Crônicas de Berlim (11): A Berlinale toma Berlim de assalto

Veja mais imagens das filas e das emoções dos espectadores da Berlinale clicando na imagem acima

Por Flávio Aguiar.

Começou nesta quinta-feira a 62a Berlinale – o festival internacional de cinema de Berlim, um dos mais importantes da Europa. O Q.G. do festival fica na praça Marlene Dietrich, nomeada em homenagem à grande atriz alemã que se refugiou nos EUA durante o nazismo. Mas o festival toma conta da cidade inteira. As filas para compra antecipada de entradas são imensas. Pode-se levar de uma a duas horas numa delas. Milhares de berlinenses e cinéfilos do mundo inteiro assistirão, até o dia 19, as centenas de filmes de todos os tipos –  longas, curtas, desenhos, documentários, estreias, retrospectivas, homenagens, mais seminários especiais dedicados a jovens cineastas selecionados em dezenas de países, inclusive no Brasil. O Brasil participa da competição pelo cobiçado urso de ouro (já dado a Tropa de Elite e Central do Brasil) numa co-produção brasileira, portuguesa, francesa e alemã, o filme Tabu, dirigido pelo cineasta português Miguel Gomes.

Participam da mostra, mas não do concurso, mais três filmes brasileiros: Xingu, de Cao Hamburger, sobre os irmãos Villas Boas, Olhe pra mim de novo, de Kiko Goifman e Cláudia Priscilla, e Licuri Surf, de Huile Martins.

Entre os filmes mais procurados estarão Les adieux à la Reine, de Benoit Jacquot, onde a Revolução Francesa é vista a partir das mulheres que cercam a rainha Maria Antonieta, e The iron Lady [A dama de ferro, sobre o qual Emir Sader escreveu aqui no Blog ontem], controvertido filme sobre a nada controversa ex-primeira ministra Margareth Thatcher, que também aborda a Guerra das Malvinas – de 30 anos atrás – um tema quente, aliás, no momento, com troca de palavras ásperas entre os governos britânico (que faz desfilar todo o seu aplomb imperial) e argentino – felizmente só palavras, até agora.   

Diz-se com muita justiça que a Berlinale é mais do que um festival, é um estado de espírito. É verdade. A Berlinale é filha da Guerra Fria. Nos anos cinquenta, Berlim Ocidental era uma ilha capitalista cercada por comunismo de todos os lados. Vitrine contra vitrine, os norte-americanos e o governo da RFA (República Federal da Alemanha, não a Rote Armée Fraction – RAF…) decidiram investir em cultura. Criaram uma universidade. Numa cidade cuja população adulta fora devastada pela guerra (e também pelo nazismo), a RFA decidiu liberar do serviço militar obrigatório os jovens que habitassem em Berlim.

E assim também criaram um Festival Internacional de Cinema – a Berlinale, em 1950. Para se entender o sucesso do festival junto ao público, é necessário compreender a mentalidade de “ilhéus” que marcava os habitantes da Berlim Ocidental. Era um momento em que “o mundo vinha a Berlim”.

Bom, a Guerra Fria acabou. Aliás, uma das melhores definições do seu final foi dada, smj, pelo romancista John Le Carré, especializado no tema: parodiando uns versos de Leonard Cohen, ele diz que os mocinhos perderam, e os bandidos dos dois lados ganharam. Mas o Festival ficou, adquiriu vida própria, se ampliou, tomou conta de Berlim inteira.

Um dos melhores aspectos da Berlinale é seu investimento na juventude. Não só trazem jovens cineastas e cinéfilos do mundo inteiro, mas ele tem vastas seções dedicadas a crianças e adolescentes que têm, inclusive, um júri a parte e que dá prêmios de verdade. Esse é um verdadeiro investimento no futuro, e ajuda a compreender por que Berlim é uma cidade onde raramente cinemas fecham, e, até pelo contrário, alguns que estavam fechados às vezes reabrem também.

Outro bom investimento é o deslocamento da apresentação de filmes para bairros afastados das regiões centrais, uma promoção excelente que se chama “Berlinale no bairro”. Isso facilita, nesses dias nevados e gélidos, o acesso para idosos, portadores de deficiência etc.

Claro, há a tietagem de perseguir estrelas, desfiles etc. Mas a Berlinale, como podem ver, é muito mais do que isso.

Diz a lenda que nas longas e demoradas filas que se formam nos guichês nascem amizades, amores, casos, casamentos etc. Às vezes se desfazem…

Nem tudo são flores. Um grande complicador entrou em cena: o celular.

Cada pessoa pode comprar dois ingressos por filme. Os ingressos à venda se referem aos filmes que passam nos três dias seguintes, mais alguns que já estão à venda, e os do último dia do Festival, sempre um domingo, momento de ver o que se perdeu, também os filmes premiados, essas coisas. Isso significa que cada pessoa leva consigo um pequeno memorando com uma batelada de datas, cinemas, opções etc., e que está comprando, normalmente, para pelo menos mais uma pessoa. Em cima dos guichês há uma tela com a relação dos filmes disponíveis, os esgotados etc. Mas isso não adianta. Muitas pessoas chegam no guichê e começam a checar com o vendedor as disponibilidades. Aí entra em cena o celular. Elas ligam para o(s) eventual(ais) parceiros(as), que também deve ter em mãos uma lista de filmes, e começa aquela conversa a três bocas e muitos cliques em computadores ou o que seja, até se chegar a um consenso sobre os tíquetes a comprar. Muitas vezes uma única pessoa pode ficar de dez a quinze minutos num guichê a discutir, telefonar, escolher, re-escolher etc.

É um inferno.

Ah, que saudades dos bons tempos da Guerra Fria, quando não havia celulares!

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Dois livros de Flávio Aguiar publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook): o romance histórico Anita, sobre a vida de Anita Garibaldi, e seu livro mais recente, Crônicas do mundo ao revés. Ambos estão à venda na Livraria Cultura e no Gato Sabido.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o  Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em Crônicas de Berlim (11): A Berlinale toma Berlim de assalto

  1. Gostei de ler essa matéria. Às vezes sinto saudades também dos anos antes do celular.
    Mas agora há a vantagem de conhecer mais, ler e ouvir como nunca antes. Vou continuar acompanhando o que se publica pela Boitempo Editorial!

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