Crise europeia e austeridade fiscal

Por João Alexandre Peschanski.*

Os pacotes governamentais que se seguiram às crises econômicas nacionais e supranacionais que se manifestaram a partir de 2007-8 acentuaram no geral a vulnerabilidade de trabalhadores e populações marginalizadas na Europa. As respostas aos sintomas financeiros da crise foram muitas vezes similares ao redor do globo, o que foi em parte o resultado de uma coordenação sem precedentes de bancos centrais de vários países. Sob a orientação do Federal Reserve estadunidense, do Banco Central Europeu (BCE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI), os bancos centrais de dezenas de países, incluindo o Brasil, injetaram centenas de bilhões de reais para impedir que corporações e instituições financeiras fossem à falência, o que supostamente levaria ao alastramento sistêmico da crise. Em agosto de 2007, o BCE dispôs de 405 bilhões de reais para “socorrer” empresas em dificuldade, cerca de metade de suas reservas. Em maio de 2010, a União Europeia criou uma reserva emergencial para manter o equilíbrio financeiro em seus países-membros, o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), com uma reserva de quase um trilhão de reais. O “socorro” às instituições financeiras e corporações, cuja estratégia de investimentos acelerou a crise, e a política de austeridade fiscal que se seguiu para minimizar o rombo econômico tiveram impactos negativos na recuperação de empregos e nas políticas de bem-estar social em países avançados e periféricos da Europa.

Entre 2005 e 2011, de acordo com a Figura 1, a economia europeia principalmente estagnou ou regrediu. O Produto Interno Bruto de 15 dos 27 países que compõem a União Europeia teve uma evolução entre -2,25% e 0,625% nesse período. Em 2011, o balanço de pagamentos dos 27 países somou um déficit de quase R$ 100 bilhões. A dívida global da União Europeia em 2010 chegou a 80% do PIB; um aumento de cerca de vinte pontos percentuais desde 2005. O endividamento da Espanha, Grécia e Portugal atingiu, respectivamente, 506%, 479% e 296% do PIB em 2010. A dívida, combinada com as políticas monetárias ortodoxas do BCE e a crise fiscal dos Estados, levou vários países ao colapso econômico e social. A Alemanha foi, relativamente, a exceção nesse quadro geral, mas os resultados econômicos aparentemente positivos se deram às custas das economias periféricas do continente, especialmente a Grécia. 

Figura 1) Evolução do PIB na Europa (%), entre 2005 e 2011 (Fonte: Eurostat)

A desaceleração econômica, que foi a marca da Europa entre 2005 e 2011, afetou diretamente a situação dos trabalhadores. Na União Europeia, a taxa média de desemprego aumentou cerca de um ponto percentual entre 2005 e 2011, quando chegou a 10%. Na Grécia, Espanha e Portugal, chegou respectivamente a 14%, 17% e 21%; em países do Leste europeu, como Estônia, Letônia e Lituânia, o desemprego chegou a seus níveis mais altos desde os anos 1980. Em toda a Europa, o desemprego atingiu 22% da população entre 18 e 24 anos, chegando a 46% na Espanha e 40% na Grécia.

A situação geral dos trabalhadores foi ainda pior se considerarmos o aumento do número de trabalhos precários ou com contratos de tempo determinado. Dados sobre esses tipos de empregos, que revelam outra faceta negativa do mundo do trabalho na Europa, não são fornecidos pela agência de estatísticas da União Europeia, a Eurostat. A Confederação dos Sindicatos Europeus estimou em 2009 que 14,5% dos trabalhadores da União Europeia tinham contratos a prazo determinado e que 18% dos assalariados do bloco tinham empregos de meio período. Esses vínculos empregatícios formaram um grupo socioeconômico fora do mercado formal, com pouco acesso à previdência social e estigmatizado, o “precariado”. A confederação lançou um alerta aos governos europeus, num documento chamado “A qualidade dos empregos em perigo”, segundo o qual os direitos sociais adquiridos pelos trabalhadores europeus durante o século 20 estavam sendo pouco a pouco eliminados.

Em resposta à crise dos bancos e corporações, as políticas dos Estados agravaram a crise social. Impuseram o corte de gastos públicos, para amenizar as consequências do rombo monetário deixado pelo “socorro” bilionário às instituições financeiras privadas e para cumprir com as normas da União Europeia, que exigem que o déficit fiscal não ultrapasse 3% por três anos consecutivos. De acordo com o relatório “A Eurozona entre austeridade e moratória”, da rede de economistas Pesquisa sobre Dinheiro e Finanças (da sigla em inglês, RMF), as medidas fiscais reduziram de imediato o consumo privado. Encabeçada por Costas Lapavitsas, a RMF reúne economistas políticos que acompanham a evolução do sistema financeiro europeu e se tornou uma das principais referências acadêmicas de crítica às políticas de austeridade. Níveis de consumo mais baixos levaram à redução da arrecadação de impostos, agravando o enxugamento dos cofres públicos. Os déficits orçamentários dos Estados aumentaram em países avançados e periféricos da Europa, chegando em 2010 a 8%, 5,3% e 5% do PIB na França, Itália e Alemanha, respectivamente. Na Espanha, Portugal e Grécia, o déficit público atingiu, na ordem, 11%, 9% e 13%, no mesmo ano. Em 2009, a Alemanha anunciou um plano para cortar gastos públicos em mais de R$ 100 bilhões, reduzindo os salários de funcionários públicos, cortando empregados, liberalizando em parte a previdência social e interrompendo créditos e subsídios a pequenos empresários e produtores rurais. No ano seguinte, a França anunciou um plano similar, prevendo a redução dos gastos públicos em mais de R$ 200 bilhões até 2013.

