Graham Greene no Haiti

Retrato do ditador haitiano François Duvalier (também conhecido como "Papa Doc"), pela revista Time

Por João Alexandre Peschanski.

A história do Haiti é mal contada. O país, destino da principal ação militar internacional do Brasil desde a mobilização dos pracinhas na Segunda Guerra Mundial, foi e é um grande desconhecido. Periodicamente, um jornalista brasileiro desembarca em Porto Príncipe, muitas vezes com passagem e roteiro pagos pelo Ministério das Relações Exteriores. Em geral, o jornalista fica alguns dias, menos de uma semana, e, escoltado pelos soldados da Organização das Nações Unidas, faz um tour pelas favelas da capital, entrevista algum oficial da missão militar e lamenta a pobreza ou a violência haitiana. Há exceções — em especial o bom trabalho de Tailon Ruppenthal e Ricardo Lísias em Um soldado brasileiro no Haiti (Globo, 2007) –, mas no geral o que nos chega do Haiti é um conjunto de impressões exóticas, preconceitos e superficialidades.

Um dos antídotos contra o mau jornalismo é Graham Greene. Desde o início de sua carreira, o autor inglês empreendeu viagens ao que chamou “dos lugares mais recônditos do mundo” e, dessas experiências, saíram algumas de suas melhores obras, numa mistura de romance e reportagem. No fim dos anos 1950 e início dos anos 1960, Greene foi ao Haiti e, numa situação mais perigosa do que a atual, descreveu um dos regimes mais violentos do século 20.

Seu romance Os comediantes, lançado em 1966, narra a viagem de um grupo de estrangeiros a Porto Príncipe, em meio ao regime ditatorial de François Duvalier (1957-1971). São personagens comuns – um empresário, um político idealista e um ex-soldado –, sem personalidades marcantes. Sua banalidade é enfatizada por seus sobrenomes comuns na cultura anglo-saxônica, Brown, Smith e Jones. Num Haiti tomado pelo horror, com assassinatos e abusos de toda sorte, a ingenuidade e a falta de jeito das personagens, que se envolvem em situações confusas, como romances sem sentido e ações políticas que não entendem, fazem delas os comediantes do título.

O livro de Greene – mais tarde transformado em filme, dirigido por Peter Glenville e estrelado, entre outros, por Richard Burton, Elizabeth Taylor e Alec Guinness –  é, antes de mais nada, um relato minucioso do regime de exceção de Duvalier. Há uma sensação permanente de que as personagens estão sendo vigiadas pela milícia duvalierista, os tontons macoutes. São seres quase fantasmagóricos, uniformizados numa sociedade e trama desordenadas, com óculos de sol mesmo de noite, taciturnos e em bando, exibindo seus revólveres velhos e machetes, inexplicavelmente violentos. Espancam, matam, humilham, impõem um reino do pesadelo, intensificado por uma devoção sobrenatural ao ditador.

A obra de Greene chegou como uma bomba ao Haiti. Dias após a publicação, Duvalier deu uma entrevista a um dos jornais de seu regime, Le Matin, fazendo duras críticas a Greene, chamado de “ingrato”, considerando que “o livro não é bem escrito e que, como referência jornalística e literária, não tem nenhum valor”. Relatos da época sugerem que Duvalier chegou a passar mal ao folhear o livro; até então, os horrores no Haiti eram pouco conhecidos, apenas alardeados sem eco por alguns grupos de defesa dos direitos humanos. Pesava sobre o Haiti um silêncio conveniente aos Estados Unidos, que, no contexto da Guerra Fria, eram aliados de Duvalier na luta anticomunista no Caribe.

Em 1968, o governo de Duvalier lançou um panfleto chamado “Graham Greene desmascarado”, com o objetivo de atacar o caráter e o trabalho do autor de Os comediantes. Foi a publicação mais cara do governo e provavelmente da história haitiana: com papel de seda, ilustrada, bilíngue (francês e inglês), amplamente difundida a todas as embaixadas em Porto Príncipe, além de autarquias e escolas em todo o país. O panfleto descrevia o Haiti como um país em crescimento e democrático, com edifícios modernos, e listava supostos empreendimentos de Duvalier, incluindo a construção da nova capital, Duvalierville, que drenou milhões de dólares em corrupção e nunca chegou a sair do papel. 

O panfleto trazia ainda uma série de artigos sobre Greene, descrito como “um mentiroso”, “um racista histérico”, “um cretino”, “um desequilibrado e sádico”, “a vergonha da digna Inglaterra”, “um drogado”, “um torturador”. Acusava Os comediantes de ser uma obra encomendada para macular o suposto sucesso do governo de Duvalier. Vinculava a forma de escrever e pensar de Greene aos trabalhos de teóricos do racismo, como Arthur de Gobineau.

Em suas memórias, intituladas Ways of Escape [Caminhos da fuga], Greene traça sua trajetória literária e devota uma parte importante a sua experiência no Haiti. Diz: “Os comediantes atingiu [Duvalier] no osso. […] Sua entrevista em Le Matin foi a única crítica que recebi diretamente de um chefe de Estado”. Irônico, Greene confessa que alguns dos epítetos que lhe foram destinados no panfleto podem até ser merecidos, mas que nunca entendeu o uso do termo “torturador”. O regime de François Duvalier deixou um saldo de 60 a 100 mil assassinatos políticos, geralmente cometidos em situações indescritíveis de barbárie, e um sem-número de outras violências. Continua Greene: “tenho orgulho de meus amigos haitianos que lutaram bravamente contra o doutor Duvalier”.

É nessas páginas sobre o Haiti que Greene cunha uma de suas frases mais conhecidas: “Um escritor nunca é tão impotente quanto parece, e uma caneta, assim como uma bala, pode matar”. Quem dera os jornalistas que chegam ao Haiti lessem Graham Greene.

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João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

1 comentário em Graham Greene no Haiti

  1. Alguém precisa mandar esse livro para o autor de História Politicamente Incorreta da América Latina, que andou falando bobagens sobre o Haiti.

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