O sapo Gonzalo foge do Carnaval

Por Luiz Bernardo Pericás.

Barulho, confusão, multidões, ziriguidum, balacobaco, telecoteco, confete, serpentina, marchinhas, rei momo, escolas de samba, mestre-sala, porta-bandeira, reco-reco, cuíca, charangas e agogôs. Que horror! O sapo Gonzalo sempre detestara o Carnaval, e com o passar dos anos sua rabugice aumentara o suficiente para lhe causar uma úlcera no estômago só de pensar na possibilidade de ter de esbarrar no meio da rua com centenas de bêbados desocupados usando fantasias exóticas e dançando como pavões em frente a loiras siliconadas, tão inteligentes quanto orangotangos. Ao primeiro som dos tamborins, nosso contestador e mal-humorado sapo argentino sempre fugia para algum lugar isolado, para não precisar encontrar uma pessoa sequer durante vários dias. Nunca tivera um celular na vida, muito menos Twitter, Blackberry, iPod, iPad, iPhone ou Facebook. Odiava todas as bugigangas e novidades tecnológicas. Não tinha ideia como funcionavam, nem tinha vontade de aprender. Tudo bem… Se pudesse, seria como um de seus ídolos literários, J. D. Salinger. Ou o escritor Dalton Trevisan. Sumiria de uma vez por todas das vistas do público. Ninguém o encontraria. Sua vontade era passar o dia inteiro deitado numa rede entre dois coqueiros, numa ilha paradisíaca perdida em algum canto mundo. Ou, quem sabe, ficar sentado sobre a areia branca e fina de alguma praia longínqua, sozinho, apenas olhando para o mar.   

Gonzalo sabia que, em breve, dezenas de blocos de foliões transpirando estupidez ocupariam as calçadas e avenidas. E repórteres de programas de televisão iriam a bailes de travestis em clubes privados ou a festas em hotéis de luxo, e entrevistariam diversos “atores”, “atrizes”, “modelos” e “manequins”, pseudocelebridades cheias de “glamour” e de projetos “importantíssimos” para o resto do ano, dando declarações “exclusivas” e emanando dos semblantes excessivamente maquiados uma alegria falsa e esfuziante. Não dava!!! A pressão sanguínea do batráquio esverdeado subia só de imaginar isso tudo… Sua cor até mudava nessas horas: já estava ficando vermelho! Como sempre, precisava de várias doses de uísque para se acalmar. 

É verdade que as notícias não eram animadoras: enchentes, calamidades naturais, desabamento de encostas, de barrancos, de barracos e até de prédios inteiros… Tudo podre. Na TV, desocupação agressiva de moradores de favelas, famílias pobres sendo escorraçadas de suas casas, gás lacrimogêneo, cassetetes e tiroteios. Mas a miséria humana não interessava a ninguém. Afinal, nativos e estrangeiros adoravam a República do Repolho, o lugar onde a populaça, a elite e até mesmo os supostos “intelectuais” exaltavam (com rompantes de entusiasmo intoxicante) imbecis como o Chacrinha e toda a “cultura” balangandãnica similar a ele! Pandeiros e batucadas! “Que mierda!”, pensava o sapo. 

Gonzalo não suportava mais aquilo. Por isso, resolveu arrumar correndo as malas e viajar para bem longe. Mas antes me pediu para postar vídeos de algumas músicas para aqueles que, como ele, também não gostam do fuzuê de lança-perfumes, carros-alegóricos e sprays de espuma. O anuro platino, contudo, não selecionou nenhum tango, apesar de adorar as canções dramáticas de seus compatrícios. Achou melhor fazer uma set list recheada especialmente com o bom e velho rock’n’roll. Só para animar o feriado. Eis aqui, portanto, a lista musical de Gonzalo, um presente para os leitores fiéis. 

