitas pentecostais, parecem muito mais preocupados com o corpo de seus fiéis que com sua alma. Daí a maneira como transformaram, a despeito de outros segmentos do cristianismo, problemas como o aborto, a sexualidade e o casamento homossexual em verdadeiros objetos de cruzadas. Talvez seria interessante lembrar: mesmo entre os cristão tais ideias são controversas. Os anglicanos não veem o aborto como um pecado e mesmo entre os luteranos, embora se digam contrários, ninguém pensaria em excomungar uma fiel por ela ter decido fazer um aborto.

É claro que se pode sempre contra-argumentar dizendo que problemas como o aborto não podem ser vistos exclusivamente como uma questão ligada à autonomia a que tenho direito quando uso meu corpo. Pois haveria outra vida a ser reconhecida enquanto tal. Esse ponto está entre os mais inacreditáveis obscurantismos.

Uma vida em potencial não pode, em hipótese alguma, ser equiparada juridicamente a uma vida em ato. Um embrião do tamanho de um grão de feijão, sem autonomia alguma, parasita das funções vitais do corpo que o hospeda e sem a menor atividade cerebral não pode ser equiparado a um indivíduo dotado de autonomia das suas funções vitais e atividade cerebral. Não estamos diante do mesmo fenômeno. A maneira com que certos grupos políticos e religiosos se utilizam do conceito de “vida” para unificar os dois fenômenos (dizendo que estamos diante da mesma “vida humana”) é apenas uma armadilha ideo-lógica. A vida humana não é um conceito biológico, mas um conceito político no qual encontramos a sedimentação de valores e normas que nossa vida social compreende como fundamentais. Se dizemos que alguém desprovido de atividade cerebral está clinicamente morto, mesmo se ele conservar grande parte de suas funções vitais ainda em atividade graças a aparelhos médicos, é porque autonomia e autocontrole são valores fundamentais para nossa concepção de vida humana.

Assim, quando certos setores querem transformar o debate sobre o aborto em uma luta entre os defensores incondicionais da vida e os adeptos de alguma obscura cultura da morte, vemos a mais primária tentativa de transformar a vida em um conceito ideológico. Isso se admitirmos que será necessariamente ideológico um discurso que quer nos fazer acreditar que “as coisas falam por si mesmas”, que nossa definição de vida é algo assentado nas leis cristalinas da natureza, que ela não é uma construção baseada em valores sociais reificados.

Levando isso em conta, temos de saudar o fato de alguns arautos do conservadorismo pretenderem colocar tal questão na pauta do debate político brasileiro e esperar que existam algumas pessoas dispostas a compreender a importância do que está em jogo. Desativar as molas do poder passa pela capacidade de colocá-lo a uma distância segura de nossos corpos.

 * Artigo publicado originalmente na revista CartaCapital.

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Os livros de Vladimir Safatle publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook), em média custando metade do preço dos livros impressos:

Cinismo e falência da crítica, de Vladimir Safatle * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)

O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)

Bem-vindo ao deserto do Real!, de Slavoj Žižek (posfácio de Vladimir Safatle) * ePub (Livraria Cultura | Gato Sabido)

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Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus. Escreveu A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo, Edunesp, 2006), Folha explica Lacan (São Paulo, Publifolha, 2007), Cinismo e falência da crítica (São Paulo, Boitempo, 2008) e co-organizou com Edson Teles a coletânea de artigos O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), entre outros.

17 comentários em Claramente a favor do aborto

  1. Márcio Antônio // 21/03/2012 às 7:15 pm // Responder

    O feto não é corpo da mulher, nem parte dele. É independente, será um novo ser com 46 pares de cromossomos compartilhados e ganhará autonomia.
    Não podemos impedir isto.
    O autor é filósofo? Encontra-se no tempo e espaço errado. Deveria estar na Alemanha nos anos trinta. E olha que escreve todas estas bobagens pago com dinheiro público.

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  2. Devemos deixar que todo ano morram 200 mil mulheres então Márcio? E considerando que todas serão pobres, pois o aborto é uma intervenção simples que pros ricos e pra classe média é facilmente realizável, sendo a fiscalização inexistente. Pra mim isto sim é assassinato.

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  3. Eu acho que não vale nem a pena entrar no mérito da legalização ou não do aborto.

    O que eu gostaria mesmo era de verificar um embasamento consistente para justificar a acusação do Safatle de que “Sempre somos obrigados a ouvir afirmações envergonhadas do tipo: ‘Eu, pessoalmente, sou contra, afinal, como alguém pode ser a favor do aborto? Mas esta é uma questão de saúde pública, devemos analisá-la de maneira desapaixonada…'”.

    Afirmação envergonhada porque? Pro cara defender a legalização do aborto ele tem que entender a prática como algo bom em si?!

    Eu gosto muito do Safatle, mas ele escorregou na banana dessa vez…

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  4. sergio almeida // 25/03/2012 às 3:18 pm // Responder

    Tomemos extremo cuidado com nossas decisões……uma delas, decisão a favor ou contra o aborto…….uma das únicas realidades: um dia morreremos……, e seremos julgados segundo nossos atos………, e talvez condenados….e se condenados mandados para o inferno,……..pensem nisso……..O inferno existe…….o próprio Deus nos revelou sua existência……. em todos os tempos, desde o começo do mundo até nossos dias, creram os povos no inferno. Sob um ou outro nome, sob formas mais ou menos modificadas, receberam, conservaram e proclamaram a crença das punições terríveis, infinitas, com a presença constante do fogo para expiação dos malvados, depois da morte. O inferno é uma certeza estabelecida luminosamente pelos grandes filósofos cristãos, cuja demonstração é por assim dizer supérflua……na verdade o inferno não foi inventado por ninguém…….derrepente ser a favor do aborto pode nos trazer uma punição terrível…….porque o próprio DEUS PAI é contra o cerceamento da vida de seus filhos……..pensem nisso…….
    .

