O estupro da razão

"O abraço", de Gustav Klimt (1862-1918)

Por Izaías Almada.

Volto ao país depois de merecidas férias. Visto à distância, o Brasil é um país como outro qualquer. É como estar em São Paulo, por exemplo, e ler as notícias sobre países europeus, asiáticos ou sobre nossos vizinhos sul-americanos. As notícias do dia a dia são muitas vezes superficiais, sensacionalistas, procurando encobrir a natureza dos motivos pelos quais elas acontecem ou se desenvolvem.

A diferença, é claro, se dará por conta do conhecimento que temos da nossa própria realidade, os interesses e os fatores objetivos e subjetivos que se entrelaçam na informação produzida por jornais, televisões, revistas, sites e blogues.

A Rede Globo de Televisão, beneficiária e por isso mesmo defensora do golpe de Estado no Brasil em 1964 (ou seria o contrário?) chamou uma vez mais para si os olhares da nação, muitos deles cada vez mais descontentes com o que ali assistem.

Detentora de uma estratégia e de um marketing de comunicação imposto pelo poder econômico que construiu e que a sustenta, a emissora vem atravessando os anos colocando-se acima das leis e da Constituição, uma vez que o seu DNA foi formado no período autoritário mais recente da história política brasileira.

Ao se arrogar em fazer o que quer, a Rede Globo finge não ver que a ditadura já terminou e apresenta-se com aquela prepotência dos que fingem que nada de mais se passa à sua volta. Coloca-se acima da própria Constituição do país (consultar os artigos 221 e 223 da Constituição).

Talvez o braço mais forte do pequeno grupo que comanda impunemente a informação no Brasil, a “Venus platinada”, como alguns a chamaram ou ainda a chamam, não tem pelo país qualquer tipo de consideração, a não ser aquela – é claro – em benefício próprio, quando se proclama líder de audiência em vetustos programas, entre eles alguns já mofados e embolorados como “Fantástico”, “Jornal Nacional”, “Faustão”, “Programa da Xuxa” e a maioria de suas telenovelas, cujo conteúdo, aliás, é de dar enjôo em antiácido.

Baseados na antiga falácia de que a televisão produz aquilo que o povo gosta de ver, as emissoras de um modo geral e a Rede Globo em particular, mistura alhos com bugalhos propositadamente, pois sabe que um povo desinformado, confuso, indisciplinado, ignorante de seus direitos constitucionais, iludido por partidos políticos de pouca ou nenhuma expressão ideológica, é um povo paralisado e medroso.

A estratégia de desinformação coloca o cidadão diante da dúvida, da negação da própria política, do desânimo, da apatia, do medo.

Ainda assim, é possível identificar alguns bolsões de resistência a esse plano de manipulação de consciências e de votos, que transforma o país num amálgama de incertezas.

As manifestações de vários setores da sociedade quanto ao possível estupro de uma cidadã brasileira num programa de qualidade cultural zero são sinais de conscientização do entrave que representa para a democracia a existência de uma mídia partidarizada e defensora dos privilégios do poder econômico.

Imprensa livre, sim, mas não usurpadora do poder político, também ele livre, dos cidadãos e contribuintes.

Condenável sob todos os aspectos, até porque toda a armação foi para aumentar a audiência de um programa lamentável, o maior estupro não é o que a TV Globo mostrou, mas é o estupro que se faz da razão, da nossa inteligência e da própria democracia.

 ***

Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mimO medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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