John Lennon, “Power to the People”. Lennon havia acabado de chegar de viagem à Inglaterra com sua esposa Yoko, vindo do Japão, em 21 de janeiro de 1971, e mesmo bastante cansado e sofrendo com o fuso horário, daria uma longa entrevista em Ascot, Berkshire, poucas horas mais tarde, para os intelectuais de esquerda Tariq Ali e Robin Blackburn. Boa parte da conversa foi sobre política e revolução. Diz a lenda que naquela mesma noite, influenciado pela intensa discussão, iria escrever “Power to the People”. A canção seria gravada em sua mansão de Tittenhurst Park, em fevereiro daquele ano e produzida por Phil Spector. E entraria logo em seguida nas Top 20 dos Estados Unidos. 

 Richie Havens, “High Flying Bird”. Havens ficou mundialmente famoso após tocar na abertura do Festival de Woodstock. “High Flying Bird” é uma de suas músicas mais conhecidas. Composta por Billy Edd Wheeler, está incluída em Mixed Bag, de 1967, considerado por alguns como seu melhor álbum. Neste vídeo de 1969, o cantor se apresenta pela primeira vez num programa de TV britânico. 

Jello Biafra, “Love Me, I’m a Liberal”. Biafra, talvez a figura mais icônica da cena punk californiana dos anos oitenta, canta um clássico de Phil Ochs, um dos maiores compositores norte-americanos da década de sessenta e símbolo da música folk daquela época. Biafra chegaria a se candidatar a prefeito de San Francisco, com uma plataforma política cheia de provocações, sarcasmo e bom humor, e ficaria em quarto lugar! “Love me, I’m a Liberal”, lançada originalmente no álbum Phil Ochs in Concert, de 1966, foi modificada e adaptada por Biafra para fazer a crítica aos “liberais” de alguns anos atrás. E por que não dizer, dos atuais também. 

Johnny Cash, “Heart of Gold”. Johnny Cash é unanimidade. O homem de preto possui uma discografia enorme e dezenas de sucessos inesquecíveis que vão do country e folk ao gospel e rock.  “Heart of Gold”, interpretada por Cash no final da vida, foi escrita pelo lendário roqueiro canadense Neil Young, gravada originalmente por ele no Quadrofonic Studios em Nashville, Tennessee, e lançada pela primeira vez no álbum Harvest, de 1972. É a única canção de Young a alcançar o número um nas paradas musicais dos Estados Unidos.     

Gaslight Anthem, “Bring It On”. O sapo Gonzalo andava desanimado com os grupos de rock há pelo menos vinte anos, até que descobriu, sem querer, o Gaslight Anthem, para ele, a melhor banda da atualidade. “Bring It On” é uma das faixas de American Slang, o excelente álbum desses “filhos favoritos de Nova Jersey”. Gonzalo também recomenda as canções “59 Sound”, “Great Expectations” e “American Slang”, que dá o título do CD mais recente. 

The Pogues, “Streams of Whiskey”. Shane MacGowan, compositor e vocalista dos Pogues, é considerado um dos principais poetas populares contemporâneos da Irlanda.  “Streams of Whiskey” é um clássico absoluto da maior banda de celtic folk punk rock que se tem notícia. Escrita por MacGowan, foi lançada no álbum Red Roses for Me, de 1984. E como diziam os Pogues: “I’m going/I’m going/Any which way the wind may be blowing/I’m going/I’m going/Where streams of whiskey are flowing!” 

Bob Dylan, “Hurricane”. Um dos maiores sucessos de Dylan nos anos setenta, “Hurricane”, composta em parceria com Jacques Levy, foi incluída no álbum Desire (gravado entre julho e outubro de 1975; lançado em janeiro de 1976) e conta a trajetória do pugilista Rubin “Hurricane” Carter, um dos mais famosos pesos-médios de sua época, preso injustamente em Paterson, Nova Jersey, em 1966, acusado de ter participado do assassinato de três pessoas. Na cadeia, Carter escreveu The Sixteenth Round, lançado em 1974 e que se tornou imediatamente um enorme sucesso editorial. Ao ler o livro, durante uma viagem pela França, em 1975, Dylan decidiu visitar o lutador na penitenciária, para conhecer melhor sua história. Impressionado com o drama do atleta, o cantor iria escrever sua conhecida canção e depois liderar uma campanha com o intuito de conseguir um novo (e quem sabe, mais justo) julgamento ao boxeador. Os esforços de Dylan culminaram no concerto beneficente “Night of the Hurricane”, no Madison Square Garden, Nova Iorque, em 8 de dezembro de 1975. Em 1988, após ser novamente julgado e inocentado, Rubin Carter foi finalmente libertado. 