Pressionada pela União Europeia e pelo FMI, a Grécia adotou um plano de ajuste econômico e social em 2010, com o objetivo de cumprir as metas fiscais do bloco europeu, o que levou a um aumento de impostos e arrocho salarial. Em dezembro de 2011, o parlamento grego lançou um novo plano, mais uma vez sob pressão da União Europeia, que acentuou as medidas anteriores. A redução salarial para funcionários chegou a 30%. Benefícios a desempregados foram cortados e um programa de combate à pobreza, iniciado em 2009, foi cancelado. Em 2010, a União Europeia e o FMI incentivaram o governo grego a intensificar o processo de privatização de empresas e bens públicos (portos, aeroportos, ferrovias, saneamento, energia e terras), o que agravou ainda mais o déficit fiscal já que, antes da crise, as estatais haviam sido umas das principais fontes de rendimentos para o Estado. Medidas de austeridade fiscal e liberalização da economia também ocorreram na Espanha e em Portugal. O sistema de pensões foi reformado em vários países da Europa, com o aumento da idade da aposentadoria — na Grécia, o aumento estava sendo negociado em 2011 e podia chegar em algumas categorias a 17 anos — e a redução dos benefícios.

Entre 2007 e 2011, a situação dos trabalhadores na Grécia, Espanha e Portugal foi pior do que em outros países europeus pelos constrangimentos que as instituições e pactos da União Europeia lhes impuseram. Os governos desses países, periféricos no bloco europeu, não tiveram autonomia para estabelecer políticas monetárias e medidas protecionistas e desenvolvimentistas, que chegaram a ser apresentadas por parlamentares em todos esses países, foram simplesmente descartadas, por não estar de acordo com as normas europeias. Economias capitalistas avançadas, especialmente a Alemanha, se beneficiaram do atraso dos países periféricos europeus. Na eclosão da crise, os detentores dos títulos da dívida grega, portuguesa e espanhola eram principalmente do próprio bloco europeu, em especial bancos públicos; no caso da Espanha, por exemplo, 48% dos credores eram alemães ou franceses, em 2009. As injeções de dinheiro do BCE e do FMI na Grécia e outros países vieram com “condicionalidades”, isto é, objetivos a serem cumpridos, especialmente garantias de solvência a credores e liberalização da economia, o que reforçou a dependência econômica em relação ao países centrais do bloco europeu. A Figura 2, que mostra a evolução do balanço de transações em quatro países europeus de meados dos anos 1990 a 2008, ilustra os processos econômicos diversos na Europa: enquanto a Alemanha cresceu, Portugal, Espanha e Grécia afundaram. O relatório “A Eurozona entre austeridade e moratória” considera que esses processos econômicos diversos não foram independentes; a economia alemã se beneficiou da situação nos países europeus periféricos, com estratégias de especulação financeira predatórias. O mesmo relatório afirma que a participação na União Europeia impede o desenvolvimento econômico dos países periféricos do bloco e sugere: a moratória da dívida e o rompimento dos países atrasados, em especial a Grécia, com a União Europeia.

Transações (% PIB) (Fonte: Lapavitsas et al., “The Eurozone Between Austerity and Default”, RMF, setembro de 2010)

