Felicidade

"Retrato de Mademoiselle Legrand", de Pierre-Auguste Renoir (1875)

Por Izaías Almada.

Amarílis ensimesmava contando as estrelas do seu vestidinho novo de chita. O vestidinho azul com gola de renda branca e todo rodado. A estampa misturava estrelinhas verdes e vermelhas e pequenas meias-luas brancas. Fazia assim sempre que estava distraída ou à espera de alguém…

E quase sempre na companhia do cão Balaio, um vira-lata faminto e preguiçoso que apareceu na fazenda. Mas não desta vez.

Estava ali na cidade há algum tempo à espera do pai, que conversava a portas fechadas com o moço a que chamavam de advogado. Balaio ficara na fazenda. Amarílis não sabia muito bem o que era um advogado, mas sabia que o pai andava nervoso por causa de umas questões com a mãe e, muito observadora, percebeu que o tal advogado ajudava a resolver problemas entre gente grande. Seu pai e sua mãe tinham muitos problemas a resolver.

Ia fazer cinco anos dali a duas semanas. Por que será que o papai não brincava mais com ela na volta da escola? E a mamãe, por que tinha ido embora com aquele outro tio?

O pai saiu da sala conversando com o advogado. Parecia mais contente. Abraçou Amarílis e deu-lhe um beijo carinhoso no rosto. Ela envolveu o pai num abraço e, por cima do ombro, viu o advogado ir diminuindo de tamanho à medida que caminhavam pela rua.

O pai perguntou se ela queria um sorvete. Escolheu o de flocos de chocolate. Depois foram sentar num banco da pracinha. Tinha visto o pai chorar naqueles dias. Sentaram-se e ele começou a falar, mas Amarílis não entendia muito bem algumas das palavras que ele usava a não ser uma frase que ficou gravada na sua memória e que foi repetida umas tantas vezes: a mamãe não volta mais para casa.

Os olhos de Amarílis se encheram de lágrimas e ela começou de novo a contar as estrelinhas do vestido azul de chita. O pai tornou a abraçá-la e ficaram assim por alguns minutos.

– Ela não volta mais?

– Não… Ela foi para o Rio de Janeiro.

– Nunca mais?!

– Acho que não…

– Foi o advogado que falou?

– Ela deixou uma carta com ele.

– E o Balaio?

– Fica com a gente…

– Eu não preciso mais ter medo dela?

– Medo?!…

– Ela me punha de castigo… Gostava de me trancar no quarto e batia no Balaio.

– Não… Ela não volta mais.

– E o papai?

– O que é que tem?

– Vai para o Rio de Janeiro também?

– Não, querida… O papai vai ficar na fazenda tomando conta de você…

– Posso brincar na varanda?

– Onde você quiser.

– O Balaio também?

– Também, claro…

– Tomara que ela não volte mesmo. Nunca mais…

– É… Ela disse que agora queria ser feliz…

***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mimO medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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