Elvis Presley, “If I Can Dream”. Em 1968 a juventude se levantou nos Estados Unidos para protestar contra a guerra do Vietnã e em favor dos direitos civis. Naquele ano, Martin Luther King e Bobby Hutton, o “ministro da Defesa” dos Panteras Negras, foram assassinados; Eldridge Cleaver, o “ministro da Informação” do BPP, ferido num tiroteio com a polícia; milhares de pessoas participaram de ocupações e protestos em universidades e praças públicas; a população negra se mobilizou em várias cidades; e ainda ocorreram batalhas campais entre multidões de ativistas e a polícia durante a Convenção Nacional do Partido Democrata em Chicago. O ano de 1968 também foi extremamente emblemático no meio musical. Bob Dylan lançaria John Wesley Harding; os Beatles, Magical Mystery Tour; os Rolling Stones, Beggars Banquet; The Who, Magic Bus, The Who on Tour; os Yardbirds, Little Games; Jimi Hendrix, Electric Ladyland; The Doors, Waiting for the Sun; The Animals, três discos, The Twain Shall Meet, Everyone of Us e Love Is; The Byrds, dois álbuns, The Notorious Byrd Brothers e Sweetheart of the Rodeo; e os Beach Boys, Friends; só para citar alguns. Aquele também seria o ano da famosa volta de Elvis Presley aos palcos. O rei certamente não ficaria imune aos acontecimentos de sua época. No final de 1968, ele faria um programa especial para a rede de TV NBC, e terminaria sua apresentação com “If I Can Dream”, canção composta às pressas por Earl Brown a pedido do diretor Steve Binder, que refletia bem o clima geral, os protestos e os eventos dramáticos daquela época.  Gravada em 23 de junho, nos estúdios Western Recorders, em Burbank, Califórnia, seria apresentada no programa em 3 de dezembro daquele ano.  Um grande clássico de Elvis Presley que Gonzalo também recomenda. 

***

Já está à venda em versão eletrônica (ebook) o livro de Luiz Bernardo Pericás publicado pela Boitempo Editorial, Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica, disponível no Gato Sabido e na Livraria Cultura.

***

Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.

***

Será lançado, no próximo dia 06 de março de 2012, o novo livro de Luiz Bernardo Pericás, Cansaço, a longa estação. Confira o convite abaixo:

4 comentários em O sapo Gonzalo foge do Carnaval

  1. Muito bom o texto e a lista de canções, Pericás.

    Curtir

  2. Tirso W. Sáenz // 18/02/2012 às 12:54 pm // Responder

    Gostei muito e enviei a vários amigos que desfrutarão o simpático artigo e as músicas maravilhosas

    Curtir

  3. Fábio Ramos // 18/02/2012 às 9:40 pm // Responder

    Muito bom. Concordo com você; o sapo sabe o que está falando.
    Grande abraço
    Fábio

    Curtir

  4. Quando morei em Recife, tomei ciência de um fato curioso; há um forte surto de gripe após o carnaval. Afinal, são milhares de pessoas, umas grudadas nas outras e embalsamadas pelo suor. Eu sempre ia pra Porto de Galinhas, nessas épocas.
    Luís, depois de um livro sobre o cangaço, um livro sobre o cansaço? rsrsrs… brincadeira… Na verdade, quero mesmo é saber o tema do novo livro…

    Curtir

2 Trackbacks / Pingbacks

  1. As aventuras do sapo Gonzalo e Luiz Bernardo Pericás no Blog da Boitempo | Blog da Boitempo
  2. O sapo Gonzalo em: Outro carnaval | Blog da Boitempo

Deixe um comentário