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  5. ” Nesse sentido, não deixa de ser irônico notar como alguns setores do cristianismo, como o catolicismo e algumas seitas pentecostais, parecem muito mais preocupados com o corpo de seus fiéis que com sua alma. Daí a maneira como transformaram, a despeito de outros segmentos do cristianismo, problemas como o aborto, a sexualidade e o casamento homossexual em verdadeiros objetos de cruzadas. ”

    Não é possivel que você seja professor de uma universidade, vá estudar o que é cristianismo seu animal, o feto já é uma pessoa, por isso se o abortamos impossibilitamos uma alma de vir a ser. É preciso ter um pensamento muito debil para acreditar que questoes de sexualidade não influenciem na alma, pergunte a qualquer psicanalista, se o sexo se resume ao corpo. Safatle você deveria voltar para a educação infantil, algo nessa fase da tua educação não deu certo.

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  6. aborto é foda!!!!

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  7. Todo aquele que é a favor do aborto já nasceu. Antes de ser a favor do aborto, deveria pensar no que teria acontecido se sua mãe fosse a favor do aborto… e tivesse abortado!

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  8. Nivaldo Moura // 23/07/2012 às 10:15 pm // Responder

    Imagina se vou entrar nessa cruzada! Salve Safatle, o estado laico e desmascaramento de produz seu texto.

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  9. jose carlos cruz // 01/08/2012 às 5:50 pm // Responder

    Considero o aborto necessário em algumas situações desde que seja feito com cuidados médicos adequados e com consciência de que é feito quando o feto está na sua gestação e evidencia má formação.

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  10. o aborto e necessário a algumas cituaçoes , mas cada qual no seu cada qual.

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  11. É necessário lembrar que aborto é crime, é assassinato do modo mais cruel possível, já que é cometido contra um indefeso, tanto sob o ponto de vista legal, quanto moral. Sendo assim, toda e qualquer desculpa para legalizá-lo se traduz na falta de conhecimento sobre a questão do real valor da vida, seja em que estágio for. Por óbvio, que as pessoas que se mostram na defesa da morte, tem interesses particulares escusos, nos campos econômico, partidário e ideológico. Logo, como mulher, como mãe, como pessoa, sou contra todo e qualquer tipo de atentado à vida. Givanilda

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  12. O aborto é um grave problema de saúde no Brasil. A mulher tem o direito de tomar decisões num assunto que diz respeito à sua vida como o é da maternidade. A maternidade não desejada é fonte de problemas futuros para a mulher e para o casal. (ajudaabortopernambuco@hotmail.com) Você não está sozinha.

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    • Todas as pessoas nascem com o poder do livre-arbítrio. Isso quer dizer: tem o poder de arbitrar livremente qual será sua próxima atitude, a qualquer instante do tempo. E, efetivamente, todos exercem esse livre-arbítrio o tempo todo. Mas é importante salientar que o livre-arbítrio vem acompanhado de RESPONSABILIDADE. Não há impunidade, todas as atitudes tomadas por livre-arbítrio tem a sua cota de responsabilidade por quem as toma. Lembro, também, que um feto nunca será parte do corpo de mulher nenhuma. Se o fosse, já nasceria com ela. O feto se forma no útero da mulher, como resultado da junção de um óvulo e de um espermatozóide e das divisões celulares posteriores. Mas ele não é parte do útero, é um organismo independente que se forma no único local destinado a essa gestação, no ser humano de sexo feminino e que veio ao mundo preparado para essa tarefa. Pode ser que a mulher não deseje uma determinada gravidez, mas isso não lhe dá o direito de assassinar outro ser humano, de vida independente e que, temporariamente, está hospedado em seu útero e do qual sairá para ser seu filho ou sua filha. Um último lembrete para quem é claramente a favor do aborto: SE VOCÊ É A FAVOR DO ABORTO, PENSE BEM NO QUE OCORRERIA SE SUA MÃE FOSSE A FAVOR DO ABORTO E, NA TUA GRAVIDEZ, DECIDISSE TER ABORTADO A GESTAÇÃO. UM FATO CURIOSO: TODOS QUE SÃO A FAVOR DO ABORTO JÁ NASCERAM.

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      • Alexander eu deixei nomes de dois livros aqui, divulgue por favor o nome deles para outras pessoas. Assim podemos contribuir com Deus para que nossos anjinhos não sejam Abortados .O livro se chama DEIXE-ME VIVER, E O OUTRO É PELA PAZ DOS ANJINHOS. Se tiver oportunidade leia. Que Deus o abençoe infinitamente.

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  13. A favor do Aborto – face: ajuda aborto

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  14. Na minha opnião o ABORTO vai além da vida física e sim da vida espiritual. Alguém já parou para pensar para onde vai alma desse bebezinho! Desde qndo a mulher está grávida Deus já colocou a alma desse anjinho no útero da mulher.MULHERES LEIAM O LIVRO DEIXE-ME VIVER E O LIVRO PELA PAZ DOS ANJINHOS, Independente da religião. leia esses livros que Deus vai iluminar os seus caminhos que estam pensando ou ajudando alguém a fazer um ABORTO. Por favor passem os nomes dos livros para frente quem é contra o ABORTO. Que Deus vos abençoe infinitamente.

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