As políticas de austeridade foram acompanhadas, no geral, de medidas governamentais contra sindicatos, especialmente de servidores públicos, e populações imigrantes. O então primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi adotou como uma de suas principais bandeiras anticrise a desestruturação das organizações de funcionários públicos, que, segundo ele, agravaram o déficit nas contas do Estado. Após passar medidas antipopulares, o premiê italiano teve de renunciar, em novembro de 2011. Nos discursos de Berlusconi, os benefícios sociais de trabalhadores, especialmente sindicalistas, foram tidos como “privilégios”, que levaram ao desequilíbrio fiscal e ao refluxo de investimentos. Esses ataques aos sindicatos, na Itália e em outros países europeus, se deram em um contexto de baixa no sindicalismo. A taxa de sindicalização caiu em quase todos os países europeus desde meados dos anos 1990. A queda foi resultado tanto de processos externos aos sindicatos — aumento do número de trabalhadores na informalidade, crise na esquerda partidária — quanto de erros na direção sindical. As medidas pós-2007 agravaram esse cenário, na medida em que o trabalho formal foi mais uma vez enfraquecido, criando uma dicotomia entre trabalhadores com acesso a benefícios sociais, geralmente sindicalizados, e o precariado. Potencialmente, a erosão dos sindicatos deve agravar os efeitos da crise na Europa. Diferentemente do que diz Berlusconi, a crise na Europa não se origina de problemas fiscais do Estado, mas do descontrole nas especulações financeiras, promovido por corporações e instituições financeiras, com o aval dos governos europeus. A dívida pública e, por conseguinte, o déficit fiscal resultam, por um lado, de contínuos desinvestimentos na economia produtiva para beneficiar estratégias especulativas e, por outro lado, do rombo deixado por planos de “socorro” a bancos e empresas. Nesse contexto de descontrole, os sindicatos, que defendem os interesses dos trabalhadores, poderiam ser um meio de minimizar os impactos negativos das ações predatórias das instituições financeiras e corporações. Mas os governos europeus, como é o caso da Itália, intensificam as condições para o agravamento da crise, ao enfraquecer os sindicatos, de modo direto ou indireto. Em alguns países, houve manifestações de sindicalistas contra as reformas trabalhistas e sociais de austeridade. Na França, de março a novembro de 2010, ocorreram mobilizações conjuntas de todos os sindicatos contra a proposta do presidente Nicolas Sarkozy de aumentar a idade mínima da aposentadoria. Os protestos, no total, reuniram dezenas de milhões de pessoas, em toda a França. Apesar dos protestos, a proposta de lei foi votada e homologada em dezembro do mesmo ano. Em março de 2011, protestos contra as políticas de austeridade ocorreram ao mesmo tempo em todos os países da União Europeia.

Os programas de austeridade se deram simultaneamente à intensificação de políticas e movimentos contra as populações imigrantes. A Eurostat estimou que, desde 2000, a Europa recebeu em média entre um milhão e meio e dois milhões de migrantes internacionais. Em 2005, de acordo com a mesma estimativa, 85% do crescimento populacional do continente se deu pela chegada de imigrantes. Desde a eclosão da crise, em 2007, os governos europeus adotaram medidas duras contra os imigrantes. Sarkozy iniciou em 2010 um programa de criminalização e deportação de minorias étnicas, especialmente ciganos do leste europeu. O programa de Sarkozy foi alvo de críticas de organizações de direitos humanos em toda a Europa. A chanceler alemã, Angela Merkel, declarou em 2010 que a imigração era prejudicial à economia europeia, uma das causas da crise. Sarkozy, Merkel e outros políticos que adotaram políticas anti-imigrantes fazem parte de uma crescente onda xenófoba na Europa. Partidos de extrema-direita têm crescido eleitoralmente: em 2011, faziam parte de coalizões de governos e parlamentos na Suíça, Eslováquia,  Áustria, Itália, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Bélgica, Romênia , Suécia e Holanda. Ondas de discriminação e violência xenófoba aumentaram em toda a Europa, de acordo com frequentes relatórios da Agência de Direitos Humanos da União Europeia. Na Alemanha, por exemplo, houve mais de 20 mil crimes racistas em 2008; na Inglaterra, no mesmo ano, o número chegou a 57 mil casos. Os ataques extremistas a imigrantes, às vezes patrocinados ou deixados impunes pelos governos, são uma das dimensões de um crescente autoritarismo do Estado e cultura política da Europa, no contexto da crise.

A repressão a protestos contra as políticas de austeridade na Europa refletiram, também, o crescente autoritarismo do Estado. Na Grécia, em 2010 e 2011, protestos contra as medidas anticrise foram duramente reprimidas pela polícia. A Anistia Internacional condenou, num relatório em junho de 2011, os abusos policiais, que deixaram centenas de pessoas feridas e pelo menos três mortas. Protestos nesse contexto de austeridade também ocorreram na Espanha, Portugal e Inglaterra. Em geral, essas manifestações pregaram autonomia política com partidos de esquerda; o movimento de jovens Los Indignados, do qual participaram entre 6,5 e 8 milhões de pessoas na Espanha em 2011, se manifestou como independente dos partidos tradicionais do país, incluindo os de esquerda. Entre suas principais bandeiras, estava uma reforma democrática na Espanha, para que a população tivesse mais impacto direto nas decisões tomadas pelo governo.

Apesar dos levantes populares, principalmente em 2010 e 2011, não surgiu ainda uma alternativa forte às medidas de austeridade fiscal e à guinada autoritária na Europa. Nesse cenário e com a possível acentuação da crise econômica, violações a direitos sociais e civis podem intensificar-se no continente. 

* Publicado originalmente no Relatório Direitos Humanos no Brasil 2011.

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João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

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