São Paulo vista de perto
Saí da geladeira para entrar no forno. Deixei Berlim a menos 5 graus, na segunda 27 de madrugada, e cheguei em S. Paulo com 30, no começo da noite.
Há décadas eu não sentia tanto calor na cidade.
Tradicionalmente São Paulo não era associada a calor, mas a garoa e frio. O Rio Grande do Sul era associado a vastidão, vento e sol; frio, neblina, eram coisas de S. Paulo e Minas Gerais.
Mas o crescimento desvairado da metrópole mudou a percepção. A garoa transformou-se em inundação. O frio, que continua existindo, cedeu espaço no imaginário à reverberação escaldante da capa de asfalto. O próprio cinza tradicional das paredes dos prédios vai cedendo espaço ao reflexo também escaldante dos vidros fumês. A Paulista transformou-se em Berrini.
Outra coisa: o número de pessoas que ouvem rádio a altos brados aumentou muito. Estou morando em casa de filha na Vila Gomes, entre a av. Corifeu de Azevedo Marques e a Raposo Tavares. Não paro de ouvir os acordes conflitantes de um pagode ao lado com o jazz do vizinho… da outra rua, a dezenas de metros!
No trânsito, o número de motoristas que decide compartilhar seu som com os demais, detidos no engarrafamento, é muito grande.
Sem falar nos que decidem compartilhar seu mau humor. Tomei um táxi para uma longa viagem a São Bernardo. Ao saber que eu morava em Berlim, o motorista resolveu dedicar-se ao esporte favorito de muita gente, achando que me agradava: falar mal do Brasil. Quando eu lhe disse que lá fora a imagem do Brasil vai muito bem obrigado, ele me retrucou despeitado: “é porque eles não moram aqui!”.
Ainda comentou: “a história do mundo passou pela Alemanha! Em compensação, o que aconteceu de importante aqui no Brasil? Nada!”
Resolvi mudar de assunto, e passei a falar do calor.
Nesse mesmo dia, deparei com as filas imensas nos postos de gasolina por causa da ameaça de lock out por parte dos motoristas de caminhão que entregam combustíveis na cidade. Era um protesto diante da proibição de circularem nos horários de pico nas avenidas marginais da cidade, particularmente na do Tietê. Uma baita confusão, pois a verdade é que, como está, não pode ficar, uma vez que, na verdade, nos horários de pico não há mais circulação propriamente dita.
À noite, suando em bicas, não pude deixar de pensar: a população de São Paulo está colhendo o que a sua burguesia semeou. E provavelmente vai cotinuar prestigiando os candidatos desta. O Brasil vai melhor sim. São Paulo, não, embora continue sendo uma metrópole atraente. Fiquei um pouco triste.
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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés. Ambos estão à venda na Livraria Cultura e no Gato Sabido.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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